Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

sábado, 31 de maio de 2008

Preciso de seduzir




Eu preciso de seduzir 

o amor da minha vida 
para voltar a ser feliz 
e, deixando de fingir, 
cicatrizar esta ferida 
que eu nunca quis... 

Eu preciso de renascer 
e ser a flor do jardim 
que ele mais beija 
Quero saciar o prazer 
que vive em mim 
para que o amor seja 

a fonte da felicidade 
e mate a insanidade 
que tanto se apraz 
na dor e na saudade 
e que o tempo faz 
morrer de verdade... 

Eu preciso de seduzir 
o amor da minha vida 
para voltar a sorrir 
e ser a rosa florida 
que adora se abrir 
e se dar sem medida...


LUD
MacMartinson

Dama carente



http://www.youtube.com/watch?v=fAL0yN-Ayho
( Parce que c'est toi - Axelle Red )


Oi... 

este poema foi-me inspirado pela minha " dama ", 


para quem há muito não escrevia... 

Não sei se esta é uma forma de me penitenciar, 


de me confessar ou de lançar um SOS... 

Eis a palavras que suscitaram esta " endofasia " : 
" Preciso, Seduzir, Amor, minha Vida, Feliz "




Anestesiada pela rotina, não sei o que preciso 

para viver nem se deva lutar e continuar a seduzir 
para, conhecendo o fogo da paixão, perder o juizo 
ou se me acomodar à razão que a vida vê carpir... 

Longe vão os tempos do amor cego e inebriante 
agora, que que o meu homem sinto tão distante, 
não sei se lhe ser fiel ou se arranjar um amante 
que me faça sentir desejada como antigamente 

Por vezes, em devaneios me perco e me imagino 
a meretriz que ele tanto queria que fosse na cama, 
mas a minha alma, submissa ao juramento divino, 

não me deixa libertar das entranhas a ígnea chama 
do prazer que no meu homem faria soltar o felino 
que era, antes de me ver apenas como sua dama...



LUD
MacMartinson

Há uma palavra que não se realizou
 " endofasia " desta carência... 

O Psy diria que é sintoma de demência 
ou simplesmente um mal-estar da " essência "...


sexta-feira, 30 de maio de 2008

domingo, 25 de maio de 2008

A Felicidade não se esconde...



http://www.youtube.com/watch?v=CtysNJc5gjw




Olá,

Oi...
como quase todos os dias, hoje levantei-me cedo e já tive a oportunidade de me " encantar " e de experimentar " ápices " de felicidade intensa.
Agora, depois de um café e um banho matinal, sinto-me melhor para aqui vos deixar " crenças " que me ajuda(ra)m a ser - apesar de tudo - muito feliz..., porque, pensando na miséria humana, sei que sou um privilegiado: fui sonhado, concebido, gerado, criado e educado com muito " amor "...

A FELICIDADE, que todos procuramos desesperadamente, não se esconde num lugar distante e inóspito; a felicidade está dentro de nós e de forma bem evidente e cintilante, para quem É, antes de mais, em primeiro lugar e sobretudo, " amante " de si mesmo e faz viver em harmonia o corpo e a alma, sendo coerente entre o que PENSA, o que QUER e o que FAZ realmente.

A FELICIDADE, para ser um desígnio universal da humanidade, logo palpável e exequível, não podia ser algo complicado ou indecifrável.
Contudo e porque - como a Vida - é " dádiva " divina, a FELICIDADE é simplicidade e autenticidade. Acontece que, por vezes, a evidência cega quem vive " obsecado " pelas aparências e mais " interessado " em (a)PARECER do que SER. ( O mundo anda perdido e desnorteado por causa disso! Antes de nos divorciarmos de ALGUÉM ou de ALGO, nós divorciamo-nos de NÓS mesmos; antes de iludirmos alguém, nós deixamo-nos iludir nós próprios. Não admira, pois, que a nossa VIDA seja um DIVÓRCIO permanente e nos mergulhe, amiúde, em crises profundas, que nenhuma medicina ou " milonga " pode sarar realmente.

O MAL SOMOS NÓS ! O REMÉDIO ESTÁ EM NÓS !!!
A FELICIDADE não vive trancada a sete " portas " em nenhum castelo, nem precisa de chave alguma para ser aberta: a FELICIDADE estende o seu manto à nossa volta e " vive " implorando que o peguemos e nos deitemos nele...
Mas por onde andamos nós? Que procuramos nós? Que queremos e fazemos nós? Vivemos obsecados por " manias " de grandeza e por " taras " mesquinhas que nos afastam dela e, nos cegando a " alma ", nos roubam o discernimento e a ingenuidade que descodificam a FELICIDADE...

Há anos, no prefácio de um romance - A Força do destino, publicado em França sob o título La Force du destin - escrevi:


"... A Força do Destino é a história de dois seres, Pat e Cris, que uma paixão fulminante atraiu irremediavelmente e a quem Deus, ou o Destino, elegeu e impôs um calvário purificador, antes de poderem conhecer a inefável felicidade do amor.

Espero que você consiga descobrir também o desígnio da sua vida e canalizar as forças do Sonho, do Espírito e do Amor para que a paz ilumine a sua consciência.
Seja feliz, mas lembre-se que nada é definitivo nesta vida e que jamais poderá desfrutar intrinsecamente da verdadeira felicidade se, por qualquer motivo, a tiver conseguido em detrimento da de outrem. Mais, nunca se esqueça que a felicidade é algo de tão indescritível e único que o mínimo detalhe sem importância pode ser a chave da felicidade de alguém sobre quem terá uma responsabilidade e por quem terá que responder, inevitavelmente, um dia.
Lembre-se ainda que a salvação e a felicidade eternas são uma conquista individual e permanente, porque cada ser encontrará diante si o espelho de tudo o foi e fez nesta vida e aí sim, nesse ápice de verdade, o seu Destino estará traçado para a eternidade.
Que a força do Amor viva consigo para sempre. "

( pode ler A Força do destino em http://lmp-romances.blogspot.com )

Bom, porque vocês são muito inteligentes - pois todas têm - dizem e sei que é verdade - um sexto sentido, não vou escrever mais nada, até porque só vocês são e conhecem verdadeiramente a VOSSA FELICIDADE...



Oi... queridas, porque vocês não são baralho, mas pessoas, fico por aqui...

Seria contraproducente " empaturrar-vos " ! 

Vá toca a eliminar as " toxinas " da alma e do corpo e a " respirar " a " essência " e o perfume da FELICIDADE para que a vossa VIDA seja o jardim onde o arco-íris se possa espelhar em permanência e pintar de mil cores as flores que fazem o coração palpitar de alegria...
Beijos e/ou um abraço / Carpe diem !

Luís /LUD MacMartinson

domingo, 18 de maio de 2008

Caminhos de Ilusão: Capítulo III


CAPÍTULO III




Depois dos festejos em honra de Santa Bárbara em Fiolhoso, uma das maiores freguesias do concelho de Murça, que anualmente se realizavam no terceiro domingo de Agosto, o passador, conversando com os últimos emigrantes a chegar para férias, soube que ultimamente a polícia andava mais atarefada a colmatar a fuga dos refractários que a dos zés do pulo, e decidiu ir pôr o Arménio em França na primeira carrada, logo no início do mês de Setembro. Os três candidatos à viagem há muito que dormiam de atalaia.
Na madrugada de 1 de Setembro, quarta-feira, o vila-realense estava elevado no sono, quando foi estremecido pelos sussurros sorrateiros que, postados no buraco da fechadura, ecoaram pela cozinha adormecida.
Tocando nas costas da mulher, murmurou baixinho:
— Norina! Já dormes, Norina? Ei! parece que é o Raimundo. Levanta-te!
— O Raimundo?! Não, Arménio, é o diabo que nos bate à porta! — sussurrou a esposa
— Psch, fala baixo que ele pode ouvir! — implorou o marido amedrontado.
— Perdão e que Deus te guie, meu amor! — choramingou ela, beijando-o e abraçando-o desesperadamente.
Saltando lesto da cama, o vila-realense enfiou apressadamente as calças de ganga e, abeirando-se da porta, perguntou roufenho:
— És tu, Raimundo?
— Sim, apronta-te, que vamos esta noite, Arménio! — segredou o passador.
— Como vês, a mochila já ali está — respondeu orgulhoso, abrindo-lhe a porta e apontando para a trouxa que jazia no canto da cozinha.
— Desculpa acordar-te a estas horas, mas temos que ir.
— Matamos o bicho, Raimundo?
— Não, mas se a Norina nos fizesse rapidamente um cafezinho...
— Ora essa, Raimundo, claro que faz! Norina! — chamou eufórico, voltando-se para a mulher que saía do quarto a esconder como podia a aflição que fazia pular o seu coração contrito.
— Boa-noite, Raimundo! — saudou resignada, evitando o olhar do antigo pretendente.
Enquanto os homens miravam a trouxa e o saco da merenda, ela, cerrando os dentes, estancou a tristeza que trazia na alma e, erguendo os olhos ao tecto, pediu a Deus que lhe secasse todas as lágrimas, que porventura ainda lhe restassem, para não desfalecer e se humilhar diante do pretensioso e arrogante Faia. E, pegando na cafeteira de alumínio, espevitou maquinalmente o borralho, acendendo o lume para aprontar o café, enquanto que, deitada no colchão de palha da sua caminha de ferro esmaltado, a Verónica dormia profundamente.
Depois de beberem a malga do café e mastigarem umas torradas de manteiga, o passador mirou presunçosamente a mulher dos seus sonhos de soslaio, carregou a mochila do colega, desceu a guardá-la no cofre do Simca e, lançando àquela casa pesarosa um olhar cínico, foi alapar-se ao volante.
Na lareira, livre do antipático e constrangedor Raimundo Faia, de lenço amarrotado nas mãos, Norina esperou que o marido beijasse a filhinha adormecida e agarrou-se-lhe desesperadamente ao pescoço, implorando lacrimosa:
— Por amor de Deus, perdoa-me todo o mal que te fiz, Arménio! Por favor, perdoa!
— Eu sei que tu tens andado muito aflita, Norina, mas, aconteça o que acontecer, peço-te que cuides da nossa menina e nunca te esqueça que tu foste e serás o único amor da minha vida - balbuciou comovido, cerrando-a bem contra o peito arquejante e amassando-lhe inadvertidamente os seios amorfos.
— Vai, Arménio, vai e lembra-te que fui, sou e serei só tua para sempre! Que os anjos do Céu te guardem de todos os perigos e das tentações do demónio, meu amor!
— Ó meu Deus, se tu soubesses como te amo, Norina! — exclamou o marido, beijando-a profundamente na boca.
— Eu também, Arménio, eu também te amo muito! Mas vê lá onde e com quem te metes. Toma cuidado, homem, que o perigo é traiçoeiro e surge quando menos se espera. Vá!, que Deus te pague o sacrifício que vais fazer por mim e pela Verónica.
— Oh!, isto não é nada, Norina, isto não é nada, comparado à felicidade que tu me tens dado, meu amor! — retorquiu animado, beijando repetida e desesperadamente o rosto, a boca e as mãos da soluçante.
— Por amor de Deus, nunca desfaças deste escrito, Arménio, que ele te livrará das perfídias do demónio e do mal da inveja! — implorou carinhosa, metendo-lhe na mão um papel cheio de cruzes.
— Norina, se tiveres medo de dormir aqui sozinha, vai ficar a casa do tio Rodrigo.
— Eu sei que tens que partir, meu amor, por isso só te peço mais uma coisa: nunca confies em ninguém, nem mesmo na pessoa que julgues mais tua amiga! Nunca, mas nunca, Arménio! — implorou-lhe ela de joelhos, fitando apavoradamente a porta, como se pressentisse o diabo atrás dela.
— Não te aflijas, Norina! Vá, adeus e até ao Natal, se Deus quiser!
— Adeus, meu amor, adeus! Escreve rápido!! Escreve rápido!! — gritou desesperada, largando o marido que, debaixo da padieira, ainda lhe lançou um último beijo e desapareceu na noite enluarada, abençoado por um Céu todo estrelado.
Segurando o volante, Raimundo gesticulou, apressando o colega a sentar-se no banco da frente, e, espreitando pelo retrovisor, arrancou lentamente, esperançado em se regozijar com o vulto lacrimejante da mulher que quase possuíra, mas Deus, retendo a infeliz entre aquelas quatro paredes de granito, não lhe consentiu tal gozo.
Acordando da hipnose passageira, que a reteve arrebatada a pensar em nada, Norina ainda correu desesperadamente até ao passeio, mas os seus olhos mareados só viram um vulto fugitivo dobrar a esquina do Calvário. Abafando os soluços e os gemidos com o lenço molhado, trancou a porta e correu a afogar o pranto no travesseiro, agarrada religiosamente à almofada do marido, mas os gritos lancinantes, que lhe rasgavam o peito, romperam as amarras do silêncio, vociferando lancinantemente pela casa, e acordaram a Verónica.
— Mamã! Mamã! — bradou a pequenita, esfregando os olhos sobressaltados.
— Vem, vem deitar-te a meu lado, filhinha!
— O pai não dorme? — questionou inocentemente a sonolenta.
— O pai..., o pai... - balbuciou a mãe confusa.
— Já se foi com o Faia! — bradou Verónica zangada, juntando-se à mãe na cama.
— Sim, filha, o papá já se foi com esse depravado!.
— E se rezássemos por ele Pai do Céu? — sugeriu esperta, aconchegando-se à mãe.
Lacrimosa, Norina meneou a cabeça e começou a sussurrar baixinho. E, assim, unidas pela dor, lá ficaram em oração, até que o cansaço lhes colou novamente o fio do sono, catapultando-as para o mundo paradoxal, onde tudo se consumia indolorosa e tenuemente, mas que a realidade lhes devolveria impiedosamente, logo que as suas olheiras se descobrissem a luz daquele dia tão cruel.
O destino lançara-a irremediavelmente nos braços da solidão. Porém, nas horas mais difíceis, Norina sabia que podia contar a ajuda do Deus dos seus pais, que ela herdara com o leite materno e, mais tarde, adolescente, aprendera a conhecer tão intimamente que, a sós, nunca mais deixara de O tratar por Tu. Se era verdade que esta vida, como acreditava, seria apenas uma passagem purificadora dos pecadores que ascenderiam às delícias da indescritível e indecifrável perenidade da sua outra metade que, prisioneira da matéria, ela sentia, mas que os sensores mortais jamais conseguiriam sintonizar e desvendar perfeitamente; então, se lhe caíam em cima todas estas mortificações, era porque o Omnisciente a incluíra na lista dos cento e quarenta e quatro mil do apocalipse de S. João. E todos estes teoremas sagrados lhe davam uma força e uma convicção indomáveis e a revestiam de uma aura capaz de afrontar os mais hediondos sortilégios desta vida aleatória. A vida! Ai a vida!

A melancolia corria-lhe morosamente nas veias. A fim de não sucumbir às tentações, que a ociosidade engendrava, a Norina decidiu antecipar-se à professora e ir ensinando o abecedário à filha e, para sugar os devaneios do espírito, sempre ávido de fantasias perigosas, começou a fazer renda e a ler os melhores romances da literatura portuguesa, que requisitava na biblioteca itinerante que passava na sua aldeia natal.
Quando andava na escola primária, a professora aconselhara-a a tirar o segundo ou o quinto ano do liceu, mas o pai, de saúde frágil, gastaria rios de dinheiro com a doença incurável que o levaria à sepultura. Coitada, a mãe sofrera tanto para levar a gravidez dela até ao fim que se não fosse a dedicação do médico da família, o doutor Campos, naquele 13 de Maio de 1947, terça-feira, não teria saído do útero materno com vida. A cesariana deixara a senhora Maria Rita, sua mãezinha, muito fraca e abatida, sobretudo depois da ablação da matriz que a impediu de ter aquela família numerosa, com que tanto sonhara. Filha única, Norina sempre fora, apesar das adversidades familiares, muito mimada. Não admira pois que, agora, sabendo que só teria uma filha, desse tanto carinho à Verónica.
Mas como lhe pareciam eternos, aqueles desesperantes dias, sem notícias do marido! E nem mesmo as palavras encorajadoras do tio Rodrigo, que a visitava amiúde, nem as das vizinhas, lhe conseguiam atenuar aquela dor imensa que sentia. Trancando-se teimosamente entre as quatro paredes do Calvário, passava os dias agarrada à filha a chorar. Era pois, na escuridão do quarto, sobretudo quando estava só, que ela fazia desfilar nas suas retinas as salutares reminiscências que o coração lhe ia devolvendo a conta-gotas. E as lágrimas apaixonadas, que então chorava na solidão, apareciam-lhe como a única maneira de purificar a sua alma dilacerada pelos maus presságios que, agora, milhentas vezes arrependida, tentava afugentar em vão, como se aquela fraqueza a tivesse condenado irremediavelmente.

No dia 6 de Setembro, segunda-feira, andava com a Verónica no prédio da Timpeira, no geio do fundo, mesmo à beira do rio Corgo, quando ouviu uma voz esganiçada gritar-lhe:
— Norina! Ó Norina!!! Tens aqui um telegrama, Norina!
Petrificada por um súbito calafrio, que lhe congelou o cérebro e lhe escoou o coração, parou de mondar a horta e ergueu-se, dando com um vulto a gesticular exuberantemente lá no alto do arco da ponte. Esboçando um aceno tímido, Norina escutou silenciosamente o eco esganiçado, que a encosta lhe devolvia com uns segundos de atraso, e, pedindo à filha que largasse tudo, desatou a galgar os socalcos que a separavam da curva, onde o marido, dias antes, deixara enterradas as estacas que delimitavam as fundações da vivenda que fizera dele um emigrante.
A cada passada vertiginosa, o ofegante ritmo cardíaco ameaçava estoirar-lhe o peito, mas, hipnotizada pela enigmática mensageira do lenço negro que, debruçada no muro, lhe fisgava o semblante pálido, corria, corria como uma desalmada sem respirar. Insensível a esse olhar impudico, espezinhou impiedosamente o carreiro, largando atrás de si uma nuvem de pó. Perdida no seu mundo feérico, Verónica lá foi seguindo como pôde a mãe.
— Tu aqui, Nair?! — bradou confusa, reconhecendo a vizinha. — O que aconteceu?
— Acalma-te, mulher, acalma-te! — rogou-lhe a mensageira.
Vendo-a empalidecer e tremer aflita, Nair entregou-lhe o telegrama, que ela rasgou sem cerimónias e leu num golpe de lince, antes de pregar os olhos negros no azul do infinito e sorrir angelicamente.
— É do Arménio! Ele, chegou bem, pois chegou? — deduziu a mensageira.
— Graças a Deus, Nair! — suspirou aliviada, acenando jovialmente à filha.
— Ele chegou bem, pois chegou? — insistiu a curiosa.
— Sim, Nair, graças a Deus, o Arménio teve boa viagem — respondeu apaziguada, enxugando as lágrimas de alegria que em boa hora lhe regavam a alma ressequida.
— Estás a ver como Deus não dorme, Norina! — disse a vizinha confiante, vendo-a sorrir assim para a filha.
— É do pai! — suspirou a mãe, mostrando-lhe orgulhosamente o telegrama.
— Ah, o papá está vivo! — exclamou a criança radiante, largando as sandálias e aninhando-se nos aconchegantes braços maternais.
— Qualquer dia, o teu pai está de volta com uma boneca como as que estão nas vitrinas da rua Direita, Verónica! — comentou a vizinha radiante.
__ Como as remelosas da rua Direita, não! O meu papá vai trazer uma maior e muito mais bonita de França, Nair! — exclamou a menina felicíssima, consultando a mãe com aqueles seus olhos vivos.
— Ai é?! - retorquiu-lhe a mensageira reinadia, empiscando à Norina.
— É, pois é, mãezinha? — adiantou Verónica carinhosa, passando-lhe a mãozita suja, mas carinhosa no rosto para lhe enxugar as lágrimas.
— Sim, filha, se Deus quiser!... O papá nunca faltou às suas promessas, pois não?
— Nunca, mamã, e ele prometeu trazer-me uma boneca assim grande! — recordou a mocinha , abrindo os braços o mais que pôde.
— Sim, Verónica, uma boneca assim grande como tu! — confirmou a mãe, medindo-lhe a altura e deixando o indicador espetado abaixo dos seios.
A esperteza da pequena deixou a vizinha embasbacada. Depois de prodigar palavras de encorajamento àquelas almas saudosas, Nair voltou para o Calvário, deixando-as a desfolhar as videiras para a vindima.

Apaziguada e animada com as novidades que recebeu na semana seguinte em plena lagarada, Norina começou a esquecer os maus presságios e a embarcar também no sonho do marido, imaginando-se, ali na Timpeira, numa vivenda com uma varanda virada para a estrada, para ver as corridas de Vila Real, cujo célebre circuito urbano fazia lembrar o famosíssimo Mónaco, e outra para o rio Corgo, onde o Arménio, ainda rapazote, nadara tantas vezes em coiro e, velhote, tencionava passar os dias a pescar.
Ah, como era bom sonhar assim!

Nos dois meses e meio, que a separavam da quadra natalícia, em que os laços familiares se revigoravam ou se reatavam, ela mostrou-se muito corajosa, levando a filha à escola, cuidando do lar e do tio Rodrigo. Coitado do herói de La Lys, se não fossem os malditos gases alemães, que respirara nas trincheiras da linha Marginaux e pelos campos de Verdun, talvez não estivesse tão acabado e não sofresse tanto como parecia sofrer. Contudo, com o agravamento da doença do tio, na segunda semana de Outubro, Norina teve que se mudar para Almodena com a Verónica, para o assistir nos últimos dias.
Foi nesse ambiente mórbido e doentio, de longas e dolorosas horas a vigiar a morte, que Verónica aprendeu também os pequenos gestos da solidariedade humana. E, de vez em quando, sentindo o tio Rodrigo elevado no sono, abeirava-se da mãe e cochichava-lhe baixinho ao ouvido: quando for grande, quero ser freira! A mãe passava-lhe a mão pela madeixa e olhava-a com ternura, sorrindo apenas. Por vezes, o moribundo, fingindo-se dormente, espiava-lhes o movimento dos lábios e, falando endofasicamente com o Altíssimo, rogava-Lhe que guiasse os passos da netinha, como ele afectuosamente lhe chamava, e a ajudasse a realizar tal desejo, se tal fosse esse o desígnio dela.
Aquela atroz agonia, há muito que o bom Rodrigo Valadares a aceitara e a oferecera em desagravo pelos sofrimentos do Homem, que aos trinta e três anos, quase dois mil anos antes, fora crucificado na Palestina e revolucionara o Mundo com a Sua mensagem de Amor.

No fim de Outubro, o tio, sentindo chegar a sua hora, mandou vir o notário a casa e ditou-lhe as últimas vontades. Porém, caso falecesse antes, o testamento só deveria ser aberto depois do Natal.
Apesar de um inelutável pressentimento, a sobrinha encorajava-o, dizendo-lhe que ainda veria o Arménio e festejariam juntos o nascimento do Menino Jesus; a Verónica, essa, pegava-lhe na mão e bafejava-lha para não a sentir tão gélida, sussurrando-lhe ao ouvido: o avozinho ainda me há-de ver vestida de branco como as madres enfermeiras.
O velhote, sempre lúcido, mexia dificilmente os ossinhos da cabeça e sorria-lhe meigo, soltando murmúrios que já não chegavam a ecoar, mas que tanto comoviam a resignada Norina. Pobrezinho, como deveria sofrer!
Finalmente, quis o Criador que o tio Rodrigo desse o seu derradeiro suspiro na manhã do dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro de 1971, segunda-feira, aos setenta e sete anos, depois de, na véspera, ter recebido a extrema unção e comungado pela última vez, como mandavam as leis da Santa Madre Igreja.
Quando o viu fechar os olhos e enclinar bruscamente a cabeça na travesseira de linho, Norina deixou escapar uma lágrima e pediu aos vizinhos consternados que avisassem o senhor abade, o reverendo padre Ferreira, da morte do homem, com quem o sacerdote simpatizara logo no fim da primeira missa naquela paróquia, vinte anos antes. Um dos membros da comissão fabriqueira da igreja ofereceu-se logo para tratar do funeral, enquanto outro se prontificou para lavar e vestir o defunto, o que a Norina, pudica como era, aceitou e agradeceu prontamente.
Apenas saiu do solar, a triste novidade do trespasse do herói de La Lys voou célere pelas vielas das aldeias do concelho e do distrito. Nas horas que se seguiram, a sala, onde se velava religiosamente o féretro, foi pequena demais para conter toda a mágoa e a sentida vénia de quantos se inclinaram diante do ataúde do homem que, em 1917, desafiara as metralhadoras alemãs e, num acto de coragem, se propusera para ir, rastejando sob o fogo inimigo, buscar os géneros alimentícios que salvaram da morte certa a guarnição sitiada, o que lhe valeu o reconhecimento do governo português, que lhe atribuiu a medalha da Cruz de Guerra de 2ª Classe e uma pensão vitalícia.
Na missa de corpo presente, o pároco, que reunira uma dúzia de colegas para o ofício, fez um elogio fúnebre que arrasou completamente aquela assembleia triste. Vestidas de preto, as sobrinhas assistiram dignamente à cerimónia e encabeçaram o numeroso séquito que acompanhou o tio até à última morada.
Na quinta-feira, 4 de Novembro, Norina, que regressara à sua casa do Calvário na véspera, pouco depois do enterro, escreveu uma carta ao marido, dando-lhe a conhecer a dolorosa novidade e prodigando-lhe os habituais conselhos de prudência. No envelope, a Verónica meteu um pedacinho de papel, onde desenhara a boneca que gostaria de receber no dia de Natal, antes de irem à missa beijar o Menino Jesus. Contudo, como andava a trabalhar longe de casa, Arménio só leria a triste notícia uns quinze dias depois, no terceiro Domingo de Novembro.

Em França, o vila-realense assentara arraias numa aldeia do município de Besançon, no vigésimo quinto departamento do território gaulês, Valdahom, onde havia uma guarnição militar, fornecedora de muitas obras para os construtores civis da região, o que justificava o contínuo engajamento de mão-de-obra estrangeira. A Entreprise Parafini, a quem fora indicado, adjudicara uma caserna do exército e devia entregá-la dentro de quinze dias. Atarefado como andava, o patrão, um francês de ascendência italiana, contratou-o na hora, mas, perspicaz e ambicioso, condicionou o engajamento definitivo do português ao seu desempenho naquela azafamada empreitada. E o consciencioso Sala não o decepcionou.
Feliz da vida, com o contrato na mão e legalizado, Arménio escreveu imediatamente à esposa, contando-lhe pormenorizadamente as suas tarefas diárias, depois de chegar do trabalho, com mais três outros colegas de quarto, que lhe iam ensinando algumas palavras de francês para se desenrascar, enquanto lavavam a roupa, faziam de comer ou lavavam a louça. Apesar das nevadas e das geadas, que tantas frieiras lhe fizeram estoirar nas mãos, o transmontano lá ia aguentando euforicamente aqueles sacrifícios. Drogado por um quimérico frenesi, nem doze horas de trabalho árduo conseguiam esmorecer a sua endiabrada genica, espantando quem com ele lidava de sol-a-sol. É que, assim hipnotizado pelo sonho, Arménio nunca desanimava e via tudo cor-de-rosa, a maior parte dos conterrâneos, minados pela saudade, só pensavam no infortúnio e nas coisas más da vida, aceitando resignadamente as contingências e as fatalidades do destino. Não, eles nem se atreviam a sonhar, porque não sabiam que é o sonho quem comanda a vida...

Na última semana de Novembro, porém, o transmontano teve um ligeiro acidente: uma placa de cimento partiu-lhe o dedo grande do pé direito, forçando-o a um mês de baixa, notícia que ocultou à mulher, para que ela não se alarmasse e, cismática como era, não passasse a vida a cismar com a agoirenta cigana.
À medida que a quadra natalícia se aproximava, o seu coração batia desesperadamente, temendo não curar a tempo de poder sair de França para passar o Natal com a mulher e a filha, sobretudo depois do abalo que elas sofreram com o desaparecimento do tio Rodrigo.
Perante tal infortúnio, a Caisse Primaire d'Assurance Madie de Besançon — a caixa de previdência francesa — ficou espantada com a coragem e a alegria de viver do Sala, sempre que passava à visita médica. No vigésimo segundo dia de baixa, e apesar de ainda ter mais uma semana, Arménio tomou a iniciativa e apresentou-se, ao inspector de Besançon, pedindo-lhe que o deixasse ir trabalhar mais cedo.

Naquelas três longas semanas de repouso, Arménio conseguiu, depois de muito gatafunhar e sarrabiscar, desenhar a vivenda dos seus sonhos numa folha de papel quadriculado. Agora, que a tinha a planta diante dos olhos, até parecia que o esboço ganhava uma nova dimensão e a realidade emergia magicamente do papel amarrotado. Mas como era encantador o pôr do Sol na Timpeira!
Num ápice, vencera o espaço, o tempo e a distância e vi-a nítida e rósea nas suas retinas maravilhadas. Pelo seu pensamento vagabundo ecoavam os murmúrios da cachoeira do rio Corgo, a beijar-lhe o extremo do prédio, enquanto os suspiros e os beijos da sua Norina lhe arrepiavam o corpo, lá na varanda da traseira, longe das miradelas indiscretas dos automobilistas. Agora, que o patrão lhe dera um quarto só para ele, na solidão da cela encantada, Arménio deleitava-se a sonhar com aquele tão desejado futuro cor-de-rosa e o delírio, caindo sorrateiramente do mundo etéreo, colava-se-lhe à epiderme rugosa. No cérebro empolado, desfilavam as imagens doces e amargas dos últimos anos de vida na sua bila natal e, sobretudo, o pesadelo rubro e negro do sangue que vira correr em África, lá pelo capim dos musseques do Nambuangongo, quando empunhava as patrióticas G-3: a síndroma da guerra era o maior fantasma que a sua consciência atribulada lhe devolvia nas longas noites de insónia, catapultando-o para as profundezas de um inferno indolor.
E, no meio daquele turbilhão voraz, sempre que invocava o auxílio de Deus, ouvia uma voz que lhe sussurrava incessantemente: a Norina há-de ser minha! A Norina há-de ser minha! Assarapantado e furioso, saltava da cama e, de olhos a chispar fogo, cerrava os dentes e os punhos, pronto para afrontar o espírito cobarde que lhe transtornava os doces devaneios. Céptico, nunca acreditara em bruxas, mas aquelas aparições nocturnas começaram a abalar profundamente as suas convicções, suscitando-lhe ao mesmo tempo um ror de ciúmes quezilentos. E até a sua incredulidade vacilava terrivelmente com o eco insano da noctívaga milonga, quando esta lhe repicava absurda na cabeça e lhe estoirava os tímpanos, enfurecendo-o. Um dia, pensava, haveria de tirar todas essas dúvidas, ajustar as contas do seu rosário e expiar os pecados, mesmo que a penitência o obrigasse a ir pé, em peregrinação, a Fátima.

Entretanto, Arménio, que nunca mais pusera os olhos no Raimundo Faia, conhecera, um rapaz do Fiolhoso, o Fortunato Galela, que emigrara para França nos meados de 1960. Refractário e sabendo que nunca mais poderia voltar a Portugal, este casara-se com uma francesa, de quem tinha um casalinho. Homenzarrão rude, mas de coração generoso, o Galela foi, nas horas vagas, o seu professor de francês; fora a Martine, a esposa dele, uma francesa de ascendência polaca, que lhe lavava a roupa, quem o aconselhara o Parafini, o primeiro namorado a quem oferecera a virgindade, antes de conhecer o Fortunato num baile, a testá-lo como chefe de equipa.
Por duas vezes, nos dois primeiros domingos depois do acidente, Arménio passara o dia com eles, contando-lhes as saudades que sentia da Norina e da Verónica. Galela era em tudo diferente do Faia: muito mais humilde e sincero. Da Martine, generosa e simpática, então nem se falava: era uma jóia de pessoa, a madame.

No dia 18 de Dezembro, sábado, pelo cantar do galo, Fortunato foi levá-lo ao comboio. Ao despedir-se dele, meteu-lhe no saco de mão umas bonecas que a filha já não usava, mas que, tão prezadas, ninguém diria que haviam sido estreadas.
— Boa viagem, Arménio e vê lá se não te esqueces de nos trazer a Norina contigo!
— Oh, ela não se iria habituar a este clima, Fortunato!
— Vá!, não arranjes desculpas, que assim sozinho, não é vida de homem, rapaz!
— Adeus, Fortunato, adeus! — disse o transmontano, pisando o degrau da carruagem.
— A Martine quer conhecer a Norina. Trá-no-la contigo, nem que seja por uma semana, ouviste? Se for preciso dormireis no nosso quarto!
— Eu vou pensar, eu vou pensar...
— Ei, não tenhas medo que eu não ta roubo, Arménio!
— Ah! nunca se sabe, Fortunato, nunca se sabe! — gritou o vilarealense, acenando e empiscando ao conterrâneo.
E comboio desapareceu lentamente, deixando o Galela a sorrir.
A viagem, agora que estava legal, que tinha uma autorização de trabalho e uma carta de séjour, Arménio fizera-a, na maior parte do tempo, a cochilar. Contudo, ao longo da linha férrea, balanceado pela trepidação da carruagem, pudera admirar as imensas paisagens da França e da vizinha Espanha, onde o general Franco continuava a ditar a sua lei. No país de Gustave Eiffel, o presidente Pompidou, que sucedera ao celebérrimo general Charles De Gaulle em 1969, depois de um referendo desfavorável, ia afrontando as sevícias de uma doença terrível, cochichava-se. Depois da 2ª Guerra Mundial, que dividira e arruinara a França, só a contratação massiva de emigrantes, mão-de-obra valorosa e barata, permitira a reconstrução e o desenvolvimento industrial do país. Não admira pois, que o bem-estar, assegurado pelo estado-providência, tanto fascinassem quem, não o tendo, a ele aspirava.

Quando, no último comboio de domingo, a Maria Fumaça deu entrada na estação de Vila Real, o emigrante, surpreendido pelos acenos exuberantes da esposa e da filha, não conseguiu evitar que, mesmo diante dos outros passageiros que ali se apeavam, as lágrimas lhe escorressem sinuosas pelo rosto. Mal pousou o saco da merenda e a mala de cartão roçado, e ainda curvado, foi babado pelos lábios da Verónica.
— Uf! demoraste tanto, malandro! — barafustou a filha, puxando-lhe carinhosamente as orelhas quentes.
— Está tudo bem, Norina? - perguntou comovido, abraçando-a e beijando-a.
— Oh!, como de costume, Arménio! — respondeu a esposa resignada, enxugando os olhos humedecidos e acarinhando a inocentinha com quem passara aqueles meses de amargura e solidão.
— Então?!... Onde está a minha boneca, que eu não vejo, papá?
— Calma, que não me esqueci! A boneca está aqui no saco, filha.
— Ah!, então estás perdoado por teres ido embora sem me dizeres adeus! — exclamou a espertinha, fitando-o benevolamente.
Norina, segurando a mala do marido, deixou escapar um sorriso e, olhando a boneca que saía do saco do farnel, murmurou arrepiada:
— Vá, deixem-se de meiguices e vamos, que se faz noite!
Silencioso, Arménio lançou-lhe um olhar complacente e, pegando na mala de cartão, meteram-se a caminho do Calvário, recordando sucintamente os acontecimentos dos últimos quatro meses. Enquanto que a mãe levava o saco da merenda a tiracolo, Verónica corria à frente dos pais, saltitando e embalando a boneca como um filhote.
Durante os quase dois mil metros de atalho, fizeram pequenas pausas para descansar, ignorando os conhecidos que passavam e acenavam. Uma brisa fria vinha congelar-lhes o bafo, realçado pela luz que, de onde a onde, pendia das campânulas dos candelabros públicos. A escuridão surpreendera-os a meio do trajecto, envolvendo-lhes os cochichos num manto pudico. Intimidado pelo regozijo de quem, reconhecendo-os, os saudava espalhafatosamente, o casal quase se escondia para não ter que sorrir também e quebrar o luto que velava os seus corações pundonorosos.
Naquela noite, Norina serviu ao marido um prato de batatas cozidas com couves tronchudas e uma posta do rabo do bacalhau, que demolhara para os bolinhos da noite de Consoada. Gulosa, Verónica preferiu mordiscar um pedaço de chocolate francês e ir mais cedo para a cama com a boneca, concedendo aos pais aquela intimidade que faz renascer da alma os desejos mais voluptuosos de dois seres apaixonados, tão famintos daquele amor ressonante que só a escuridão, o calor das mantas e o silêncio sabem ressuscitar e encandear nos seus olhos.
As palavras foram consumidas pelo fogo devorador que aquela longa e penosa ausência armazenara nas suas veias solitárias e, agora, em ardente simbiose, lhes jorrava pelos poros. E aquele saudoso reencontro, começado timidamente à luz das brasas, prolongou-se pela noite fora, até que o sono os arrebatou àquela platónica e enamorada contemplação.
Quando se ergueu, a filhinha, vendo-os tão dormentes, sorriu safada, fechou cuidadosamente a porta e, comendo mais um bocadinho de chocolate, encerrou-se novamente no quarto, viajando solitária pelo seu mundo feérico.

A segunda-feira, 20 de Dezembro, nascera atrofiada. Sem o mata-bicho e a fogueira que, no Inverno, cortava o friura do granito, eles ficaram desnorteados. Não fosse o despertador, e aquelas almas sequiosas só largariam as mantas na hora da sesta.
Enquanto a esposa acendeu o lume, Arménio foi à padaria comprar uma sêmea. Pelo caminho, saudou alguns vizinhos, mas não se atardou, pois o arisco do Marão congelava-lhe as orelhas. Em casa, Verónica, que entretanto bebera uma tigela de leite, fora bulir na mala do pai e descobrira uns embrulhos que, apalpados, davam a sensação de ser bonecas, mas preferiu fazer-se despercebida, não fosse ele ralhar-lhe.
Naquele primeiro dia em Portugal, o mata-bicho do Arménio foi um cálice de aguardente e dois figos secos, enquanto a Norina comeu as castanhas cozidas no sábado e esquecidas na panela que aquecera nas brasas. A curiosidade da pequenita não cabia dentro dela e a língua não parava de lhe bater impacientemente nos dentes, mas estes não cediam à pressão da curiosidade.
Depois do almoço, desceram a pé até Almodena pelos atalhos, para arejarem os muros de perpianho que vira nascer, viver e morrer o tio Rodrigo, evitando a rua principal, não fossem os vizinhos pôr-lhes em carne viva a tão dorida memória.
Um silêncio confrangedor enchia a casa até ao telhado; cada objecto de ferro, de madeira ou de barro, mesmo frio, onde espelhavam os seus olhares nostálgicos, devolvia-lhes o sorriso caloroso do querido velhote, fazendo-os pensar na fragilidade da existência.
No quarto, ainda por desfazer, lá estava dependurada a caçadeira de um cano; na mesinha de cabeceira estendia-se o terço que viu o santo homem iniciar a longa viagem; no muro caiado da sala de jantar, onde fora recebido o compasso, um retrato de cinquenta anos devolvia aos visitantes a memória da tia Elvira, que um tombo estúpido, quando colhia cerejas no quintal, roubara ao marido, em 1930, aos vinte e cinco anos de idade, grávida, arrastando com ela para a sepultura o herdeiro que o herói de La Lys tanto desejara e mimara durante sete meses.
Esse trágico acontecimento quase levou o intrépido Rodrigo ao manicómio. Desgostoso, nunca mais pensou em contrair segundas núpcias e levou, durante mais de quatro décadas, uma vida de ermita, implorando a Deus que o chamasse num dia abençoado. E o Altíssimo não podia ter escolhido melhor hora que o dia de Todos-os-Santos.

Até à tarde do dia 24 de Dezembro, as suas tarefas resumiram-se às tradicionais compras de Natal. No cabaz não faltou o bacalhau e a couve troncha, o polvo e a raia, tal como a farinha e o fermento. Enquanto a esposa preparava a lareira e os condimentos para os fritos, Arménio e a filha partiam amêndoas e nozes, aguardando ansiosamente pelas primeiras lêvedas com molho de canela. Os gulosos só estorvavam a cozinheira, mas ela, corada, de lenço atado na cabeça e de avental enfarinhado a esconder-lhe a saia cinzenta, não dava descanso as mãos e às pernas. Para matar o tempo e a ansiedade, o emigrante pegou num pedaço de pinho e talhou então um rapa, ignorando a prosápia, com que Verónica mimava as bonecas. E, inadvertidamente, pegou no rádio coberto de choinas, mas nem o ligou, tão viva e repentina lhe ocorreu a imagem do tio Rodrigo e, com ela, a recordação do testamento. Pegando numa rodilha, ele limpou a cinza e, de costas para a esposa, indagou aéreo:
— Norina, o que será que o tio terá deixado no testamento?
— Sei lá, Arménio! Olha, foi coisa que nem me passou ainda pela cabeça — disse ela absorvida pelo estrugido na sertã.
— Se calhar, as terras e a casa da Almodena...
— Nem vale a pena pensar nisso, homem — cortou logo a esposa, remexendo os fritos.
— Tens razão, Norina — acatou o marido, baixando a antena do rádio e arrumando-o num canto da cómoda da sala de jantar.
Antes da ceia, ele embrulhou meia dúzia de bolos de bacalhau e três pedaços de polvo frito e foi oferecê-los à Nair, a vizinha do lado, a confidente das boas e das más horas, cujo marido, agora que Arménio fora e viera são e salvo, começava a arranjar coragem para tentar também o pulo.
Agradecendo a lembrança, ela confidenciou envergonhada:
— O meu Joaquim também queria ir para França...
— A sério, Nair?
— Sim, Arménio, mas só na Primavera ou no Verão. É que ele não se dá muito bem com o frio e, ao que parece, onde estás neva muito.
— Lá isso é verdade, Nair!
— Depois das festas, ele pode ir falar contigo, pode?
— Claro, Nair. Ele que não se acanhe, está bem?
— Obrigado, Arménio, e boas-festas! — exclamou grata, segurando o presente.
— Obrigado e igualmente um Feliz Natal e um Bom Ano Novo para vocês, Nair — disse sorridente, acenando à vizinha.



Continua em capítulo IV

LMP - Luxembourg 1984 - Lud MacMartinson

Caminhos de Ilusão: Capítulo II


CAPÍTULO II



No turbilhão daquela paixão imensa, havia uma voz que lhe dilacerava a alma e lhe repetia sem cessar que, no dia em que o Arménio atraiçoasse o seu amor ou a largasse, abrir-se-ia diante dela um abismo de infelicidade e tristeza, onde ela mergulharia irremediavelmente. Sentindo-a tão mortificada, o marido implorou-lhe condoído:
— Deixa para lá essas babosices, Norina!
— Oh!... — resmungou decepcionada, sacudindo a mão piedosa que o marido lhe passava no rosto avermelhado.
— Mas porque é que teimas em acreditar nessa desgraçada ladainha? Porquê, Norina, porquê? Tu não sabes que as bruxarias são contra a lei de Deus? Olha que o demónio não precisa que a gente se lembre dele! Vá, atira lá essas ideias para trás do Marão e tem fé em Deus. Olha..., eu falei com o Raimundo. Estive também com três emigrantes que trabalham com ele em França. Eles dizem que agora, que já conhecem o caminho, não há perigo e que, em três anos, se aproveitar bem os biscatos que fazem a negro, poderei ganhar para as dívidas e para fazermos uma vivenda no nosso prédio da Timpeira. Tu sabes quanto é que eles arrecadam por mês? Vá, imagina lá! ― sugeriu animado, fazendo vibrar a voz de emoção, depois do longo monólogo.
A esposa permaneceu muda, soluçando e enxugando as lágrimas ardentes que jorravam das suas órbitas alucinadas. Vendo que a mãe já tinha a ponta do avental encharcada, Verónica foi buscar-lhe a toalha do rosto e estendeu-lha nas mãos. Chateado pelo silêncio absurdo da mulher, o Arménio repetiu-lhe:
— Imagina lá quanto é que eles poupam por mês?
— Que me importam as ganâncias, as riquezas e os palácios dos outros? Se eu quisesse ser rica, nunca teria casado contigo — replicou-lhe energicamente a esposa. — Porventura, tu também já alguma vez imaginaste quantos filhos de lavradores abastados, quantos homens afortunados me foram pedir em casamento? Ai, homem, parece que a léria do faroleiro conta mais para ti do que o amor...
— Cala-te, Norina, cala-te que me enervas! — gritou zangado, abafando a voz.
— Ai, Arménio, se soubesses como a ganância é a perdição das almas! Estou mesmo a adivinhar que vou passar o resto da minha vida sozinha. A cigana bem mo disse...
— Mas que te disse a cigana, Norina? Que te disse a maldita da cigana?! Vá!, basta, basta de choraminguices! — berrou o marido exaltadíssimo, tomando as rédeas à cólera.
— Eu sei, Arménio, eu sei...
— Oh!... Mas tu sabes o quê?
— Vai, — prosseguiu a esposa corajosa, num tom zombador — vai bem depressa com o Faia e a súcia dele e arranja também por lá as amantes que quiseres, porque, pelo que vejo, o amor da mulher e da filha já ardeu...
— Cala a boca! Acabou-se, Norina! Nem mais uma palavra! Ouviste? — ditou furioso.
— Eu sei que tu andas aborrecido por a vida não te correr muito bem, mas, por amor de Deus, não decidas nada hoje que é Sexta-feira-13!
— E lá voltas tu outra vez com o bruxedo, Norina!... Olha que o diabo não dorme! Porque é que te lembras tanto dele?
—Pronto, seja o que o destino quiser! — balbuciou resignada, soluçando lacrimosa.
E aquela violenta altercação acabou por lhes recocar o almoço e lhes tirar a fome. Sentado à mesa, Arménio abafou aquela tempestade demoníaca num silêncio sagrado. As garfadas, que levava maquinalmente à boca, mais pareciam o rito funesto, de quem está farto de viver, do que a necessidade vital, de quem parecia decidido a virar céu e terra para realizar o maior sonho da vida.
Verónica, furtando-se mentalmente àquele patético diferendo, imitava religiosamente a postura paternal, não se esquecendo de lançar amiúde os seus olhitos compassivos à mãe. Resfriada a demência, Norina postou-se debaixo da padieira da janela, encheu-se de coragem e, mirando o horizonte nublado, murmurou a medo:
— Tu bem podias dar a resposta ao Faia amanhã, não?
— Sinceramente, mulher, não sei como vós, tão beatas, podeis acreditar e dar tanta importância à lengalenga dessas lambisgóias ciganas!
— Arménio, tu bem sabes que eu nunca fui à bruxa, mas desde aquele dia em que, por gozo, quando namorávamos, deixaste ler a sina à cigana...
— Que raio de trapaça nos disse a cigana, que já nem me lembro?!
— Vê lá se te recordas...
— Ah, Norina, depois desse dia, se tu soubesses pelo que assei em Angola! Aliás, só Deus deve saber como e porque escapei de tal inferno! Por isso..., pior do que isso, não acredito que me poderá voltar a acontecer, mulher...
— Eu sei que tu, a adivinhar pelas frequentes insónias dos primeiros meses, deves ter passado uns maus bocados na guerra, mas vê lá se não é verdade que a cigana nos afiançou que nos casaríamos, que teríamos apenas uma menina, mas que tu só a verias e ouvirias pela primeira vez, quando ela andasse pelo seu próprio pé?! E tu que lhe fizeste? Riste-te dela, não foi?
— Realmente...
— Mais, em Lisboa, quando te fomos esperar à descida do avião, no aeroporto, quem é que não parava de te gritar papá-papá e te acenava ao longe, sem que tu te mexesses, porque nem desconfiavas que pudesses ser tu o pai dessa menina, quem?
— Sim, mas isso não quer dizer nada - desculpou-se prontamente o incrédulo.
— Está bem, homem, eu sei que tu ligas pouco ou nada ao que te digo, mas...
— Mas quê?! Vá, e que mais nos disse a cigana? Caramba, Norina, tu que vais todos os domingos à missa, não sabes que é pecado acreditar nas bruxas?
— Então quer dizer que se te acontecer alguma...
— Não, Norina, não quero que te sintas culpada de nada. Mas olha, por essa ordem de ideias, estou quite com as bruxas e com as ciganas, porque eu tomei a decisão de me ir embora num domingo de novena, na igreja de Nossa Senhora de Almodena. Por isso, está descansada que quando eu me for, um coro de anjos me acompanhará, mulher.
— Não, enganas-te, Arménio! Os anjos não podem acompanhar os gananciosos que põem a alma no dinheiro!
— Olha..., então que me acompanhe ou me leve o diabo!
— Ai, meu Deus, que blasfémia! — gritou atónita, benzendo-se aterrorizada pelo olhar tresloucado do marido.
— Norina..., que vida será a nossa, Norina?! Tu pensas que é com este salário de miséria que algum dia conseguiremos ter uma casa? Eu não sou muito de andar a bater todos os dias no peito e a papar hóstias, mas sei muito bem que o destino somos nós que o fazemos. Mais, ele depende só de nós... O que as bruxas querem é ganhar guita...
— Não é nada o destino, homem, é o desígnio de Deus e Ele nunca abandona quem O adora e anda na Sua graça, ouviste?
— Como estás enganada, mulher! Tu pensas que é a deitar água benta na cabeça ou a bater no peito é que se ganha a vida, é? Já te esqueceste da miséria que viste em Lisboa, quando foste à Brandoa? Diz, queres vir comigo para lá e viver numa daquelas barracas e passar a vida a cheirar aquela pestilência, queres? Ah, Norina, Norina!!!
— Mas que vai ser de nós, Arménio? — inquiriu aflita, olhando para o quarto, onde a filha se refugiara e tirava serenamente o cochilo da sesta.
— Quererás, porventura, ir a monte comigo e os outros desgraçados e ficar pelo caminho, sob as manápulas ou a alçada de algum desses filhos-da-puta da pide? Calma, mulher, calma, que o teu dia também há-de chegar! No Natal, venho cá buscar-te de táxi, se for preciso. Lá sozinho é que eu não o passarei — assegurou Arménio, convicto.
— Se calhar! — murmurou a esposa, duvidosa, limpando os olhos e assoando-se.
E, comovido pelos seus soluços, o marido não lhe disse mais nada. Soltando as rédeas aos sonhos impertinentes, ele pôs um ponto final àquela maldita conversa, dizendo-se que já tivera mais arrelias naquele dia do que em sete anos e meio de casado.
Depois de arrumar a cozinha, Norina foi deitar-se junto da filha para descansar um pouco e aliviar a tremenda dor de cabeça que sentia. Aproveitando a tarde, Arménio pegou na bicicleta foi à aldeia natal da esposa, Almodena, para falar com o tio Rodrigo Valadares, irmão do falecido sogro, herói da Primeira Guerra Mundial.
De retorno a casa, pelo pôr do Sol, deu com os olhos no carro do Faia parado à frente da porta. A esposa e a filha guardavam os arrufos das panelas, onde cozinhavam a ceia.
— Ofereceste de beber ao Raimundo, Norina? — perguntou animado, sorrindo meigo.
— Ele disse que deixava aqui o carro à sombra e que se, entretanto, não voltasse, te fosses encontrar com ele e os sócios à tasca do Feliciano e não à Pompeia como estava combinado. Também me falou que era mais seguro. Porquê, Arménio? Tu vê lá no que te metes, homem, que eu não estou a gostar nada desses mistérios!
— Porquê?! Sei lá! Talvez porque são amigos do taberneiro, porque...
— Tu sabes...
— Juro-te que não. E a que horas?
— Agora, depois do pôr do Sol. Ah!… — acrescentou algo inquieta — também me disse que ficasses ali por perto e esperasses que a Maria do Feliciano viesse à porta ou se acendesse a luz no primeiro andar. Coisas estranhas, Arménio! Tu toma cuidado, homem, vê lá no que te metes! Olha que eu ouvi dizer que a polícia tem matado muitos na raia de Espanha e por esse Portugal abaixo. Tu vê lá, olha que o Faia não é como se pinta! O Faia...
— O Faia é um homem que sabe muito da vida, Norina. Bom, são horas. Ceamos agora ou depois? — perguntou indeciso, mirando o vermelhão escuro do Sol poente.
— A ceia está pronta, mas seria melhor ires falar primeiro com ele, antes que se faça tarde de mais. Enquanto isso, eu e a Verónica aproveitamos para rezar o terço.
— Então rezem uma dezena por mim — rogou pioso, empiscando à herdeira séria.


Temendo qualquer cilada da polícia secreta, o vila-realense desceu a calçada do Calvário, contornou o S. Pedro pela rua Direita, dobrou a esquina da Pompeia e, subindo a avenida Carvalho Araújo, fumou um cigarro para disfarçar o medo, atordoada pela algazarra infernal dos seminaristas que, estando na hora do recreio, brincavam debaixo das ancestrais tílias. O sol ia-se escondendo por detrás do Marão.

De longe, avistou a Maria na soleira da tasca, mirando para baixo e para cima. Pouco depois, viu a luz que se acendeu lá no primeiro andar da taverna do Barrigana. Enquanto apagava a prisca no muro da praça do mercado, ele viu o Raimundo entrar e, olhando à sua volta, lá lhe seguiu descontraidamente as pegadas.
Os empregados municipais limpavam os arredores; nos cafés havia quem tomasse a sua bica diante do ecrã preto e branco da televisão; as camionetas do Cabanelas recolhiam à garagem e uns transeuntes descontraídos saboreavam as delícias do fim-de-semana antecipado, ao passo que outros procuravam desesperadamente a última boleia que os levasse para a terra, enquanto, nos bastidores da liberdade perdida, os cães-de-guarda do regime colonial armavam pacientemente as suas ignominiosas patranhas, ignorando os gritos e as súplicas, de quem sofreria a cobarde tortura.

A contestação à guerra no Ultramar ganhara outra dimensão, desde que os primeiros cadáveres dos filhos do povo haviam sido repatriados entre quatro tábuas, deixando as aldeias transmontanas, sobre quem se abatera tal desgraça, em estado de choque. A ditadura, cochichava-se, tinha os dias contados, mas o povo havia perdido a esperança e já não acreditava mais na restauração da Liberdade que nunca chegara a gozar verdadeiramente, porque, depois do Ultimato inglês, do regicídio e das campanhas do Corpo Expedicionário Português pelos campos de La Lys em França, duas gerações viviam sob a lei da rolha e do “ não sei, não vi e não fiz nada ”, que o orgulhoso e solitário Salazar tanto adorava. Os conselheiros do regime fascista, sabendo o povinho resignado, até se deram ao luxo de aconselhar ao Presidente do Conselho de Ministros, que as Conversas em Família na televisão muito popularizaram, uma apoteótica digressão por Trás-os-Montes, a Província adormecida. Isolado internacionalmente, Portugal caminhava fatalmente para o colapso.

No sábado, Arménio, que as vicissitudes da existência tinham transformado em pedreiro, carpinteiro, cobrador do Cabanelas e em electricista, desde que regressara de Angola, decidiu recuperar as poucas economias, que benevolamente emprestara a uns conhecidos, a quem pior sorte batera à porta, mas esses créditos, caídos em saco roto, não lhe puderam valer naquela aflitosa ocasião. O seu coração angustiado lembrou-se então do senhor Morgado, que possuía uma quinta para os lados de Lordelo, e, enchendo-se de coragem, lá decidiu ir bater-lhe à porta, porque o orgulho o impedia de aceitar a ajuda do tio Rodrigo de Almodena.
Homem idoso, de sobrancelhas espessas e malhadas de ruças, o senhor Elísio Morgado não tinha herdeiros e vivia desafogadamente das suas terras com a esposa, a dona Alzira Macedo; homem abastado e algo generoso, muito dedicado à confraria de S. Vicente de Paula, não havia na cidade quem não o conhecesse e lhe tirasse o chapéu; a natural bonomia do seu rosto sorridente fazia dele um homem influente e respeitado.
A entrada da quinta ficava no atalho para Lordelo. Falando com os seus botões, Arménio lá ia estudando a maneira de lhe pedir ajuda. Apenas bateu à porta, foi saudado pelo latir furioso do cão e, amedrontado, aguardou atrás da cancela a chegada do patrão, apesar do bicho estar preso: é que, desde que fora mordido por um, ficara com muito medo dos cães.
Depois de uma palestra à sombra dos morangueiros, cuja ramada cobria e refrescava a área do tanque, o velhote prometeu ajudá-lo, mas, antes que partisse, pediu-lhe que acabasse de esvaziar o pulverizador de sulfato nos bardos dos geios do fundo da quinta, lá onde os pedregulhos mais lhe dificultavam a marcha. Enquanto que o moço lhe vaporizou as videiras, o senhor Morgado, assentou-se no cadeirão de vime a falar com a mulher. Ainda conversavam à sombra, quando o Arménio regressou de pulverizador vazio. Lavado o bombo, bebeu um copo de morangueiro bem fresquinho e regressou ao Calvário mais aliviado: o velhote emprestava-lhe os cinco contos para dar o pulo.

Domingo, depois da missa no S. Pedro, deixando a esposa a aprontar o almoço, lá voltou ele de bicicleta à quinta de Lordelo acabar de sulfatar os geios que faltavam. Animado pela ilusão, o electricista não se cansava de ver os sonhos espelhados nos cachos. Palmilhando videiras, pedras e terrões, tropeçando aqui e ali nos calhaus que as trovoadas haviam desnudado, esqueceu-se do relógio, das horas e do suor que lhe corria entre a pele morena e a camisa desbotada, arrebatado pela eufórica e vagabunda imaginação. Caindo das nuvens, soltou um uf! abafado, passando as costas das mãos pela testa franzida, .
“ Mas que forno, Santo Deus! ” — bufou para dentro no meio da parra.
Lá no seu mirante, Elísio Morgado espiava e matutava, protegido pelas abas de um chapéu mexicano, enquanto a mulher lhe aprontava um frugal cozido à portuguesa, o prato da sua predilecção. Pelos tempos árduos que corriam, não havia favores que não se pagassem a dobrar e Arménio sabia-o muito bem. Afinal, a tarefa, inicialmente prevista para findar à uma da tarde, só acabou depois das três, em plena hora da sesta. O patrão, talvez empanturrado pelo chouriço, ressonava ruidosamente, quando o electricista lhe tocou no braço para se despedir. Mirando-o sonolento pelos olhos corcundas e soltando um arroto, o velhote opinou cambaleante:
— E se te deixasses da França, Arménio? Olha que a saudade é muito dura, rapaz!
— Senhor Morgado, eu...
— Como sabes, nós não temos filhos e, além disso, eu poderia ainda pagar-te uma renda no fim das colheitas — explicou filosofal.
— Eu agradeço-lhe muito, senhor Elísio, mas já tenho tudo acertado para me ir embora. Se, porventura, não me der com aqueles ares, então poderemos voltar a falar.
— Pronto, Arménio, vai em paz que eu cá estarei para o prometido. Sabes, eu tenho uns cobres no banco a juros, mas há um azeiteiro de Murça que deve vir, ainda esta tarde, pagar-me uma letra e, essa, será para ti.
— Obrigado, senhor Morgado — agradeceu o moço, acenando jovial.
— Espera aí. A minha Alzira tem ali um queijo para te dar — avisou Morgado, atirando o chapéu de palha para cima da esteira.
Depois de meter o embrulho entre a coiro e a camisa, despediu-se do benfeitor, encaminhando-se para a porta. Passando junto da casota do cão adormecido, leu cave canem num pedaço de madeira e desatou a correr até ao portão, temendo que o animal rebentasse o cadeado enferrujado e lhe cravasse os dentes no tendão de Aquiles.
No Calvário, a Verónica dava largas à sua fantasia, animando as bonecas e a mãe, debruçada na janela, fitava impacientemente os paralelos da calçada, procurando descortinar a bicicleta no meio da rua, enquanto o borralho da lareira ia requentando o almoço. Mal ouviu o marido tilintar, Norina ordenou à filha que se sentasse à mesa. Obedecendo lesta, a menina colocou-se no seu lugar e começou logo a esbotenar uma côdea de pão de centeio. O rangido da porta atraiu-lhe o olhar.
— O papá que traz aí embrulhado no lenço? — perguntou curiosa, arregalando as órbitas e estendendo as mãozitas.
— Um presente da D. Alzira do senhor Elísio Morgado, filha! — respondeu-lhe feliz.
— É bom? É de comer?
— Sim, mas, para agora, temos este delicioso almoço que a mamã cozinhou com tanto esmero. Trago cá um larote, Norina! — exclamou ofegante, bufando ruidosamente.
Insensível ao sorriso cansado do marido, Norina pousou a panela sobre a mesa de pinho, serviu a filha e foi logo limpar o queijo a um pedaço de papel de embrulho, para o pôr a secar na mosquiteira que pendia do tecto. Bonito como era, aquele iria certamente conhecer terras de França, no saco da merenda do Arménio, se algum guarda não lho larapinasse na fronteira.

E os dias sucederam-se melancólica e tristemente. À medida que a hora do adeus se abeirava inelutavelmente do segundo fatídico, a alma de Norina, apesar das preces fervorosas que diariamente elevava ao Todo-Poderoso, tornava-se nervosa e abúlica. Desde aquela maldita sexta-feira 13, em que o marido lhe dissera que iria para o estrangeiro com o Faia, esse falsarrão que tanto lhe moera a cabeça para que namorasse com ele e a quem ela sempre dera com os pés, chegando mesmo a mostrar-lhe os cinco mandamentos num quinchoso de Almodena, o rosto escoava-se de sangue e o coração paralisava-se, ameaçando estancar de vez a tão atarefada rotina vital. Sempre que recordava as funestas horas de pavor, de quando o Arménio andava na guerra, e a maldita sina da cigana, que tanto lhe assisava e infernizava a cabeça, benzia-se, mas o demónio não lhe dava tréguas. Ora resignada, ora revoltada no meio das suas rezas, até chegou a duvidar da eficácia de tais preces, perguntando-se se, porventura, não seria a sua uma daquelas almas que Deus lança, de vez em quando, ao mundo para sofrer. Inocente, Verónica só se lembrava do estrangeiro quando a via chorar. No seu coração puro e na sua cabeça sonhadora, a dor e a saudade não haviam ainda assentado arraiais. Ah, como a mãe gostaria de ser criança, naquelas horas!

Caso não surgissem contratempos, o passador tencionava pôr o vila-realense em França nos primeiros dias de Setembro, talvez numa segunda ou terça-feira, aproveitando a quebra de vigilância dos guardas fronteiriços, para quem o início da semana, depois dos arraiais das romarias daquela época do ano, servia para recobrar o sono perdido com os bailaricos e as comezainas.
Entretanto, o burburinho popular fazia circular notícias horríveis: falava-se de mortes e tiroteios perto da raia de Espanha; de prisões arbitrárias e torturas da Pide, além de inúmeras deserções de jovens comunistas que recusavam peremptoriamente ser carne para canhão em África e ir defender os latifúndios dos abutres do regime fascista. Todos estes rumores só vieram, infelizmente, reconfortar os mórbidos pressentimentos de uma mulher cansada de viver com o coração nas mãos e o credo na boca. É que, primeiro, adolescente ainda, Norina perdera os seus pais, ficando sozinha no mundo com o tio Rodrigo, que a criou e a amparou até que se casou com o Arménio; depois, já grávida de sete meses, tivera que se conformar com a partida do marido para Angola, quando ninguém já pensava que ele fosse incorporado, e agora, que a felicidade começava a dar outra cor à sua vida sacrificada, surgia essa tenebrosa ideia do estrangeiro a separá-los novamente e a lançá-la nas garras da solidão.
As predições da cigana falavam de falsidade, de traição e de morte. De quem? Quando? Onde? Como? Porquê? Ah, se ela tivesse o condão de ver e impedir essas desgraças! Por vezes, nas suas conversas com Deus, indignava-se e até fazia chantagem, dizendo-Lhe que se Ele não lhe protegesse a família, até poderia perder a fé e tornar-se a mais pecadora das mulheres da cidade. Depois, surgia o temor e o remorso de ter engendrado tais pensamentos, e corria a confessar os pecados e as iras demoníacas ao padre, pedindo mil vezes perdão ao Senhor e penitenciando-se humildemente como uma cristã que era.
Desencantados os cinco contos de réis para Raimundo o pôr em França e para as primeiras despesas, Arménio fora inúmeras vezes ao terreno da Timpeira, onde se demorava e perdia em ilusórias contemplações. Eufórico, alimentava em segredo o sonho de uma vida cor-de-rosa, numa vivenda com as comodidades que ele vira na de muitos senhores, a quem fizera a instalação eléctrica. Altruísta, só pensava em livrar Norina, a sua princesa, das tarefas agrestes, que ela executava resignadamente, como se tal fosse o destino dela. Não, ele, Arménio Sala, ainda faria inveja aos brasileiros da família e aos manda-chuva da cidade, construindo ali, no prédio da Timpeira a vivenda mais bonita de Vila Real, se Santo António o ajudasse. Agora que a Verónica estava a entrar para a escola e a ficar mocinha, a esposa teria com quem conversar e passar as longas e frias noites de Inverno. Afinal, se tudo corresse como esperava, elas nunca iriam para o estrangeiro, porque, lá fora, ele aproveitaria bem todos os biscatos que lhe aparecessem e trabalharia dia e noite para que o coração das mulheres que mais amava não viessem a conhecer a saudade que, certamente, o seu iria sentir, quando, longe delas, tivesse que lavar, passar e cozinhar sozinho, coisas a que nunca fora habituado, mas a força do sonho que trazia consigo era tal que se julgava indestrutível. Assim hipnotizado, na sua cabeça não havia lugar para as doenças e os caprichos do destino. Nos longos e complacentes monólogos com a própria ilusão, o transmontano também se dizia que a guerra o vacinara para a vida e, a julgar pelos factos, teria toda a razão quem afrontara tantos dias de tiroteio em África e correra as sete artes sem nunca sofrer a mínima beliscadura: é que as seringas e as injecções que lhe haviam espetado nos braços e nas espáduas tinham sido tantas que não precisaria de mais nenhuma.

Naqueles últimos dias de espera, sempre que passava junto da estátua do Carvalho Araújo, o vigoroso conterrâneo que se imortalizara ao leme do seu navio durante a Primeira Guerra Mundial, olhava-o de olhos bem arregalados e dizia-lhe: " tu roubaste a glória ao Diogo, mas cuida-te, que o Arménio, se calhar, ainda te vai pagar com a mesma moeda. "
Diogo Cão, que escrevera o seu nome ilustre nas páginas da nossa Gesta Marítima, levando o nome e o padrão de Portugal até à foz do rio Zaire, ao desafiar e vencer heroicamente o fantasmagórico Adamastor e outros monstros marinhos, era filho de um nobre da cidade de Vila Real que permanecera fiel ao Mestre de Avis, o futuro rei D. João I, na crise de 1385. Uma lápide assinala, ainda hoje, na principal avenida da capital transmontana, os quatro muros graníticos onde o imortal navegador vira a luz do dia, no primeiro quartel do século XV, o das descobertas lusitanas, aquele que, graças à bravura dos nossos marinheiros, daria a conhecer à Humanidade as verdadeiras fronteiras da Terra.

Arménio chegou a desanimar e a perguntar-se se valia a pena dar o pulo, mas logo surgia a imagem da vivenda a marear-lhe a razão, projectando-o para o mundo fantástico onde se refugiava e resistia à realidade daqueles tempos miseráveis e às crendices da esposa. Agora, que a trouxa estava feita, queria passar as últimas horas a convencê-la de que, se tudo corresse como esperava, e correria, se Deus quisesse, já festejariam o próximo Natal um pouco melhor e, quem sabe?, até justariam as fundações da vivenda. Verónica, essa, só pensava nos baloiços, enquanto a mãe, esquecendo os maus presságios que ecoavam no seu coração, deixava escapar um sorriso tímido e rezava para que nada de mal acontecesse ao homem que tanto amava e a quem jurara fidelidade eterna. Se Deus era realmente Bom e Justo, como ela sempre ouvira dizer aos seus pais, a felicidade reinaria no seu lar até ao dia da sua morte, mesmo que para tal tivesse que conhecer a amargura e a tristeza do desditoso Vale de Lágrimas, que ela e a Verónica declamavam diariamente na Salve-Rainha, depois de rezarem o terço.
Enquanto Norina via surgir a última semana de Agosto como um ladrão na noite, Arménio tinha a sensação de ter parado no tempo. Antes, com a azáfama e a miséria quotidianas, os dias passavam-se que nem um relâmpago, porém agora, que estava à beirinha de realizar o seu sonho, os ponteiros do relógio estancavam-nos obstinadamente, para que a madrugada da partida não chegasse jamais e assim evitasse cumprir o destino que a cigana agoureira lhe lera nas linhas da mão.

No último domingo que passariam juntos, dia 29 de Agosto, eles teriam, decerto, mais um convidado à mesa: o tio Rodrigo de Almodena, o patriarca da família que, apesar de se saber com os dias contados por causa de um tumor maligno, queria sossegar e encorajar a sobrinha. Os primeiros dias de Setembro seriam muito duros para aquele coração martirizado, mas com a graça de Deus, o marido, que era forte e corajoso, também haveria de ir e de voltar são e salvo, como tantos outros transmontanos que tinham engrossado as fileiras da diáspora lusitana, provando que, de facto, como dizia o eloquente padre António Vieira, os portugueses só têm palmo de terra para nascer, mas precisam do mundo inteiro para viver.
Naquele santo dia, Verónica acenderia uma vela a S. Cristóvão, padroeiro dos viajantes e levaria o seu vestido mais bonito à missa. Toda catita nos bicos dos pés, ela mirou-se ao espelho da cozinha e, incomodada, gritou aborrecida:
— Mãe, as minhas tranças fazem-me cócegas nas costas.
— Queres que tas corte pelos ombros?
— Isso não, mãe, isso não! - recusou peremptória.
— Parece-me que bateram à porta. Vai ver, filha — disse Norina de pregador entre os dentes, enrolando o poupo negro.
Obedecendo sem hesitar, a menina correu ligeira e, forçando a mãozeira, abriu.
— Tio Rodrigo!
— Estás muito linda, Verónica! — exclamou o velhote, amparando-se na bengala.
— O tio madrugou — adiantou a sobrinha risonha, beijando-lhe ternamente o rosto moreno e consultando o relógio que estava fixado na parede da sala.
— Antes de alimentar o corpo é preciso dar de comer à alma, filha! — notou pioso.
— O Arménio foi buscar uma encomenda, mas deve estar a chegar, pois hoje vamos todos à missa ao S. Pedro e, como ele ainda tem que se confessar, antes de comungar... — disse a sobrinha, arrastando uma cadeira.
— Isso mesmo, filha, o que conta é andar com Deus — apoiou o velhote, queixando-se e sentando-se dificilmente na cadeira.
— O meu pai já lá vem, tio Rodrigo! — exultou a menina, espreitando para a calçada.
— Mas que bonita, Verónica! — exclamou o pai mimalheiro, descendo ofegante da bicicleta e baixando-se para que ela lhe beijasse o rosto. — Oh! O senhor aqui?!... Se o tio me tivesse dito que queria vir aqui à missa, eu teria pedido...
— Como apanhei uma boleia, decidi vir mais cedo e assistir convosco à santa missa no S. Pedro, Arménio — esclareceu o patriarca.
— E, vós, já estais prontas, Norina?
— Arménio, vai andando com a Verónica que eu lá descerei com o tio Rodrigo — respondeu a esposa, ajeitando os bordados que cobriam os móveis da sala de jantar.
Acenando ao velhote, o pai deu a mão à filha e foi-se embora, saudando os vizinhos e conhecidos que cruzaram na rua. No S. Pedro, os sinos da torre repicavam as badaladas da entrada, quando mergulhavam o dedo na pia da água benta. Depois de se benzer, Arménio largou a filha no banco e foi ajoelhar-se no estrado para diante confessor.
Os acólitos tilintavam as campainhas, quando a esposa, segurando o tio pelo braço, se sentou no banco ao lado da Verónica, que, de mãos erguidas, espiava o confessionário. O cónego, de paramentos verdes-amarelos, pronunciava orate frates, quando, aliviado pela sagrada confissão, Arménio ocupou o seu lugar junto da família com um sorriso nos olhos. Purificada, a consciência revestira-se de uma armadura invisível para o comum dos mortais, mas que, inexplicavelmente, ele apalpava e sentia profundamente.
No fim da missa, como paroquiano fiel, despediu-se do pároco, que o abençoou e lhe desejou muita sorte por terras de França, perante o semblante pálido da esposa. A filha, toda catita, agarrara-se ao pai e beijava-lhe a mão esquerda, apesar dos minuetes que a mãe lhe fazia nas costas do marido, envergonhada pelas traquinices que ela fazia diante do eclesiástico.
No Calvário, a sensatez do tio Rodrigo dissipou os nublosos pressentimentos que a sobrinha continuava a guardar religiosamente no coração e lhe roubavam ao olhos aquele brilho encantador que seduzia quem nele se demorasse. Esbelta e reservada, mas enérgica quando era preciso, Norina exercia um fascínio natural sobre quantos, pelas contingências da vida e da devoção a cruzavam. Com o simples diploma da 4ª classe, a sobrinha do senhor Rodrigo Valadares de Almodena herdara da mãe a singeleza e a nobreza da simplicidade que desarma os corações mais arrogantes e conquistava os que acreditam na perfeita igualdade dos filhos de Deus. Não admira, pois que , o marido lhe confiasse cegamente o governo da casa e se preocupasse , pensando apenas em fazer horas para lhe trazer um salário digno, com que ela fazia autênticos milagres. Sóbria e poupada, Norina sentia-se uma privilegiada, no meio da miséria popular.
Conhecendo-a como ninguém, Arménio partiria tranquilo e confiante...



continua em Capítulo III


LMP - Luxembourg 1984 - Lud Macmartinson

Caminhos de Ilusão: Capítulo I



Portugal - Vila Real, sexta-feira, 13 de Agosto de 1971







PRIMEIRO CAPÍTULO





Nesta sexta-feira de mercado, a cálida brisa matinal incitara o povo a erguer-se pela noite fenecente e a meter-se a caminho da praça. Orgulhoso, o zé-povinho ficaria todo peralta, de retorno a casa, se conseguisse humilhar o vizinho mais dorminhoco e pachorrento, arvorando um minguo, mas primoroso cabaz de compras, sem as crónicas mazelas das cobiçosas apalpadelas das peralvilhas governantas da cidade.
Nos tempos árduos que corriam, a vanglória era o mais barato manjar das almas sem eira nem beira que povoavam estoicamente a aridez transmontana. Pelas ruelas contíguas à praça, a multidão citadina e o povinho das aldeias da vizinhança empurrava-se, despicava-se e zangava-se para obter a tão famigerada primazia das imorais regateiras do mercado, habituadas à ralé. E como eram estúpidas e animalescas aquelas gentes de ira atiçada!

No meio daquela balbúrdia vergonhosa, havia, porém, uns cavalheiros de patilhas bem cuidadas, todos cá sou eu, e algumas senhoras de poupo luzidio, com as distintas e vaidosas gotas de perfume espanhol encharcado nas blusas de cetim, que não paravam de zombar dos parvónios de chapéu de palha empoeirada, calças de cotim roçado e, muitos deles, de barbas semanais a patentear a gordura do toucinho que haviam mastigado na camioneta do feirante, espetados entre os ruminantes; outros, ainda de rugas alagadas pelo suor da caminhada, pareciam mais resignados, descansando as pernas nos muros graníticos e ignorando as miradelas soberbas dos endinheirados. As saloias desguedelhadas, essas, sentindo-se picadas, não tinham papas na língua e retorquiam aos trejeitos bazófias com piadas e palavrões impudicos, fisgando o tímido civismo da fidalguia de tuta-e-meia, que teimava em acirrar a paciência da patuleia.
Corridas as grades da discórdia, ante a pacata vigilância da zelosa GNR — Guarda Nacional Republicana — , e o olhar arrebatador das peixeiras, a populaça bridou a demência cobiçosa, rompendo de roldão e aos empurrões. Esgueirando-se lesto pelos tendais, o povo dispersou-se, mirando aqui, regateando acolá, correndo à frente, recuando atrás, tal bailarina louca, estonteado pela sabichona lengalenga dos pregoeiros e os gritos esganiçados das peixeiras.

E as horas volatilizavam-se raquiticamente sem que as cestas, ainda tísicas, enchessem as guelras da gula à plebe gananciosa. A loucura, enrolada no cismático e doentio sofisma da miséria daqueles tempos, preferia deitar o coração ao largo para não se perder nas quezílias que o Salazar e a fé lhes proibiam. Mais tarde, alagados pelo implacável e ardente calor da tarde, os campónios carregavam as trouxas para debaixo da benigna e refrescante sombra das frondosas tílias dos arredores da sede da Autoviação Cabanelas, quando um automóvel de matrícula francesa, rolando à pacata velocidade de um turista, subiu repentinamente o lancil do passeio de basalto e calcário, estancando-se rente ao arbusto do jardim, lá onde o Sol já não castigava.

Escancarando as portas do carro, os quatro malteses desordeiros, vestidos à índio, saltaram para a relva pisada e, puxando por uns vistosos pentes-navalhas, aprumaram as suas bem prezadas repas, cobiçando descaradamente as pernaças das mocetonas que passavam de trouxa na cabeça. Abusadores e deliberadamente pachorrentos, os franceses atravessaram a calçada na maior das calmas, gesticulando temerariamente e obrigando os automobilistas a estancar os seus tão sobrecarregados veículos. Impressionados pela manifesta valentia dos mocetões, os transeuntes apalermados miravam-nos indignados e prosseguiam o seu caminho, murmurando com os seus botões: " Que pouca vergonha! Macacórios sim, mas nem tanto!"
Do outro lado da calçada, postado na soleira da taverna do Feliciano, um homem dos seus vinte e oito anos, moreno, de estatura mediana, mas bem encorpado, fitava-os de um olhar perplexo, deplorando-lhes mentalmente aquelas atitudes malcriadonas.
De bolsa negra dependurada no antebraço, o barbudo dos malteses, adiantando-se aos comparsas, estendeu-lhe a manápula, sorriu e exclamou todo fanfarrão:
— Connosco não há fedúncias, Arménio!
— O chofer da furgoneta já estava a ficar amarelo! — respondeu envergonhado, apertando-lhe molemente a mão.
— E a Norina como está?
— Que nunca pior, Raimundo, que nunca pior! Por aqui, nos tempos que correm, a vida é negra e madrasta, mas nós cá nos viraremos. A sorte não nasce para todos...
— Lá isso é verdade, Arménio, lá isso é verdade! Ah! Deixa que te apresente estes três aldeagantes que trouxe comigo — retorquiu altivo, zombando dos comparsas.
— O meu nome é Arménio Sala. Prazer em conhecê-los! — bradou acanhado o vila-realense, olhando-os humildemente.
— Macacórios, amantes da farra, das boas coxas e de um bom verdinho da nossa terra realmente são, mas rapazes de confiança, fiéis e sempre prontos a saírem-se pelos amigos também — afiançou gabarola.

Os mocetões encolheram os ombros, miraram-se envergonhados e, dando-se nas costas fraternais pauladas de descontracção, desataram às gargalhadas. Depois, como o Raimundo não lhes achasse graça, estancaram a galhofa e fitaram-se de soslaio, calando-se para que o chefe concluísse as apresentações.
O passador, disfarçando uma colérica dor de fígado por entre um sorriso cínico e arrogante, puxou por um cigarro da tabaqueira dourada, que uma madame viúva lhe oferecera para o gratificar dos biscatos, e, batendo-lhe o filtro, acendeu-o nervosamente. Depois de duas ou três chupadelas nervosas, soltando os aros de fumo que armazenara nos pulmões viciados, fitou o colega do ultramar e acrescentou:
— Estes gajos até são porreiros, mas às vezes passam as marcas e moem o juízo a uma pessoa. Diz, Arménio, — prosseguiu mais calmo — já conheces algum destes malandrins?
— As suas caras não me são estranhas e se calhar até já os terei cruzado por aí, mas de repente..., não, não os conheço — assegurou pensativo, depois de os mirar um a um.
— Este sujeito, aqui à minha direita, é o Luís Pirata. Um bom patife! Casado, largou a mulher de barriga cheia e arranjou uma francesa lá num vilarejo perto da cidade de Macon ― disse malicioso.
— O Chefe...
— Cala a boca! — retorquiu-lhe peremptório. — Putanheiro igual nunca os meus olhos viram! — acrescentou imperial, fitando o colega por cima do imponente metro e oitenta.
Travando o fumo do cigarro, Raimundo Faia engoliu em seco e, arrotando mais uma argola de nicotina, continuou a retórica bazófia:
— Ao lado do Pirata, aqui no meio, temos o Zé Calhordas.
O Vila-realense, apesar do esforço, não evitou uma gargalhada e, envergonhado, desculpou-se prontamente:
— Não leve a mal, senhor José! O seu nome é que...
— Nome não, alcunha! — cortou o passador, rindo também.
— Sabe, senhor José, ao ouvir o seu nome, lembrei-me de um tipo meio atoleimado que assentou praça aqui, no RI-13. O pobre coitado, nunca passou de básico!
— O Zé Calhordas, até nem era mau rapaz, mas desde que se meteu com a súcia do karaté anda sempre a molhar a sopa nos franceses, os avec, como a gente diz lá em França, e não se passa um sábado de bailarico sem que a comandita não arme uma zaragata por causa das mademoiselles. Um deles até já pegou pelo cu das calças a um polícia e, não fosse a malta acudir-lhe, tê-lo-ia mandado da ponte abaixo para o Rhône.
— Ó pá!, — cortou o Calhordas risonho — o tipo que fez isso é um chanfrado. Sabes, foi logo no início, quando a malta formou o grupo. Esse gajo vinha meio apanhado do clima da Guiné e não acatava conselhos de ninguém. Julgava-se o rei da África, mas rápido se apercebeu que os franceses não são como se pintam! Os gajos malham!
— Pudera! — interferiu o Pirata sabichão. — Desde que se meteu com as drogadas... Sabes, daquelas que sabem mais do que a Lúcia, o animal ficou mesmo paranóico.
— Bom, vocês deixam-me terminar?! — cortou Raimundo, atirando a prisca pela porta.
Fitando o Faia com olhos subalternos, calaram-se como ratos.
— Olha, Arménio, para último ficou o Chico Serra. Este é o mais sabido de todos, porque ainda passou ali pelos padres, mas parece-me que, quando era catraio, mijava na cama e mentia demais para ter cabidela entre gente tão selecta.
Francisco riu envergonhado e colando o indicador direito nos lábios ressequidos piscou a uma rapariga que entrava airosamente na taverna, juntando-se ao grupo de mulheres que comiam alapadas num tosco banco de pinho.
Entretanto, interpelados por outros negócios, os emigrantes, temendo talvez que os muros tivessem ouvidos, mudaram de assunto, cochichando-se atabalhoadamente um francês de emergência, que deixou o Vila-realense embasbacado. Obedecendo a um aceno do Faia, refugiaram-se nos fundos da tasca e misturaram-se discretamente na algazarra ensurdecedora.

Naquela hora, a família do taberneiro não tinha mãos a medir para matar a fome àquela gente desalmada. As filhas do patrão, raparigas desenrascadas, viam-se mesmo em palpos de aranha para lhes matar o larote. Com o estômago a bater a quinta-feira, e apressados pela pubileia impaciente de retornar a casa, os feirantes encostavam-se ao balcão, comendo pataniscas de bacalhau e bebendo o morangueiro por pichorros de Bisalhães, enquanto os aldeões esbotenavam as broas, que haviam comprado no mercado, e mordiscavam os nacos de queijo de cabra que guardavam nos lenços. As senhoras, essas, mastigavam tremoços enquanto os filhotes, ora lhes chupavam as tetas, ora lambuzavam as côdeas que os pais, por entre dois quartilhos, lhes iam metendo nos dentes. As mocetonas, escarranchadas nos mochos surrentos, essas, não se perturbavam com as cobiçosas espreitadelas que os homens lhes lançavam para as coxas.
Fugindo para um canto mais pacato, os emigrantes encomendaram uma sardinhada de cebola, uma broa de trigo de Vilar de Maçada, que cortaram em quatro nacos, dado que o Vila-realense iria almoçar a casa com a família, dois quartilhos de Mateus Rosé, alguns guardanapos, que o Feliciano lhes passou por detrás do balcão, e meteram mãos à obra, mastigando e cochichando atabalhoadamente.

Apesar da natural parcimónia, o Arménio sentia-se arrebatado pelas façanhas e, sobretudo, pelas patacas que os emigrantes diziam ganhar lá no país do Astérix. Delirando, via-se assentado no terraço da vivenda dos seus sonhos, lá na Timpeira, numa das mais espectaculares curvas do circuito de Vila Real. Antes, porém, teria que deixar, pela segunda vez, a sua esposa esbelta e a filhinha que, então a cumprir o serviço militar em Angola, não vira nascer, nem tampouco andar de gatas. Depois, se Deus o ajudasse, ao fim de dois ou três anos, retornaria definitivamente à sua bila, arranjaria um bom emprego com a ajuda dos amigos e procuraria assegurar o futuro da sua Verónica, mandando-a estudar, se a cabecinha dela a puxasse e desse para tanto.

Quase no fim da petiscada, quando a pubileia barulhenta se retirava, piscou ao Feliciano e, gesticulando nas costas dos emigrantes, pediu-lhe a conta. Todavia, apercebendo-se dos trejeitos, o passador levantou-se lesto da sua cadeira e foi sorrateiramente pregar-lhe a carteira no bolso.
— Por amor de Deus, Arménio, isso não! No próximo Verão, quando tiveres a tua vida mais desafogada, então poderás pagar-nos um copo ou até umas batatas a murro, que a tua mulher sabe fazer tão bem. Vá, vai lá convencer a Norina e vem dar-me a resposta logo à noite ao Pompeia. Hoje, amigo Feliciano, o estrago é comigo! — adiantou generoso.
— Bom, então até logo! — disse Arménio Sala, despedindo-se dos emigrantes com um aceno furtivo na soleira da tasca.
— Até logo! — replicaram eles de pé, limpando o molho das sardinhas ao guardanapo.
— O Feliciano não tem um pouco de água para tirar este cheiro, não?
— Maria, indica o quartinho da retrete ao senhor Pirata — ordenou prontamente o taberneiro, dando de olhos à mais casadoira das suas filhas.
— Está bem, pai. Por aqui, senhor — indicou a moça, recusando o olhar atrevido do Pirata, que não parava de lhe mirar obstinadamente o magnífico par de seios.
— Até parece que estamos nos filmes de cow-boys! — exclamou o galhofeiro Zé Calhordas, empiscando ao chefe, de indicador direito dobrado e colado na jaqueta do Chico Serra.
— Eh, pá, tem lá cuidado com o pistolão! — zombou Luís Pirata, fisgando-o de soslaio.
— Menina, por favor...
— Diga, senhor Raimundo!
— Faça de conta que os tipos são mudos e não têm os cinco alqueires bem medidos.
— Ah bom! — bradou a moça, espantando o olhar, dividido entre o pai e o célebre passador de Almodena.
— É que — cochichou todo intelectual — da boca deles só saem asneiras.
— Ai é?! Nós aqui ouvimo-las muito piores todos os dias, senhor Raimundo — volveu a donzela, limpando apressadamente as mesas abandonadas pelos clientes.
— Deixe lá — acrescentou o taberneiro, mirando-o com discretos, mas ardentes olhos de sogro — que a Maria não é mulher de mostrar os dentes a um pingarelho qualquer. A Maria...
— Ela quantos anos tem, a sua Maria, Feliciano? — indagou curioso.
— A minha Maria só ainda vai fazer dezoito anos, senhor Raimundo! — murmurou orgulhoso, evitando o riso altivo do passador.
— Então... ― insinuou o Faia num ar sério, lustrando discretamente um anel do dedo, ante o olhar cúmplice do taberneiro — qualquer dia o Santo António manda-lhe por aí...
— Genros, senhor Raimundo?
— Sim, mas com os sacos cheios de..., alvíssaras, Feliciano — frisou malicioso.
— Oh, já me bateram aqui tantos malandrins!... Sabe, daqueles tipos bem falantes, emproados, todavia, não sei porquê, e para lhe ser franco, nunca nenhuma das minhas filhas, tanto a Maria como a Zélia, lhes mostrou os dentes.
— Talvez que elas vissem que eram só fedúncias de pretensiosos desarados, Feliciano!
— Se calhar...
— Pst! — cochichou Raimundo cauteloso ― vossemecê reparou como os meus rapazes olham para a sua Maria?
— Não. Você acha que os seus colegas gostam mesmo dela?
— E quem não gostaria?! A sua filha é uma senhora mulher, Feliciano!
— Qual? O da frente? Diga, diga, carago!
― O da frente não, Feliciano! Esse também até nem é mau rapaz, mas só se corresse o divórcio com a mulher e deixasse a amante que tem lá em França. Não, a sua Maria merece coisa melhor! Não, Feliciano, eu, como seu amigo, nunca lhe aconselharia o Pirata para pai dos seus netinhos!
― Credo, cruz! Deus e Santo António me livrem de um genro putanheiro ou mendicante, senhor Raimundo! — exclamou o taberneiro, benzendo-se aflito e enxugando a careca com um lenço amarrotado que tirara debaixo do balcão.
― Os outros dois sim. Eles até parecem reinadios e gostam de mandar uns piropos e dizer umas charadas, mas são muito mais trabalhadores, honestos e, sobretudo, Feliciano, esses estão habituados a apalpar aquelas notonas francesas.
— Mas qual é o melhor? O do meio?
— Oh! Esse, o Francisco Serra, é um tipo selecto, fala pouco e sabe pôr muito bem os pontos nos ís. Sabia que ele andou ali no seminário com o Tuna e o Bernardo?
— Não me diga?!
— O moço é muito sabido! Quando chegou a França, ninguém acreditava que ele fosse estudante e que tivesse emigrado para trabalhar no duro como toda a gente.
— Oh! — bradou desconfiado — então esse deve querer uma professora! Hum! até se me parece que ele não se deixará amarrar à filha de um lavrador ou de um pobre taberneiro como eu! Mas..., e o outro?!
— O Calhordas?
— Porra, o nome é que não é nada bonito, pois não, senhor Raimundo?
— Ai não? Muda-se! — adiantou prosápia.
— Mesmo? Então a gente pode mudar assim de nome?
— As vezes que quiser, Feliciano, mas o mais importante é que ele gosta tanto do Plim como o diabo de almas. O gajo até parece que tem faro para descobrir os biscatos que dão guita. O tipo, forreta, lá isso é, mas à barriga e ao cabelo...
— Ó carago, então o homem é mesmo dos meus! Assim está bem! Sabe, senhor Raimundo, eu queria para a Maria era um homem honesto, bom pai de família e trabalhador. O resto...
— Pst! Pst! que vêm aí os moinantes!
— Ah! O que vossemecês quiseram foi pentear essas guedelhas! — disse o taberneiro, sorrindo familiarmente para os fregueses.
Como eles não gostassem nada do comentário, Manuel Feliciano limpou a careca, abanou o lenço em forma de leque e mudou de assunto, indagando cansado:
— Ufa!, que estonada! Os senhores também apanham destes fretes lá por França?
— Que remédio, senhor Manuel! Ele não cai do céu, como o povo pensa — respondeu Zé Calhordas, gesticulando timidamente, incomodado pela risada do Pirata, que mirava descaradamente as pernas da Maria.
— Bom, — conciliou o chefe — talvez não seja bem assim, mas nós somos uns paus-mandados, enquanto que o Feliciano é patrão e tem quem lho venha aqui trazer todos os dias, não é?
— Sim, mas olhem que, por aqui, o comércio está muito fraco: o povo não tem dinheiro e o trabalho é pouco, excepto para os mendicantes que passam por aí os dias de costa a pino. Então do Porto nem se fala! Vossemecês já lá foram dar uma girata?
— Só chegámos ontem à noite, senhor Feliciano — declarou timidamente o padre.
— Ah, descanse que não voltarei para Macôn sem lá ir dar umas boas pinadas! — interferiu Raimundo todo sabichão, esboçando um ar de Play-Boy.
— Então vá e mire bem aquele ambiente: putas por todo o lado, chulos e moinantes é o que irão encontrar até de sobra. Essa vagabundagem, se calhar, tem a mulher e os filhotes a morrer de fome numa barraca, mas para jogar à lerpa e para montar essas desavergonhadas, essas... vacas, — frisou colérico ― arranja sempre cinquenta ou cem mil réis. Por lá também é assim?
— Oh, eu direi um pouco mais ou menos! — respondeu duvidosamente o Calhordas, consultando timidamente o chefe.
— Por favor, Raimundo, que horas são? — perguntou Francisco Serra.
— No meu Ómega... Três... O quê?! — vociferou alarmado. Ei!, vamos, malta, que as alvíssaras..., são muito bonitas quando nos pesam na carteira! Bom, até qualquer dia, Feliciano, — escusou-se inquieto, guardando o troco que o taberneiro lhe estendia distraidamente, enquanto refrescava a pronunciada calvície.
— Ouça lá, senhor Raimundo...
— Diga, Feliciano.
— Desculpe meter-me no assunto, mas, se vossemecês tencionam ir logo à noite à Pompeia, tenham cuidado! — avisou medroso, espiando o passeio de olhos arregalados.
— Então porquê? — indagou o passador.
— A Pide ronda muito por lá e ...
— Bom, não é que nós tenhamos medo, mas nesse caso talvez seja melhor... Ora deixem-me cá pensar... — acedeu ele sisudo, amparando o queixo e tentando dar as voltas ao miolão. — Você não tem por aí uma salita onde ninguém nos oiça?
— Lá no primeiro... — respondeu prontamente, apontando o indicador para o tecto.
— Então, logo à noite, vós vindes aqui ter, está bem?
— Pronto, chefe — concordaram tremulamente Chico e Zé.
— Vocês também me saíram cá uns medricas! — bradou colérico, ostentando bem todo o seu perfil fanfarrão e molestando-os, ante o olhar perplexo do Barrigana.
— Ei, Raimundo, tu também!
— Eu cá sou assim, Chico! Comigo não há fedúncias! Ou somos homens, ou então mais vale cortá-los redondos! — arguiu zangado, apalpando violentamente os testículos.
— Então qual será o sinal? — perguntou resignadamente o selecto, segurando as chaves que o passador lhe estendia amuadamente.
— Chico, enquanto eu e o Feliciano acertamos as coisas para esta noite, vai dar uma volta ao Mercado municipal com o Simca para arejar.
— Zé, Luís, vós vindes comigo? — perguntou Francisco Serra envergonhado.
— Carago, aquilo deve estar uma fornalha! — arguiu o Pirata, abanando a mão como se fosse um leque.
— Eu vou, Chico, eu vou — respondeu submisso o Zé, seguindo o colega, perante o olhar contemplativo do taberneiro e o silêncio cúmplice do Faia e do Pirata.
Na soleira da porta, o Calhordas ainda se voltou para ver se a Maria espreitava pelo postigo do balcão, mas sentindo-se espiado pelos chefes e pelo pai da donzela, virou- se rapidamente e atravessou a calçada sem controlar o trânsito.
Entretanto, Francisco pusera o bólide em marcha e abrira as janelas para soltar o braseiro infernal. Enquanto isso, o passador de Almodena e o adjunto chamaram o Feliciano para as traseiras da tasca e trocaram uns murmúrios tão confidenciais que nem os cães, se rondassem por ali, conseguiriam decifrar. Temendo a visita de algum bufo, alcunha dos indicadores da secreta portuguesa, decidiram não colocar em perigo as suas vidas, sujeitando-se ir parar ao Tarrafal, prisão de alta segurança, no arquipélago de Cabo Verde, donde, dizia-se, ninguém voltava.

Apenas saíra da tasca, Arménio, mais radiante que se tivesse acertado no totobola e embriagado pela miragem com que a ilusão lhe enchera a alma, caminhara ruela abaixo e fora comprar um pedaço de fermento, como a esposa lhe pedira, para fazer uma empadinha que comeriam no fim-de-semana de Nossa Senhora da Assunção, 15 de Agosto, assentados nalguma fraga da floresta, lá para os lados da carreira do tiro, onde os soldados iam aprender a matar turras, como a propaganda fascista apelidava os africanos que se haviam revoltado contra o poder colonial, uma década atrás.


Quando virou a esquina da rua do Calvário, onde morava desde que voltara da guerra, foi acarinhado pela filha que, avistando-o lá no fundo da calçada, desatara a correr ao seu encontro como uma desajeitada. Usando o bonito vestido florido, que a mãe lhe costurara de um monte de farrapos antigos e indiferente à brisa que lhe desnudava as pernitas, ela corria, corria pela calçada, voando feliz para os braços do pai que tanto adorava.

— Demoraste tanto, papá! - bradou desconsolada, esticando-se toda para o beijar.
— Então a mamã já aprontou o almoço, Verónica?
— A mamã ficou a temperar a salada de alface vermelha e azeitonas que o tio Rodrigo nos deu, mas botava lágrimas e soluçava. É verdade que o pai nos vai deixar outra vez aqui sozinhas, é?
— Ó filha...
— O papá não minta, porque o Nosso Senhor ralha e o seu nariz cresce como o do Pinóquio! — alertou a inocentinha.
— Mas que pergunta, Verónica! Quem te disse tamanha tolice, filha?!
— A mãe diz que, se calhar, o senhor já não gosta mais de nós...
— Mas que coisa, Verónica! Claro que eu gosto muito de vós! — exclamou comovido, enxugando os olhos mareados subitamente de lágrimas.
— Pois, mas a mãe falou que o pai queria ir embora para o estrangeiro. É longe, pai? É mau? E o pai, porque é que quer mais dinheiro? A mãe diz que o senhor se deixou iludir pela cantiga daquele Faia. O que é iludir? É pecado? - desbobinou a menina, ininterruptamente e sem pestanejar.
— O quê, filha, o quê? — perguntou distraído a olhar o horizonte.
— O que a mãe falou.
— Oh, não acredito!... A mãe disse-te mesmo isso? — inquiriu duvidoso, passando-lhe carinhosamente a mão pelos cabelos encaracolados.
— Juro-lhe que sim, papá! Eu não minto! Ora veja, se eu tenho os dentes ralos! Oh!... — exclamou séria, abrindo a boca para que o pai lhe examinasse a dentição cerrada e se certificasse que falava verdade.
— Verónica, tu bem sabes que a mãe não diz coisas que desagradem a Deus. Ela sempre te ensinou a seres boa menina, a respeitares toda a gente e a não fazer coisas que a lei da Santa Madre Igreja proíbe.
— Eu sei, papá, mas porque é que a mamã acendeu uma vela ao Nosso Senhor dos Aflitos e se ajoelhou de mãos postas, assim, vê? — e mostrou-lhe como vira fazer, — e rezou e chorou e disse a ladainha do Rosário da Nossa Senhora de Fátima? Porquê? Porquê, papá?! Eu pensava que as velas só se acendiam aos mortos, aos Santos da igreja e nos dias de trovoada para rezar à santa Bárbara.
— Talvez a mãe estivesse a rezar pela alma do avô e da avó.
— Não, não, papá! Eu ouvi muito bem, Oh com estes dois!, ela dizer: " Ó meu Deus, guiai os passos do meu Arménio e protegei-o sempre das más companhias, das perfídias do demónio e nunca o deixeis sem a Vossa divina benção. Amém! " — declamou a inocentinha, apontando os ouvidos e repetindo calmamente as palavras piosas e imitando os gestos maternais.
— Tens mesmo a certeza, Verónica?
— Pai!!! — gritou arreliada, indagando mais calma: — Então quem vai embora, morre?
— Verónica, o Pai do Céu não quer que as meninas da tua idade façam perguntas dessas. Quando fores grande, minha filha, uma mulher como a tua mãe, falaremos de tudo isso, está bem?
— Sim, papá. Vá, corra atrás de mim. Vamos ver quem bate primeiro na porta, vamos? — desafiou airosa, adiantando-se um pouco e aprontando-se para lhe fugir.
— Oh, não vale a pena tentar, Verónica, tu ganhas-me sempre! E depois, olha bem: não vês como eu sou muito mais gordo e mais pesado que tu? Coitado, se eu desatasse agora a correr atrás de ti, não teria fôlego para comer, filha. Não, agora não!
— Vem, pai, vem! Um..., dois...,três! — contou ela lentamente, desatando a correr sem olhar para trás e rindo como uma perdidinha.
Satisfazendo-lhe o capricho, Arménio fingiu ter as maiores dificuldades para a acompanhar, gemendo e tossindo, porém, para que ela não o desafiasse mais, daquela vez não a deixou ganhar.
— Ah, nem perdi nem ganhei! — exclamou orgulhosamente o pai ofegante.
— Para a próxima, — afiançou a filha arreliada — nem me vai pôr os olhos em cima! Vai ver que nunca mais me engana, papá, o senhor vai ver!...
O pai sorriu apenas e lançou para a sua casa um olhar feliz.

Na janela granítica, a Norina fitava-os de retinas plangentes. As lágrimas irreverentes teimavam em deixar-lhe no rosto fino o rasto da aflitiva superstição que tanto a afligia. O seu coração atribulado ameaçava catapultá-la para os abismos da desolação; a perspectiva da solidão, as crendices e os medos atormentavam e dilaceravam-lhe as veias por onde circulava toda a sua Fé e todo o seu Amor, mas por onde ecoavam também as agoirentas palpitações.



II 


No turbilhão daquela paixão imensa, havia uma voz que lhe dilacerava a alma e lhe repetia sem cessar que, no dia em que o Arménio atraiçoasse o seu amor ou a largasse, abrir-se-ia diante dela um abismo de infelicidade e tristeza, onde ela mergulharia irremediavelmente. Sentindo-a tão mortificada, o marido implorou-lhe condoído:
— Deixa para lá essas babosices, Norina!
— Oh!... — resmungou decepcionada, sacudindo a mão piedosa que o marido lhe passava no rosto avermelhado.não usava, mas que, tão prezadas, ninguém diria que haviam sido estreadas...





continua no 2º capítulo !