Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Magia do Sonho




Olá, amigas, 

o poema de hoje foi-me inspirado por estas palavras: 
" amor, ternura, carinho, beijo e doce "...




Perdida e triste vou sobrevivendo 
e sonhando com a magia do amor 
que dentro de mim se faz horrendo 
tão dilacerante é o grito desta dor 

Nos devaneios resta-me a ternura 
de um olhar meigo, voraz e sedutor 
que vai destruindo a insana ditadura 
e restaurando este desejo em flor 

No meu peito vivo sinto o carinho 
do homem apaixonado e sonhador 
que, me possuindo com jeitinho, 
aos poucos virou meu rei e senhor 

Agora sei que um beijo seu bastaria 
para libertar para sempre este ardor 
que, se desprendendo da melancolia, 
ao meu olhar daria mais vida e cor 

Na solidão eu queria que ele fosse 
aquela brisa suave e cheia de fervor, 
que tornasse a minha alma tão doce 
que prisioneiro o fizesse deste amor...


LUD
MacMartinson

sábado, 7 de junho de 2008

domingo, 1 de junho de 2008

Caminhos de ilusão: Capítulo VI


CAPÍTULO VI



Nunca, em cinquenta anos, o solar do senhor Valadares de Almodena vivera uma tão grande azáfama, como nos últimos quinze dias daquele hediondo mês de Maio de 1973.
Apesar dos restos mortais do Arménio terem ficado em França, e se calhar por isso, quem o conheceu sentiu-se na obrigação de ir testemunhar à órfã e à viúva todo o apreço que sentiam por ele, na hora da sesta ou à noitinha, depois do pôr do sol ou do toque das Trindades, sobretudo os vizinhos do Calvário com quem o infortunado convivera antes de emigrar. O Fortunato Galela do Fiolhoso, que, refractário como era, não podia voltar a Portugal, juntara as coisinhas do falecido e entregara-as ao Zé Pinto, o Calhordas e ao Chico Serra, quando estes, no terceiro fim de semana de Maio, lá apareceram a pedido do sogro, o Manuel Feliciano. O Raimundo Faia, talvez mais traumatizado com a explosão, que o fizera ir pelos ares, do que propriamente com a morte do homem que lhe roubara a namorada, voltara para Macôn, mas, deixando transparecer alguns indícios de loucura, fora internado primeiramente no hospital, onde curou os arranhões, e depois, com os sinais de transtorno mental, fora transferido para um centro psiquiátrico. O senhor Paraffini, que sempre simpatizara com o transmontano, como ele lhe chamava carinhosamente, num sotaque franco-italiano, deslocara-se a Paris e, graças a um amigo deputado, conseguira resolver os problemas burocráticos, que sempre causam os atentados terroristas, quando nem sempre se conseguem identificar cientificamente todas as vítimas, e, a pedido da Martine Galela, trouxe o que restava do Arménio na morgue do hospital de la Salpitrière para Valdahom e pediu ao padre que lhe desse uma sepultura cristã ao brioso operário; os colegas de trabalho ainda chegaram a fazer um peditório para o trazerem para a terra natal, mas o patrão acabou por dissuadi-los e o vila-realense lá ficou enterrado em campa rasa no cemitério da aldeia que o acolhera naquela primeira semana de Setembro de 1971.
Entretanto, os meses passaram sem que o passador desse sinais de vida. Na Almodena dizia-se que o estrondo e a visão do amigo despedaçado lhe haviam dado a volta à mioleira e que, agora, passava os dias a vaguear como um perdidinho à beira do rio Rhône, onde quisera afogar-se por mais de uma vez; também se falava que o casarão que andava a fazer para os lados de Mateus ficaria mesmo pelo esqueleto, se a Marta, que há muito sentira o namoro ir por água abaixo, lhe desse com os pés, em tão mau estado se afiançava estar o Faia. Maluquinha e inconformada, Norina, que, com o desgosto ainda chegara a pensar numa peregrinação a pé até Valdahom, mas só chegara à raia de Espanha, se vivia era por temer que a filhinha, vendo-se sem pai nem mãe, atentasse também aos seus dias e se matasse na primavera da vida. Valia-lhe, nesse mar de lágrimas, o reconforto espiritual do seu confessor e o apoio incansável da pobre Marta, para quem o Raimundo também já morrera. Na escola, Verónica, tão esperta, alegre e enfrenisada com a ideia de ser médica, passava os dias a olhar para o último retrato que o pai lhe mandara, beijando-o e falando com ele, quando não desatava a chorar por qualquer motivo. Entristecida, a professora chamara-lhe mesmo um colega psicólogo, mas melhorias, se as houve, não se notavam, porque a menina continuou abúlica e indiferente a tudo, como se tivesse perdido a razão e a vontade de viver...

Finalmente, com a avultada quantia de dinheiro que recebeu de indemnização do estado francês pela morte do marido, e de cujo montante quase um terço, destinado à Verónica, teve que ser depositado numa conta especial até maioridade desta, Norina pôde acabar de pagar e mobilar a vivenda, para onde decidiu mudar-se no fim do mês de Julho; além disso, a viúva passou a receber uma renda mensal vitalícia, que acabaria no dia em que contraísse segundas núpcias.
Entretanto, como o Joaquim, marido da Nair, tivesse ficado tuberculoso e mal ganhasse para comer, Norina, generosa como era e agora ainda mais podia ser, teve pena deles e deixou-os ir viver para a casa do Calvário, sem contar as pratadas de tudo que a Verónica lhes levava para os filhotes. Marta, essa, enquanto não decidisse a sua vida, cultivaria os campos a meias e ocupar-se-ia do solar Almodena e dos quinteiros onde pernoitavam os mendigos de passagem, cada vez mais raros.
Depois de se mudar para a Timpeira, Norina, que nunca mais largara o preto e passara a usar calças, decidiu aparar os cabelos à Verónica e, engraçando com o visual da filha, mandou chamar a cabeleireira para cortar também os seus. Quando se olhou ao espelho quase desmaiou, mas, mirando-se bem, esboçou um sorriso, o primeiro desde aquele dia em que sua vida caíra no inferno e donde nunca mais saíra. Reclusa na sua própria vivenda, Norina gastava horas e horas a cismar com a vida e a recordar os momentos que vivera com o marido. Quantas tardes e quantas noites passadas em monólogo com o defunto? Quantas preces pela alma dele e quantas declarações de amor numa patética devoção ao homem que tanto amara, mas também tanto odiara, oh! sem mal certamente!, desde aquele 27 de Dezembro em que, graças ao testamento do tio Rodrigo, ficaram mais ou menos governados, com terras, dinheiro e casa, quantas? No seu espírito confuso, ora piosamente patético, ora furiosamente demoníaco, coexistiam, agora, duas personalidades bem distintas segundo as neurastenias: uma, beata e totalmente submissa a Deus, de quem se dizia abandonada, mas que não renegava e outra, mais rebelde, com laivos de ateísmo e simpatia pela magia negra, quando só, nos momentos de desânimo, perdia as rédeas da fé na vida e na felicidade perdida. E, para quebrar a monotonia dos dias, começou a comprar revistas e romances de amor e erotismo, que lia, escondida da filha, deitada de bruços na cama do seu quarto cor-de-rosa, ou nos geios do fundo da vinha, nas tardes estivais, com os pés mergulhados no rio Corgo para resfriar os renascentes ardores libidinosos...
Inadvertidamente, o fluxo sensual foi-lhe irrigando de novo as veias e rejeitando o estado de luto; os olhos, espevitados pelos fantasmas perversos, recuperaram aquele irresistível brilho malicioso que faz perder a cabeça a tanto filho de Deus. As mãos e os dedos, sequiosas e famintas de sedução, revoltaram-se e repeliram de vez a mórbida e insânia submissão, ousando afrontar a sagrada tirania em que jazia a sua alma e a semente do pecado, alimentando-se no lago da perversidade mental, desabrochou também no seu coração, arrastando-o, inevitavelmente, para caminhos de ilusão e, desmascarado intrinsecamente, a aura de luto que a protegia das más línguas sumiu-se das suas piosas retinas. Sem o véu da piedade, a viúva, apesar de guardar o preto, tornou-se uma mulher como outra qualquer, talvez mais cobiçada, pelo estatuto que a riqueza lhe conferia.
Verónica, que, entretanto, também se mentalizara de que a vida continuava e a melhor forma de honrar o pai seria estudar e ser alguém, médica, quem sabe?, não só recuperara a sua natural exuberância, mas sobretudo parecia animada por um sonho de tal maneira transcendental que nunca mais ninguém lhe viu nos olhos uma lágrima, nem uma penumbra de tristeza ou dor: quem a visse diria que estava enamorada!
Na primeira terça de Setembro, quando quase já não se viam emigrantes por Vila Real, Norina cruzou-se com Marta e os pais no mercado e convidou-os a irem almoçar com ela e a Verónica à Timpeira, mas os velhotes, que só pensavam em acomodar as crias, dois porcos e uma vaca, preferiram regressar à Almodena na camioneta de um feirante conhecido, para que a filha e a viúva ficassem sozinhas e desabafassem em paz, que bem precisavam, tão raras tinham sido as conversas entre ambas nos últimos meses.
Como tivesse bastantes compras e a vivenda distasse dois bons quilómetros da praça, Norina quis evitar à moça, que se oferecera para carregar à cabeça um pesado caixote de papelão, e alugou um táxi. Cinco minutos depois, o tecto verde do Opel Record preto descia a rampa da barrenta terra batida que dava acesso à luxuosa moradia. Sentada a olhar os livros no patamar das escadarias, Verónica viu a nuvem de poeira aproximar-se dela e fugiu para o canto da varanda.
— Então já chegaste, filha?!
— A mãe mande mas é cimentar a rampa porque senão... Oh!!! Mas que saudades, Marta! — adiantou radiante, dando com os olhos na confidente e amiga das más horas.
— Ah!..., mas tu cortaste o cabelo!!! — exclamou surpreendida, correndo a beijá-la.
— Hum! Então? Gostas do meu cabelo, Marta?
— Muito, muitíssimo, Verónica! Pareces mais velha, mais... É, tu quantos anos tens?
— Marta?!... - retorquiu a pequenita desconsolada.
— Nove, não é? Ah! desculpa, mas sabes estes meses pareceram-me anos!...
— Vá, deixem-se de conservas e venham ajudar-nos a tirar as compras da mala — ordenou a mãe, evitando o olhar cativo do taxista e deitando as mãos ao caixote.
— Nem pense nisso, senhora Norina! — disse ele, adiantando-se e agarrando-lhe os pulsos. - Por favor, deixe que é muito pesado.
— Obrigado, senhor...
— Júlio, Júlio Varandas para o servir, senhora Norina — acrescentou envergonhado.
— O senhor Júlio ponha então os embrulhos de lado que eu e a Marta lá os levamos para casa. Vá, quanto é? — perguntou a viúva cabisbaixa, abrindo o porta-moedas.
— Vinte escudos, senhora Norina — disse o taxista, pegando no caixote ao ombro.
— Cuidado que se suja, senhor Júlio! — avisou Marta, avistando uma casca de laranja agarrada ao fundo do papelão.
— Não faz mal, menina! Vá, onde quer que lho ponha? — perguntou desenvolto.
— Toma, abre a porta ao senhor Júlio — disse a Norina, sorrindo e lançando a chave à filha que, estendendo-se toda, a apanhou no ar e abriu a vivenda sem demoras.
— Ah, a tua casa é muito linda! — exclamou o taxista deslumbrado, seguindo-a cautelosamente até à luxuosa cozinha.
— Pois..., ponha aqui - murmurou amuada, arrastando a cadeira para o lado.
— O teu pai...
— O meu pai partiu para longe, mas há-de voltar! — interferiu radiante, afogando impiedosamente a compaixão que nascia nos olhos do estranho.
— Claro, claro que há-de voltar — anuiu o taxista, evitando o olhar da inocente e retirando-se apressadamente confuso.
— Aqui tem o dinheiro da viagem e muito obrigado, senhor Júlio — disse a viúva, esperando que ele saísse e entregando-lhe uma nota de vinte e uma peça de cinco.
— Mas?!... — balbuciou acanhado, conferindo o valor e corando profundamente.
— Os cinco escudos são para beber uma bica e mandar limpar a camisa.
— Oh, não faz mal, a minha mãe lava-a, senhora Norina! Adeus e obrigado! — exclamou o taxista de costas, cruzando Marta, que subia as escadas, no patamar de embrulhos debaixo do braço.
— Adeus, senhor Júlio! — bradou a moça, sorrindo descarada.
— Adeus, menina! — respondeu pensativo, pegando nas chaves do carro.
Na cozinha, a viúva, que apreciara a gentileza do moço, não conseguiu deixar de o espiar pela vidraça; Verónica, curiosa, remexia no caixote; Marta, que também simpatizara com o rapaz, essa, ficara pasmada a ver o táxi dar volta no terreiro e desaparecer calmamente sem levantar a mais pequena nuvem de pó; no Opel, Júlio bem espiava-as pelo retrovisor, mas o sentimento estranho, em que boiava o seu coração, não o deixou ver coisa com coisa e lá partiu inquieto.
— Eu tenho fome, mãe! — disse Verónica, não encontrando nenhuma guloseima.
— Calma, Verónica. Olha, vai ajudar a arrumar as compras nas prateleiras e mostra a mobília à Marta que eu cozo rápido uma massa com bife e toucinho.
— Massa, mãe?!
— Então que queres, filha? — perguntou mimalheira, vestindo o avental.
— Um bitoque!
— Lá por isso eu faço-to, mas vai demorar mais tempo. Ainda nem aparei as batatas!
— Pronto, coza a massa e estrele-me um ovo...
— Ai essa mania dos ovinhos estrelados! — ironizou Marta, pousando os embrulhos.
Pegando numa panela, que colocou debaixo da torneira e quase encheu, Norina piscou à amiga e ligou o gás pensativa, começando a preparar o almoço, enquanto elas, sorrindo uma à outra, distribuíam rapidamente pelas prateleiras; só o toque das facas e das colheres inoxidáveis no tacho e no fogão e o rangido das sacas de plásticos e de papel quebravam a monotonia daquele abafado silêncio; incomodadas pela cebola cortada, que as fez chorar, as raparigas despacharam-se para admirar a decoração da vivenda.
Passando pela sala de jantar como os pés pelas brasas, entraram no quarto de casal e as almofada, bordadas em coração rosado, fizeram-nas suspirar; os seus olhos, fitando-se apenas, fecharam-se para estancar as lágrimas que o retrato do Arménio, num quadro sobre a mesinha-de-cabeceira, lhes suscitou.
— Bom, mostra-me lá o teu quarto, Verónica.
— O de baixo ou o de cima?
— Como?! Tu tens dois quartos?
— Sim, um para dormir, aqui ao lado, e outro, no sótão, para estudar, ler, fazer os deveres e tirar um cochilo ou chorar sem que ninguém me veja — confessou emocionada, dirigindo-se para a peça do lado.
— Ah, é muito lindo! Sim senhor..., tiveste muito bom gosto, Verónica! O branco e o dourado combinam muito bem! Assim tudo branquinho...
— Marta, tu ainda namoras com o Raimundo? — volveu a criança, virando-lhe as costas e encaminhando-se para o sótão.
— Porque me perguntas isso, Verónica?
— Desde que o meu pai morreu, nunca mais te escreveu, nunca mais apareceu..., nunca mais... Enfim!... Estranho! Não achas?!
— Coitado, dizem que está maluquinho...
— Será melhor assim, porque ele não presta, Marta, esse homem não presta! Aliás, nunca percebi porque te deixaste iludir por um homem assim!...
— Marta! Verónica! Venham comer que a massa já está a ferver! — gritou a viúva.
— Oh! o genro do Feliciano diz que ele recebeu um choque muito grande e...
— Oxalá que seja mesmo verdade e esse homem não tenha nada a ver com a morte..., morte?!, — interrogou-se a órfã duvidosa — com o desaparecimento do meu pai!
— Credo, mas que coisa, Verónica, o Raimundo não é nenhum assassino! - retorquiu a namorada do passador assustada com os olhos da criança.
— Se não é parece! — arrematou convicta. — A mim ninguém me convence que não foi ele quem desencaminhou o meu pai, se não o tramou...
— Não julgues para...
— Não seres julgada — completou decidida. Eu sei essa ladainha toda, Marta, e já estou como a minha mãe: Deus foi muito cobarde em deixar o meu pai cair na ratoeira desse Faia. Deus..., Deus é vingativo e castiga. Será que castigou o meu pai? Porquê?
— Tchut! Pára que ninguém sabe o que aconteceu, mas deixa lá, se o que pensas é verdade sabê-lo-ei, nem que tenha que ir com ele para a cama e se o desgraçado tiver a coragem de me querer enganar outra vez! - afiançou raivosa, chispando todo o ódio fermentado no seu coração ao longo daqueles penosos meses..
— Então jura!
— Juro!!! — disse peremptória, apertando a mão da inconsolável inocente.
— Se me ajudares a descobrir a verdade, quando for grande e puder mexer no meu dinheiro, pago-te...
— Tchut! Está calada e não prometas mais nada que muito já vós me tendes dado.
E, irmanada num longo e sentido abraço, Verónica beijou Marta no rosto, descendo imediatamente a lambiscar o bitoque com batatas alouradas que, finalmente, a mamã lhe fizera à pressa.
Depois do almoço, enquanto a mãe e Marta arrumaram a cozinha e acertaram a data das vindimas, a mocinha fez os deveres da escola, escutando o Simplesmente Maria, o folhetim radiofónico de maior audiência em Portugal e que trazia meio país maluco, tal era a idolatria das mulheres, sobretudo, pela personagem principal, uma criada de servir que, rejeitada pela família do rapaz com quem viveu uma história de amor, não só assumiu corajosamente a sua condição de mãe-solteira, como singrou na vida, tornando-se uma empresária de grande sucesso e prestígio internacional. Distraída com a novela, Verónica nem as viu descer os geios da vinha até à beira-rio, onde se sentaram e passaram a sesta a ler as revistas que Norina comprara no quiosque da praça, mesmo em frente ao Cabanelas.
— E se o Faia te aparecesse agora aqui, Marta? — perguntou subitamente a viúva, pousando a Corin Tellado, talvez a mais popular revista feminina.
— Ah?! Desculpa, dizias, Norina? — indagou a rapariga desatenta, interrompendo momentaneamente a leitura e olhando-a inquisidora.
— E se ele aparecesse agora aqui? — repetiu cabisbaixa, mexendo nos foto-romances.
— Quem? O Raimundo, Norina?
— Sim, o Faia.
— Devolvia-lhe o anel e mandava-o ir gozar a co..., a coisa da mãe, que não tem culpa nenhuma de ter um filho assim! — respondeu grosseira, não se atrevendo a pronunciar completamente a palavra indecorosa, mas disparando toda a ira que trazia abafada dentro dela pelas órbitas furiosas.
— Tens toda a razão. Há tanto rapazinho como deve ser por esse país fora, que se vê logo que são umas jóias de homens, como o taxista que nos trouxe, e nós, malucas e cegas, vamos entregar o nosso ouro ao primeiro bandido que nos arreganha os dentes.
— Pois é Norina! Às vezes até parece que é o demónio tentador que nos endromina e quanto mais um gajo não presta, mais nos metemos debaixo dele como umas malucas.
— É, nós só nos fazemos esquisitas para com quem nos respeita, aos outros...
— Pois é, aos outros...
— Bom, eu não queria chegar a esse ponto, mas..., e se esse bazófia pintasse por aí?
— Sei lá! Se calhar dizia que fazia e acontecia, mas depois... — insinuou a pobre rapariga, desviando os olhos da Norina.
— Sinceramente, tu tens-lhe amor ou não, Marta?
— Não, acho que não, Norina. Agora tenho a certeza que não, mas deixei-me iludir.
— Então devolve-lhe o anel de noivado e tem paciência que a vida de casada não é aquele mar de rosas que nós imaginamos quando começamos a sentir-nos mulheres... Olha, Marta, eu até tive a sorte de ter um marido que sempre me respeitou e amou de verdade, e nós vivemos momentos muito felizes, antes de ele ir para Angola e sobretudo depois, quanto até apertávamos o cinto, mas que a vida de casada é muito era dura...
— Não me digas que se fosse agora não te tinhas casado?!
— Tão nova, de certeza que não... Uma mulher sofre muito, rapariga!
— Pois, mas também goza.
— E tu achas que uma mulher precisa mesmo de um homem para gozar a vida e ser feliz, Marta? — retorquiu a viúva, fitando-a serenamente.
__ Pelo menos para termos filhos, precisamos, agora quanto ao resto..., não sei se será a mesma coisa... Eu sei o que o povo falou de mim e muita gente até pode pensar que é verdade por eu ser uma desbocada, reconheço, mas olha que nunca abri as pernas nem ao Faia, nem a nenhum pingaréu. Uns beijos, uns encostos, uns apertos ainda lhe consenti para que ele não me julgasse sem sentimentos, sem amor como as outras...
— Mas tu és diferente, Marta! Como eu sou diferente e a Verónica será diferente, porque no mundo não há duas pessoas iguais, nem por fora, nem por dentro e ainda bem que assim é!...
— Pois, mas como estava forte, ele podia muito bem pensar que eu era uma Maria-rapaz , enfim!, diferente, percebes?
— Se percebo, Marta! Deve ser muito duro viver com uma reputação dessas, ou passar, aos olhos e nas bocas do mundo, por o que não se é realmente!
— Se é, Norina, se é! Mas..., enfim!, às vezes Deus dá-nos forças...
— Não, nós é que não imaginamos as forças que temos, nem damos valor ao que é nosso e reconhecemos e adulamos mais facilmente os outros que os nossos. Os outros é que sabem, os outros é que são bons, os outros é que valem, os outros é que prestam para isto ou para aquilo, sempre os outros a cegar-nos e a iludir-nos, sempre a rebaixar o que é nosso, sempre a menosprezarmo-nos... Assim, sempre a autoflagelarmo-nos ou denegrimo-nos, como é que podemos exigir que o nosso coração e a nossa consciência nos dêem a paz de alma que a felicidade tanto exige? — questionou filosofal.
— Norina, tu!...
— Eu quê, Marta?!
— Tu não estudaste, mas sabes dizer tão bem as coisas!
— Ai, se soubesses como a vida nos ensina coisas bonitas, quando a escutamos!
— Escutar a vida?! Como? És a primeira pessoa que me diz isso. Eu nunca ouvi a vida falar-me, Norina!
— Ouviste, só que estavas distraída ou lhe deste importância que ela te merece. A vida, a tua vida vive dentro de ti, a tua vida és tu, e como tu e eu, nós todos passamos o tempo a procurar longe e nos outros o que só nós possuímos e podemos usufruir: a nossa vida!
— Ah, agora percebi! — exclamou resignada, suspirando de alívio e fechando os olhos para melhor ouvir, entre os murmúrios da cachoeira do Corgo, a voz da sua vida.
— Então, estás sossegada, Marta? — perguntou a viúva, ajeitando os cabelos e levantando-se para desentorpecer as pernas.
— Muito! Muito mais, Norina! — confessou a moça, erguendo-se também.
— Olha, se achas que a nossa companhia te pode ser benéfica, enquanto não resolves a tua vida, depois das vindimas, quando já houver pouco que fazer, podes vir passar o fim-de-semana connosco e ler e ver a televisão. Às vezes, eu e a Verónica vemos cada filme mais triste que até temos medo...
— Medo?! Medo de quê?!
— Sei lá, da história, de ficarmos aqui sozinhas...
— Estás a ver, afinal os homens ainda servem para alguma coisa! — ironizou Marta.
— Ah, mais deixa estar que eu vou arranjar um desses canzarrões da Serra da Estrela e comprar uma pistola! - garantiu a franzina viúva, sacudindo os ciscos que se lhe haviam apegado às calcas.
— Deixa que eu te limpo as costas, Norina. Hum, parece-me que estás e engordar!
— Achas?
— Se não fosse o corte de cabelo e as cintas esticadas... Tu usas cinta, pois usas?
— Quando comecei a usar calças não gostei, mas depois, um dia que fui à rua Direita, vi uma estudante que saía com o namorado do Chinês e vi que, afinal, muito mais gorda do que eu, até ficava bem de calças e reparei que ela usava cinta...
— E compraste logo uma.
— Logo não. Por acaso, como não tinha nada que fazer, fui olhando as montras e parei no Márius a ver as fotografias de um casamento e notei que as raparigas de calças usavam todas cinta.
— E já não voltaste para casa sem uma!
— Sem uma?! Sem duas!
— E são caras?
— Ah, ainda custam uns mil réis!...
— Podes deixar-me experimentar uma das tuas, podes?
— As minhas não te servem, mas, se quiseres, mostro-te a diferença que faz.
— Ó raio, já me estás a arranjar em que gastar os tostões do meu pai!
— Hum, não será das pragas da ti Soledade que tu tens medo, Marta?!
— Tu já viste se eu lhe apareço lá em casa de calças?! Então é que o povo vai dizer que eu sou uma rapazola.
— E de mim, o que é que ele diz?
— De ti?! Nada!
— Vá, não me mintas, porque eu sei que ele tem sempre que falar.
— Oh, diz que agora tu já pareces uma doutora e...
— E?! — frisou a viúva maliciosa.
— E tens dinheiro para tudo — respondeu prontamente a moça, corando.
— Infelizmente tenho, não para tudo, mas para viver com o conforto que é necessário e oxalá que todas as pessoas o possam ter como eu, sem que para isso tenham que pagar o que eu paguei e sofrer o que eu sofri e continuo a sofrer, Marta!
— Pronto, Norina, vamos lá ver se a cinta me faz encolher o unto, porque com a dieta já não mingo mais. Anda, a cinta pôs-me em pulgas! — adiantou galhofeira, oscilando os peitos e apalpando ostensivamente as banhas da barriga para provocar na amiga um sorriso que lhe enxotasse dos olhos a tristeza que ela sentiu naquela hora.
E a viúva, disfarçando a mágoa interior, balbuciou comovida, mas risonha:
— Ninguém se manda fazer. Aliás, se queres que te diga, — adiantou de voz trémula e um tanto confusa - agora até estás muito bonita assim!
A moça estancou o riso e, corando com o galanteio, adiantou-se-lhe. Enquanto subiam os geios pelo carreiro mais trepado, andando e parando para ganhar fôlego, eram espiadas lá do alto pela Verónica que, adormecendo a escutar o folhetim no sótão, acordara assarapantada e se espreguiçava na varanda virada para o vale do Corgo.
— Suas malandras, fostes-vos para o rio sem mim! — bradou queixosa a dorminhoca.
— Como estavas a ouvir o Simplesmente Maria...
— A mamã bem sabe como eu gosto de...
— Nadar no rio! Eu sei, filha, mas não foi por mal! — desculpou-se a mãe, limpando-lhe o suor do pescoço com uma toalha que pegara no banzo da varanda.
— Tu também já nadaste no rio, Marta?
— Quando andava na escola nadava encoira nas poças com as outras raparigas, mas agora... Verónica, as pessoas grandes... — balbuciou embasbacada, olhando Norina.
— Ora essa, as pessoas grandes vestem biquinis! — acrescentou desenvolta.
— Ui, isso é para quem pode e vai para a praia!
— Na praia há muita gente pelada...
— E se fôssemos fazer um refresco, filha? - sugeriu a mãe, dando de olhos à Marta.
— Hum, vós andais muito segredeiras! — exclamou desconfiada, surpreendendo-lhes a cúmplice piscadela.
— Segredeiras nós?! És bem tolinha, Verónica! Eu e a tua mãe não temos segredos, pois não, Norina?
— Deixa-a lá, ultimamente, depois que cortou o cabelo, a Verónica é que não pára de se olhar ao espelho. Ela está muito vaidosa a minha filha, sabes?
— Ah, tu é que tens segredos, espertalhona! Não me digas que foi o teu namorado quem te mandou cortar... — insinuou Marta irónica, sobrepondo os dedos na madeixa loura para imitar a tesoura.
— Não foi nada! — refutou zangadíssima, batendo o pé e gesticulando irritada.
— Oh, desculpa, Verónica! — murmurou arrependida, mimando-a.
— Ai os mimos!... Vá, vinde tomar o refresco — disse a mãe orgulhosa, enchendo os copos floridos.
Agachada, Marta sorriu apenas e cochichou ao ouvido da filhinha do Arménio sala:
— Cuidado com o nosso segredo!
— Pst, a minha mãe pode ouvir!... — sussurrou Verónica desconfiada.
Depois de se saciarem, as mulheres foram trancaram-se no quarto a experimentar a cintura, enquanto que, acalorada com aquele tórrido sol do fim do Verão, que lhe deixara a pele pegajosa, a mocinha se entretinha a batuchar na banheira; abrindo a última gaveta da cómoda do quarto, Norina tirou a cintura elástica e começou a esticá-la para que Marta visse como apertava; depois, correndo pudicamente o fecho, pegou-lhe na mão e, agarrando a cinta, puxou-a, mostrando-lhe apertava; intimidada pelo reflexo da nudez da amiga de infância no espelho, a namorada do Faia balbuciou:
— Afinal tu és mais morena, mas estás mais branca do que eu, Norina!
— Não me digas?!
— Olha! — murmurou a trabalhadeira, levantando a blusa e mostrando a barriga.
— Realmente tens-me cá uns peitos, Marta! — notou a viúva, mirando-lhe o busto.
— Oh, preferia tê-los menores e com uns bicos saídos e escuros como os teus!
— Porquê, os teus não são saídos?
— Os meus..., olha, estão metidos para dentro — disse desconsolada, deitando os seios lácteos de fora.
— Quando te casares, primeiro com os chupões do marido e depois com os dos filhotes, vais ver que os bicos te saltam cá para fora como os meus — acrescentou convencida, mostrando-lhe também a teta por onde a Verónica tinha mamado até aos dezoito meses.
— Achas? — perguntou a rapariga envergonhada, ajeitando o sutiã.
— Claro! — rematou Norina, despindo rapidamente as calças e a cinta elástica.
Pundonorosa, Marta baixou os olhos , fingindo abotoar a blusa, mas o espelho devolveu-lhe a beleza plácida da amiga, perturbando-a terrivelmente.
— Chega-me essa saia por favor — implorou a viúva, quebrando o silêncio e apontando para o cabide.
— O Arménio era muito bom, pois era, Norina?
— Se era, Marta! Nos últimos meses cheguei a desconfiar que ele também tivesse arranjado por lá alguma amante, mas não, o Arménio nunca seria capaz de uma coisa dessas. O Arménio era muito especial: bom rapaz, bom pai, bom marido...
— Sem dúvida, e até se compreenderia se, de vez em quando visse...
— Porque tu eras capaz de perdoar uma traição do teu homem?
— Era. E tu não, Norina?
— Eu, Marta?! Eu nunca!
— Oh! tu dizes isso agora, mas se calhar até perdoarias como toda a gente.
— Eu não sei perdoar, Marta. Preferia vê-lo morto que sabê-lo de outra!
— Oh! uma vez, para...
— Com essas ideias, não te cases, rapariga, porque, mais cedo ou mais tarde farás sofrer o homem que te amar de verdade, como eu amei o Arménio, que nunca traí e se algum dia, confesso, tive maus pensamentos, foi porque julguei que o Faia o conseguisse endrominar e o arrastasse para o putedo.
— Porque o Raimundo?!... — indagou a namorada do passador surpreendida.
— Desculpa, foi sem querer! — balbuciou a viúva confusa, apercebendo-se da tristeza que provocara na alma da amiga soluçante. — É o que se diz, Marta, é o que se diz!
— Ai é?! Então deixa que ele paga-mas! — retorquiu mais irada que ofendida.
— O melhor é esquecê-lo, rapariga, que ele não presta!
— Não, primeiro tenho que ajustar umas contas com ele, depois...
— Tu vê lá o que fazes, que o Faia é muito perigoso, Marta!
— Também eu, Norina, também eu! — repetiu pensativa, mordendo o lábio.
— Então nunca te esqueças que é com mel que se apanham as moscas.
— Diz, tu eras capaz de o matar?
— Mas que pergunta, Marta?! — volveu estranhamente perplexa.
Vendo-a corar profundamente, a mocetona submeteu-se e baixou os olhos. E não disseram mais nada: as labaredas da vingança daquela alma sobejamente mortificada flamejavam nas íris amorfas daquele olhar tão faminto de verdade, porque, por mais que tentasse, o coração apaixonado da pobre Norina não conseguia deixar de pensar que o marido caíra na esparrela do Faia, que ela tanto odiava, desde aquele dia de Verão em que, adolescente ainda, ele a violentara e quase violara, mantendo-a refém da sua léria até que o Arménio a libertou dessa hedionda chantagem. Ai o Arménio, como o amava o Arménio!
Depois do lanche, broa, azeitonas e presunto, que comeram na cozinha, a Marta pôs-se a caminho de Almodena, onde queria chegar antes do pôr do Sol. Perto da praça dos táxis, ainda lançou uma olhadela para ver se avistava o Opel do Júlio, mas lá prosseguiu a sua taciturna caminhada.

Nos dias que antecederam a vindima, Marta foi quase todos os dias à Timpeira, onde dormiu por várias vezes, a ponto de irritar o senhor João e a senhora Soledade que, embora sabendo da carta de ruptura que a filha enviara ao Raimundo com o anel de noivado, não gostavam nada da leviandade com que se portava ultimamente, censurando-lhe as sobrancelhas depiladas, os lábios pintados e os perfumes asfixiantes, a ponto de acharem nefasta a influência que a Norina, de quem se sentiam devedores, exercia sobre ela: é que as más línguas as diziam que a viúva andava muito arrebitada e que, a peneirar-se assim, não demoraria muito a perder o respeito ao Arménio, se é que não tinha feito, o que muito os entristecia, pelo bem que lhe queriam.
Com aquele sórdido falatório, na vindima, Norina só aceitou a ajuda do Joaquim, que apesar da doença, lá apareceu na Timpeira com a Nair, e de dois primos da Marta, preferindo pagar a jorna a três rapazes de Lordelo que o senhor Morgado lhe mandara, depois de fazer a dele. Depois, para evitar mais bisbilhotices, deixou a lagarada ao cuidado do senhor João que, com os homens e os sobrinhos, lá pisou as uvas duas noites a fio. Marta, que tanto adorava amassar os cangaços do vinho mosto, furiosa com as mexeriquices, nem sequer apareceu no lagar e entregou à mãe o mata-bicho dos homens, ficando sozinha em casa.

Entretanto, com a chegada do Outono e o fim das colheitas, Marta ficou com mais horas de lazer, que aproveitava para ler as revistas e os romances que trazia da Timpeira; de França, nunca mais recebeu nenhuma carta do Raimundo, de quem muitos se apiedavam, por se dizer que dificilmente recuperaria o juízo; Manuel Feliciano, que comprara uma loja num dos muitos prédios novos da zona da feira, raramente aparecia na tasca, tão atarefado que andava com os acabamentos do restaurante, onde queria realizar o casamento da sua caçula, Zélia, com Francisco Serra, razão porque o ex-seminarista não viera de férias em Agosto; com o tempo, as más línguas acabaram por se calar, o que muito serenou a Norina, que nunca se deixara abater pelos boatos; Verónica matriculara-se na 3ª classe, na escola primária da Timpeira nos primeiros dias de Outubro, e andava muito animada porque a professora lhe dissera que, se continuasse sempre assim boa aluna, em Dezembro perguntaria ao inspector se a podia passar para a quarta.
Enquanto isso, a vida em Portugal estava cada vez mais dura e o número de emigrantes não cessava de aumentar, porque a tanto os obrigava a miséria; Marcelo Caetano, que até era benquisto do povo, lá se conformara a abrir as fronteiras e a deixar partir os filhos da nação com a tropa cumprida, para aumentar o fluxo de divisas que tanta falta faziam ao país, arruinado pela guerra em África e pelo isolamento internacional a estava condenado com a prossecução da política colonialista; a polícia secreta, a pide de má memória, passara a chamar-se DGSE — Direcção Geral da Segurança do Estado — , porém, infelizmente, os métodos tirânicos e delatórios persistiam mais ferozes e implacáveis do que nunca; Portugal precisa de um golpe de estado que pusesse fim a quase meio século de ditadura fascista, mas depois do assassinato vil e cobarde de Humberto Delgado, o general sem medo, em Badajoz, no longínquo 1958, a maldição abatera-se sobre a pobre terra lusitana...



Continua em Capítulo VII


LMP -Luxembourg1984 - Lud MacMartinson

Caminhos de ilusão: Capítulo V


CAPÍTULO V




Entretanto, a vivenda da Timpeira crescia a olhos vistos. O tempo dos bailaricos fora rapidamente esquecido pela azáfama das vindimas e pela apanha das castanhas. Sozinha e com o tempo frio, também o ardor sentimental da pobre rapariga acabou por esmorecer e a fazer duvidar um pouco, dando razão às palavras da Norina que não cessava de a repreender e de a pôr de pé atrás, quanto às verdadeiras intenções do passador.
Arménio continuava a mandar cartas animadoras à esposa e, como a filha recebia os maiores elogios da professora, não se cansava de lhe pedir que cuidasse bem da menina. Verónica, que nutria pela Marta uma simpatia contagiante, fruto dos meses de jucunda cumplicidade, dizia que, quando fosse grande, seria a doutora dos pobres. Doutora?! Sim, é que a enfermeira ficava abaixo de doutora e, no Céu, o bondoso tio Rodrigo também teria mudado de ideias, pois se a conta do dinheiro que lhe havia deixado no banco tinha aumentado, só poderia ser para que ela pudesse estudar um pouquinho mais e doutora era mais que enfermeira. Singela dedução, não?
Depois que Raimundo partira pela última vez, Marta, amuada e apreensiva, guardava ansiosamente uma carta que lhe viesse confirmar tudo quanto o namorado lhe cochichara, sobretudo quando dançavam os langorosos slows dos cálidos arraiais do mês de Agosto. Porém, a cada negação do carteiro, o seu coração batia angustiado e a confusão fazia vacilar as suas certezas, colocando-a em pânico. Atenta a essa angústia, Norina, tal fada carinhosa, tinha sempre na ponta da língua a palavra certa para dissipar aquele apaixonado desalento. Foi nesse clima de inquietação que, nos longos e friorentos serões do Outono, os muros ouviram as mais lamuriantes confidências de um coração desenganado. Mas como era terrível depender de alguém! E a alegria só voltou àquele corpo dilacerado nos últimos dias de Novembro, muito depois de outros corações se terem vestido luto e afrontado a penosa recordação da passagem para a eternidade do antigo dono daqueles muros.
A carta do Raimundo chegou na altura em que Marta já não acreditava e, farta de tanto esperar, se resignava com o desleixo do homem por quem se iludira. Porém, a magia das palavras do namorado apagara-lhe, num ápice, as mágoas com que o desespero lhe atarraxara o coração nas tristes noites de insónia. O breu eclipsou-se e uma esperança sagrada cintilou de novo naquele olhar subjugado.

Entretanto, em França, Arménio não arranjava tempo para cozinhar ou para escrever à mulher. De repente, a sua cabeça viu-se hipnotizada pelas notas que diariamente, conseguia apurar nos biscatos, que fazia depois de trabalhar para o patrão. Quantas meias-noites haviam soado longe do seu quarto, com o estômago a roncar esfomeado! Com a descoberta desse filão, até o fascínio e a tumescência, que a Norina exercia no seu metabolismo cerebral, se esvaneciam perante tão sedutoras imagens, por quem aceitava todos os sacrifícios daquela vida gananciosa. Pouco a pouco, também ele, até ali homem de um só Deus e de uma única mulher, começava a verificar a justeza do ditado longe da vista, longe do coração e a ceder às tentações que o novo mundo lhe oferecia.
Mas como mudara! Agora, já nem se lembrava de beijar os retratos que guardavam a velha mesinha de cabeceira que o Fortunato lhe dera, nem tampouco sentia a necessidade recordar demoradamente as cenas de amor com a esposa. Oh, de rezar, então, já perdera o hábito! A vivenda da Timpeira era o que ainda o fazia correr e labutar como um moiro pelas aldeias isoladas nas altas serranias do Doubs.
Se depois, pelo menos, pudesse levar uma vida como a dos franceses, na sua terra com aquela casa estilo maison, as janelas largas estilo fenêtre e um Fiat 147 para poder ir mostrar aos colegas que se haviam quedado na miséria da Brandoa e, quem sabe?, passear com a Norina e a Verónica pela costa do Estoril!...

Na sexta-feira, 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, Norina, aproveitando a ausência da filha e da ajudante, resolveu escrever ao marido para, a pretexto de lhe perguntar em que dia tencionava chegar para o Natal, despejar o saco; os vales do correio e as notas, que ia entregando ao empreiteiro, começavam a atormentá-la e, naquele desespero, a lengalenga da cigana voltou a dar-lhe volta à cabeça, consumindo-lhe até à alma. Há quanto tempo não recebia uma carta carinhosa? A conversa do marido reduzira-se, tão só e apenas, aos desleixados gatafunhos aqui te mando mais estes 10 mil escudos para pagares a prestação da obra e nada mais.
Ao invés, Marta passara a receber verdadeiros testamentos do Faia cheios de palavras bem estudadas, que lhe deviam aquecer a cabeça, e não só, a ouvir pelos estremecimentos nocturnos da cama. Se a obra da Timpeira não estivesse tão adiantada e já teria mandado tudo pelo Corgo abaixo, tamanha era a sua mágoa. E as palavras da cigana ecoavam impiedosamente nos seus tímpanos doridos. Durante o dia, dissimulando aquela angústia por detrás de um sorriso forçado, Norina espalhava todas as mágoas e as endemoninhadas crendices no absurdo silêncio das gélidas noites. Há muito que dispensara os roncos e os bafejos da Marta e agora, nessas horas negras, também não sentia coragem para esmorecer a platónica e meteórica felicidade da mocetona.

Pelas treze horas de terça-feira, 12 de Dezembro, apenas entrou no pátio, curvada de embrulhos, vinda do mercado da cidade, foi assustada pela aleluia da filha, que, mostrando o galo do selo francês, gritava radiante:
— É do pai!, mamã, é do pai!!
— Já não era sem tempo! Mas deixa-o vir... — respondeu ameaçadora, pegando a caixas dos embrulhos.
— A senhora vai ralhar ao pai, mãe?
— Ai vou, Verónica, ai vou!
— A sério?, ou a mãe diz isto porque está chateada e depois...
— Oh! sei lá, filha, sei lá!... Vá, dá cá a carta e leva os embrulhos para a cozinha.
Obedecendo lesta, a menina abarcou as caixas e, segurando os sacos mais leves entre os dentes, subiu as escadas de granito, corcunda, espiando a mãe com um olhar curioso. Da varanda de granito, espreitando pelas tábuas dos parapeitos de castanho, viu o rosto maternal esvanecer-se e uma lágrima escapar-se sorrateira das retinas. Vista de cima, aquela mulher que soluçava, nem parecia a mãezinha que tanto adorava. Incomodada com a tristeza maternal, abandonou cautelosamente o postigo e foi ajeitar os embrulhos no escano.
Limpando-se ao lencinho bordado, que escondia no punho da blusa, Norina compôs-se e, ganhando fôlego, subiu a escadaria, depois de fechar a porta da rua. Ao passar diante da cozinha, nem espreitou, preferindo refugiar-se no seu quarto para mudar de roupa e engolir a decepção que o coração, a adivinhar pelas entrelinhas do marido, lhe cravava na alma. Depois de vestir a blusa e a saia de todos os dias, juntou-se à filha e, metendo um figo seco na boca, lá foi enganando o estômago, enquanto a massa e os ervanços da véspera se aqueciam na boca do fogão.
E dizer que, no meio de tantas notícias boas, um talvez bastou para lançar a confusão no seu espírito. Os alimentos não lhe fizeram sangue. Com os seus lápis, Verónica ia riscando e descontando os dias que a separavam da noite de Consoada pelos dedos. A pilha de brinquedos, que imaginava na mala do pai, saltava-lhe das órbitas e espelhava-se nas suas mãozitas.
Enquanto a filha dava largas ao sonho e mal via o tempo passar, Norina ia arrastando os dias e as noites com o seu coração atribulado; um rosário de questiúnculas malfazejas foi-lhe cercando e obcecando de tal maneira a razão que, em casa, todos evitavam o seu olhar desvairado. Marta adivinhava-lhe as marés, mas esquivava-se lesta para não se tornar o bode expiatório da sua alma depenada.

No dia 22 de Dezembro, sexta-feira, ouvindo os alaridos da filha, a senhora largou tudo e acorreu à varanda, mas, dando com um papel na mão da pequena, esvaziou-se do sangue frio que lhe gelava as veias. Sentindo a mãe desfalecer, Verónica perguntou inquieta:
— A senhora que tem, mãe?!
— Nada, filha, nada...
— Ah, é a carta do pai! É a carta do pai!
Murmurando por entre os lábios trémulos um eu sei mórbido, Norina pegou na missiva do marido, dobrou-a sem a abrir, enfiou-a no bolso do avental e, lançando à filha um olhar indecifrável para tão tenra idade, correu a refugiar-se no seu quarto. Para não ter que ouvir os gritos e os soluços abafados que jorravam do pranto maternal, Verónica desceu ao pátio e iniciou um monólogo que só as bonecas pareciam entender. Depois, convidando-as a um passeio pelo reino da fantasia, deu largas à sua autoridade e impôs-lhes um silêncio cego e surdo. E esse ritual endofásico foi saciando a fome adulta desse botão de mulher que desabrochava já naquela criança em fim de estação.

1972, que vira nascer o sonho e concretizara a ilusão do Arménio, reservara-lhe para o fim uma quinzena de lágrimas e suspiros. Até parecia que o emigrante se esquecera como o Natal contava para a esposa. Lá longe do seu torrão, as fotos da vivenda da Timpeira substituíram-lhe no olhar egocêntrico as imagens vivas que, meses antes, quebravam o gelo de tantas noites de solidão e saciavam a tumescência. Agora que a felicidade começava a assentar arraiais à beira das cachoeiras do Corgo e a vida ia ficando mais desafogada, quisera o destino pô-los mais uma vez à prova da fé...
Na manhã de sábado, 23 de Dezembro, depois de uma noite de insónias, Norina passou por casa dos pais da Marta a convidá-los para passar a Consoada com elas, antes de subir à cidade para fazer as derradeiras compras do Natal. Às treze horas, quando entrou em casa, foi encontrar a empregada a choramingar sobre o escano da cozinha.
— O que tens rapariga?! Oh! agora deu-te para chorar? Não me digas que...
— Oh, não é nada! Não é nada! — exclamou confusa, disfarçando atabalhoadamente as lágrimas com os punhos da blusa.
— Vá, diz lá o que se passa, Marta!
— O Raimundo já nem vem ao Natal nem ao Ano Novo!
— Deixa lá, isso é só para te enganar! Ele sempre gostou de gozar os outros, de dizer uma coisa e fazer outra...
— Olha aqui o telegrama, Norina!
— O Arménio também não pode vir. Temos que nos conformar, Marta, temos que nos conformar!... — repetiu resignada, acariciando o poupo da criada.
E um sorriso dolorido saltou desvairado pelos olhos lacrimejantes da ingénua rapariga, que, decepcionada com a carta do passador, se encerrou pensativa no quarto, deixando a patroa a aprontar o almoço. De tarde, enquanto faziam os fritos da Consoada, não conseguiam disfarçar a tristeza que tinham na alma. Só a Verónica, a batuchar na massa das lêvedas, se esquecera do pai. Sem o Arménio, aquela quinzena da quadra natalícia, tornou-se um calvário para a Norina. Perdida no turbilhão das crendices malfazejas, vivia obcecada pelos vaticínios da cigana.

1973 nascera muito cinzento. Em Portugal, o regime fascista, no poder há quase meio século, vivia sobressaltado com os revés militares em África e ameaça ruir; a contestação à guerra no ultramar era cada vez maior; o povo, esfomeado e sem dinheiro começava a desertar as aldeias de subsistência do interior e a emigrar em massa para a Europa ocidental, aproveitando a magnanimidade do professor Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros, cuja popularidade não crescia a olhos vistos de dia para dia.
Enquanto que a mãe e a Marta se entretinham com a azáfama das sementeiras primaveris, no solar de Almodena, Verónica contava, pelos da mão, os meses para faltavam para se mudar definitivamente para a Timpeira. Ah, como as cachoeiras do Corgo a fascinavam!

Na primeira semana de Abril, Arménio decidiu-se, finalmente, a escrever à mulher a carta mais feliz da sua vida. Incrédula, Norina não se cansou de a ler e a reler milhentas vezes para se certificar que não sonhava, tantas desilusões haviam mortificado o seu coração ingénuo.
E Maio chegou com um manto florido de esperança. A árdua azáfama da terra dissipara-lhe um pouco as dúvidas e as horas da sesta e das noites cálidas ajudavam-na a diluir os obscuros pensamentos e substituí-los por outros, mais radiantes, graças, em parte, ao sorriso encantador da inocente e sonhadora Verónica e, sobretudo, às maliciosas e irreverentes piadas da Marta, decididamente leviana.

Naquela sexta-feira, 11 de Maio, antevéspera de peregrinação a Fátima, Norina passou na Timpeira para escolher os tons do colorido dos quartos e do salão da vivenda, visto a pintura exterior ficar para mais tarde, quando Arménio viesse e, com o tempo, os muros tivessem puxado. Mostrando-lhe orgulhosamente a obra, o empreiteiro reparou que ela não parava de olhar amarguradamente para as cachoeiras do sussurrante Corgo, mas, intimidado com aquele fino rosto sorumbático, não ousou dizer-lhe nada. No fim da ronda, porém, viu-a ficar pálida e respirar dificilmente.
— A D. Norina sente-se bem? — perguntou intrigado, franzindo o sobrolho.
— Deve ser fraqueza, senhor Jaime! De manhã não me apeteceu tomar o café.
— Não, D. Norina, fraqueza não creio que seja, que o rosto da fraqueza não é assim!
— Será tristeza... — disse resignada, afrontando a dor que lhe trespassava o peito.
— Tristeza, agora que a obra chegou ao fim, D. Norina?!
— O Arménio..., ai! ai, meu Deus, o meu Arménio!... — bradou aflita, agarrando-se ao braço do empreiteiro para não bater nas escadas.
— D. Norina! — exclamou o homem perplexo, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a para que ela não lhe desfalecesse nos braços.
Empalidecendo num abrir e fechar de olhos, a senhora começou a transpirar por todos os poros e a alagar-se de suor, comovendo o empreiteiro que, embaraçado com tão delicada formosura, quase perdeu a voz.
— Zé!!! Toninho!!! Acudam que a senhora teve um ataque!!! — gritou assustadíssimo.
Largando as talochas, os pedreiros acorreram lestos e ajudaram o patrão a transportar a senhora para a cabina da carrinha. Depois, enquanto Zé amparou a doente, senhor Jaime instalou-se ao volante e, dando de olhos ao António, arrancou a todo o gás, levantando uma nuvem de poeira. E, buzinando o mais que podia, a Bedford não gastou três minutos até ao hospital, onde Norina, entretanto mais aliviada, entrou pelo próprio pé, amparada corajosamente pelo empreiteiro. Zé, esse, seguia-os embasbacado e comovido. Meia hora depois, um sorriso de circunstância voltava a iluminar aquele doce rosto, apesar das picadas que o seu coração continuava a sentir de tempos a tempos.
— Quer que a leve a casa, D. Norina? — perguntou o empreiteiro atencioso.
— Se fizer o favor, senhor Jaime.
Mirando aqueles olhos lívidos, o construtor meneou apenas a cabeça e, abrindo a cabina, esperou que a convalescente se sentasse para deixar passar o empregado. Até à Almodena, ninguém ousou dizer mais nada. Um silêncio sufocante não os deixou abrir a boca, nem tampouco respirar livremente. Atordoada com as crendices sussurrantes, que lhe abrasava a cabeça e a impediam de pensar e reflectir normalmente, Norina voltava a sentir-se prisioneira da malfadada cigana que tantas desgraças lhe vira nas linhas da mão naquele desditoso dia em que, solteira ainda, ousara desafiar o namorado, a deixar ler a sina àquela mulher de lenço preto.
Mal atravessou as portas do solar, Norina esquivou-se à filha, que embalava as bonecas num canto da varanda e, espreitando para a cozinha, onde a criada aprontava o almoço, foi trancar-se no seu quarto. Entretidas, tanto Verónica como Marta não se aperceberam de nada e, chegada a hora da refeição, sentaram-se na varanda à espera dela, mas, os minutos passaram e a fome apertou sem que os seus olhares inquietos a vissem transpor o portão. Enchendo-se de razão, decidiram enganar o estômago com um naco de broa que molharam na calda do arroz de espigos. Sossegados os ventres, beberam um pouco de água pelo mesmo púcaro de alumínio e, rindo brincalhonas, decidiram ir fazer as camas, esperando que Norina chegasse entretanto, para o arroz não recoitar na panela. Correndo lesta, Verónica quis entrar primeiro no quarto da mãe, mas esbarrou com o nariz na porta.
— Oh!, a mãe levou a chave! — exclamou desconsolada, forçando a mãozeira.
— Não levou nada, Verónica, puxa bem que é a mãozeira que está perra!
— Caramba, és bem teimosa, Marta! Se eu te digo que levou é porque levou mesmo! Estás a ver como esta geringonça não está perra?!
— Realmente... — constatou a criada, vendo a mãozeira subir e descer facilmente.
— Ah!... - admirou-se a pequenita, espreitando pelo buraco da fechadura.
— O que foi? Deixa-me ver! — perguntou Marta curiosa, desviando a pequenita e abaixando-se para espreitar também.
— A chave está não fechadura, pois está, Marta?
— É, para a tua mãe ainda estar a dormir a estas horas, deve ter passado muito mal de noite... Eh, põe-te a pé, dorminhoca, que o arroz fica todo ensopado! Norina!!! Eh, Norina!!! — bradou a criada alarmada pelo imobilismo da coberta, torneando a mãozeira e abanando a porta.
— Ponha-se a pé mãe, que o almoço fica todo receitado! — gritou a filha esganiçada.
— Norina!!! Norina!!! — insistiu Marta, dando uns murros na porta para a acordar.
— Oh!, comei vós e deixai-me em paz que me dói a cabeça! — respondeu soluçante.
— Está a chorar, mãe?! Porque chora, mãezinha? — volveu carinhosamente a enternecedora filha, assustada pelo semblante sisudo de Marta.
— Vá, põe-te a pé, Norina, senão arrombamos a porta — ameaçou a mocetona, fazendo-se dura.
— Está bem, pronto, ide pôr a mesa que eu já lá vou ter...
— Não demore, mãe! — berrou Verónica mais alegre.
— Não, filha, eu não demoro — prometeu molemente a mãe, enxugando as lágrimas.
E, dando as mãos, as moças lá obedeceram, deixando em paz aquele coração aflito. Mal viram Norina entrar de cabelos emaranhados a esconder o rosto pálido, elas baixaram os olhos e continuaram a mastigar lenta e silenciosamente o arroz, donde emergiam os espigos de couve e os pedaços de toucinho; de semblante carregado, ela também se limitou a sentar-se e a fitar morbidamente o prato fumegante que lhe estava destinado e mirá-lo abulicamente; com as mãos cruzadas sobre as pernas e aquele olhar circunspecto, ela mais parecia uma múmia embalsamada que gente viva; inocentemente ingénua, suspirava por dentro para não se ouvir, mas, mesmo abafado, o timbre das suas palpitações dolorosas ecoava sorrateiramente pelas tábuas do escano, atraiçoando-lhe os intrínsecos propósitos. Depois de uns três ou quatro minutos de lânguida contemplação, decidiu-se a mastigar uma garfada de arroz, mas o estômago rejeitou-lha; bebeu então um púcaro de água e, arrepiando-se toda, voltou cabisbaixa para o quarto. E uma chapa de absurdo silêncio desceu sobre aquelas quatro paredes, emudecendo-as de vez, como se o hálito da morte lhes agoniasse a alma.
Cansadas de troçar dos fantasmagóricos vaticínios da desditosa cigana, com que Norina lhes enchia os ouvidos nas horas de desânimo, desta vez, as moças acabaram por se amedrontar e, apesar das golfadas de calor que sentiam entre as mantas, tetanizadas de medo, dormiram abraçadas uma à outra como nas longas e frias noites de invernia.
De manhãzinha, assarapantadas por um rude pesadelo, saltaram da cama e, gesticulando cautelosamente, foram ferver um chá de erva-cidreira para aliviar as dores de cabeça deixadas pela insónia nocturna. Depois, como o Sol batesse desavergonhadamente na vidraça da cozinha, deitaram um púcaro de água no lavatório de esmalte azulado da cozinha e lavaram a cara, espantando a soneira e a preguiça persistentes. Mais guichas, meteram duas bolachas na boca e, mastigando-as inadvertidamente, aproveitaram aqueles trinta minutos para regarem a horta, antes de Verónica se aprontar e ir para a escola.
Às nove menos dez, como a patroa continuasse trancada no quarto, Marta, que nunca se sentira tão perdida, pegou na saca da confidente e acompanhou-a até ao adro da igreja, precisamente onde a rampa começava a subir, mandando-a fazer os últimos metros sozinha. E, sentando-se ofegante numa pedra de granito, lá ficou a ver como aquelas pernitas saltitavam de laje em laje, palmilhando jovialmente os últimos decâmetros da encosta sem se voltar. Porém, chegada ao cimo da ruela, a inocentinha virou-se e, acenando alegremente, desatou a correr, sumindo-se por entre os plátanos.
Apaziguada, Marta levantou-se e, limpando as areias apegadas às nádegas da saia, regressou ao solar pelo caminho mais longo, convicta de que, depois de tantos dias sem novidades de França, cruzaria o reinadio Mesquita com a tão desejada carta que Raimundo lhe devia, mas do carteiro... nada, nem capacete, nem mota, nem correio. E, reconfortando mais uma vez a terrível decepção interior, voltou para casa, dizendo-se que devia andar maluca, pois ainda faltavam quase duas horas para o homem chegar.
Entretanto, no solar, Norina decidira erguer-se e ferver um copo de leite com mel para curar a estranha rouquidão com que acordara naquela manhã. Apenas lhe viu as covas dos olhos, Marta percebeu logo quão sofredora e lacrimosa havia sido aquela noite e, compadecida, sugeriu-lhe que ficasse a descansar ou fosse à cidade espraiar um pouco que ela lá trataria de tudo.
— As videiras... — adiantou roufenha, franzindo a testa e forçando a garganta.
— Deixa isso com o meu pai, Norina — disse a moça apiedada.
— Ele que... — murmurou baixinho, engolindo um golo de leite melado.
— Vá, não te preocupes com o prédio da Timpeira que o Arménio...
— Senhora Norina!!! Eh, está lá senhora Norina? — berrou subitamente o carteiro, batendo furiosamente a maçaneta do portão. — Tem aqui um telegrama, senhora Norina! Depressa, que é um telegrama!!!
— Ai, meu Deus, que desgraça! — gritou desesperadamente Norina, cruzando as mãos e erguendo os olhos ao tecto, numa prece ao Todo Misericordioso.
— Credo, parece que viste o diabo, mulher! — sussurrou Marta apavorada, vendo a aflição estampada no rosto lívido da patroa, que se agarrava desvairadamente ao escano para não desfalecer.
— Senhora Norina!!! Senhora Norina!!! — persistiu o vozeirão.
— Já ouvimos, senhor Mesquita, já ouvimos!!! — berrou-lhe a moça arreliada.
E, acarinhando a patroa com um olhar compassivo, correu ao encontro do carteiro que, entretanto, se adiantara e subira as escadas, empiscando à moça e brandindo espalhafatosamente o telegrama.
— O que será, Mesquita?! — inquiriu Marta assustada, pegando medrosamente no pedaço de papel e tremendo como uma vara verde.
— Oh, nunca pensei que a tua passarinha também tremesse assim, rapariga! — comentou o carteiro com ar de gozo, mirando-a atrevidamente.
— Oxalá não seja...
— Marta!!! — gritou esganiçada a dona do solar.
— Calma, Norina, calma! — aconselhou a criada, virando as costas ao mensageiro.
E, acenando aérea, apressou o passo, entrando na cozinha de telegrama na mão.
— Abre-o tu e lê-o que não deve ser coisa boa...
— E porque não há-de ser coisa boa, Norina? — retorquiu corajosamente a moça, abrindo cautelosamente a folha lacrada.
— Então?!
— O Armé... — balbuciou amuada, antes de acrescentar tristemente: — Ó meu Deus, que desgraça, Norina!!! Coitadinha da Verónica que já não tem pai!!!
— Ó Arménio, Arménio!!!... Eu bem te avisei Arménio!!!... Mas tu nunca quiseste ouvir os meus conselhos! Perdi-te, amor da minha alma!!! — bradou lancinantemente aquele coração trespassado, ouvindo a confirmação do que mais temera na vida.
— Senhor Mesquita!!! — berrou Marta, deixando cair ao chão o telegrama e sustendo energicamente a patroa desfalescente.
— Coragem, senhora Norina, coragem! — disse o carteiro perplexamente apiedado.
— Por favor vá avisar a professora e trazer a Verónica, mas não lhe diga nada!
— Fique sossegada e que Deus a ajude nesta hora, senhora Norina!
— Ai que desgraça, meu Deus!!! Ó amor da minha alma, que te perdi, amor da minha alma!!! Mas que vida vai ser a minha agora, meu Deus?! Ó maldita casa que foi a tua perdição! Arménio! Arménio!!! Nunca mais te verei, Arménio!!!
— Não te mortifiques, Norina, não te mortifiques... — implorou Marta, abraçando-a e reconfortando-a com emocionadas palmadinhas nas costas e nos flancos.
— Ui que dor!. Ó desgraça! Ó morte, leva-me, morte! Ai como és cruel, meu Deus!
— Por favor, Norina... Vá, toma, limpa essas lágrimas que a Verónica não vai tardar! — murmurou a moça, ajudando-a a sentar-se no escano e estendendo-lhe um lenço para enxugar as lágrimas.
— E agora o que vai ser da minha filha sem o pai, Marta?!
— Deus...
— Deus?! Não me fales mais de Deus, Marta, porque Ele não existe e se existe é cruel de mais para ser Deus!!! Mas que pecado fiz eu para merecer tal castigo, Marta?
— Acalma-te, Norina, que Deus é Bom e Justo.
— Bom?! Cala-te! Deus não existe! Eu sempre O avisei: se o Arménio morresse...
— Vá acalma-te, Norina, que vem gente no portão — sussurrou atemorizada.
E não disseram mais nada. Ouvindo passos e soluços, a tristeza apoderou-se-lhes da garganta e, mudas de dor, deixaram-se reconfortar pelas primeiras carpideiras de lenço negro que, sabendo da desgraça, acorreram lestas para lhes apresentar os pêsames e rezar pela alma do infeliz Arménio Sala.
Quando se abeirou de casa pela mão da professora, que fechara a escola e mandara os alunos embora, Verónica foi abraçada e beijada por quantos se amontoavam nas escadas e esperavam a sua vez para irem apresentar os sentimentos à pobre viúva. Comovidas, muitas pessoas, sobretudo mulheres, arredando-se para que a filha do emigrante passasse e se fosse abraçar à mãe.
— Ó mãezinha, não chore mais que o pai não morreu, mãezinha!!! — bradou a inocente aninhada no regaço maternal, tentando raivosamente evitar também as lágrimas negras que lhe jorravam fluidas pela alma esfaqueada cobardemente pela odiosa orfandade.
E Norina, agarrando-se e beijando desesperadamente à filhinha, disse tresloucada:
— Foi Deus quem matou o teu pai, Verónica!!! Foi Deus...
— Deus matou o meu paizinho?! Porquê?! Ó paizinho, não nos deixe aqui sós, paizinho!!! Não, não nos digas que te foste embora para sempre, paizinho do meu coração!!
Comovidas com aqueles gritos dilacerantes, as pessoas mais corajosas não resistiram e fundiram também em pranto; os lenços, as pontas dos aventais, os punhos ou as fraldas das blusas e as próprias mãos, tudo, tudo servia para enxugar aqueles rostos lacrimosos; enquanto uns cochichavam entre si, outros olhavam o céu azul e imploravam a clemência divina para a alma do conterrâneo. Mais célere que o vento, a notícia da tragédia voou de campo em campo e de rua em rua, espalhando a consternação e parando a faina daquele maravilhoso dia primaveril. E aos poucos, digerido o tremendo choque inicial, a população foi-se retirando cabisbaixa e apiedada para as suas casa, deixando a viúva e a órfã chorar em paz.

Como o Faia, que assinara o telegrama, tivesse escrito apenas “ o Arménio morreu ontem num acidente ” Norina, sentindo-se uma lástima sem forças nem coragem para enfrentar ninguém, mandou chamar Marta e pediu-lhe que fosse com o pai ou a mãe à vila falar com Manuel Feliciano, a quem a filha e o genro, que trabalhava com o passador, já teriam certamente telefonado àquelas horas. Porém ainda mal a moça metera as mãos no lavatório para passar uma pouca de água no rosto e nos olhos avermelhados, que a senhora Soledade, postada no canto da varanda, lhe cochichava:
— Vem aí o Feliciano Barrigana, filha!
— O que me diz, mãezinha?! — perguntou ela, limpando-se à pressa.
E, correndo de toalha ao pescoço, Marta foi avisar a patroa da chegada eminente do taberneiro, encorajando-a a erguer-se da cama e ajudando-a a recompor-se um pouco, pois parecia mal recebê-lo assim toda desguedelhada e lastimável. Para lhe dar tempo que Norina se penteasse, a rapariga pediu ao pai, que conversava no pátio com os vizinhos mais próximos do solar, para reter o homem da vila por dois ou três minutos. Compreendendo o rogo da filha, o senhor João lá saudou e reteve o taberneiro até que a mulher lhe acenou pelo postigo da varanda.
— Suba, senhor Feliciano — disse a velhota, ajeitando o lenço preto.
— Pobre da Norina, senhora Soledade! — murmurou condoído o visitante.
— Pois..., mas foi o Arménio quem se foi..., agora que tinha a vida tão arrumadinha, com aquele casarão da Timpeira e um emprego que o senhor Morgado da senhora D. Elisa lhe arranjara na câmara...
— Ainda bem que chegou, senhor Feliciano, estávamos mesmo para ir ter consigo! — disse Marta muito triste, encaminhando-o para a salinha de jantar.
__ Os meus pêsames, Norina, acredita que sinto muito o que aconteceu. O Arménio... Oh! eu nem acredito que é verdade! Até parece que o estou a ver a última vez que partiu: estava tão alegre, tão confiante e orgulhoso por vos poder levar para a Timpeira! — balbuciou comovido, apertando a mão franzina que a viúva lhe estendia timidamente, enquanto a filhinha, arrebatada, lhe retinha carinhosamente a outra.
— Obrigado, senhor Feliciano, eu sei que o senhor sempre foi muito nosso amigo.
— Dá cá uma beijinho, Verónica! — adiantou o taberneiro carinhoso, curvando-se.
— O senhor escusa de chorar que o meu pai não morreu, senhor Feliciano...
— Pois não, Verónica, pois não!... — repetiu o vila-realense apiedado.
— Marta, por favor, saiam um pouco, que eu quero falar com o senhor Feliciano.
— Está bem, nós vamos para a cozinha, se for preciso qualquer coisa... — disse a criada, retirando-se e pegando na Verónica pela mãozita.
Respirando fundo, a viúva encheu-se de coragem e escutou silenciosamente as novidades que o taberneiro ouvira há menos de meia hora da boca do genro, a única pessoa a quem o passador contara o sucedido ao Arménio na véspera, sexta-feira 13, algures numa rua de Paris. Estóica, Norina resistiu aos detalhes mais cruéis da morte do marido, mas quando se apercebeu que, por causa da terrível explosão assassina, jamais poderia trazer os restos mortais do Arménio para Portugal e dar-lhes uma digna sepultura, desmaiou nos braços do taberneiro que gritou:
— Marta!! Um copo de água, Marta!!!
— Depressa, Verónica, traz a água que eu vou ajudar o senhor Feliciano.
— Isso, ajude-me a sentá-la nessas almofadas — disse o taberneiro, curvado com o peso daquele corpo inerte.
— Coitada da Norina!... — murmurou a criada, ajeitando a almofada na cadeira.
— Olhe, Marta, nestes dias a D. Norina vai precisar muito da sua ajuda dia e noite, porque não lhe será fácil habituar-se a esta ideia.
— Que ideia, senhor Feliciano?
— O Arménio..., tchut!...
— O Arménio quê, senhor Feliciano? Vá, deixem-se de segredos que eu já não sou nenhum bebezinho! — ordenou Verónica, encarando-os corajosamente.
— O corpo do teu paizinho não pode vir...
— Corpo?! Qual corpo? O senhor é surdo ou faz-se? — retorquiu a órfã arreliada.
— Pronto, Verónica, não grites que a tua mãe... Dá cá a água e ajuda-me a dar-lhe de beber — adiantou Marta, amparando a patroa e despachando discretamente os serviços do taberneiro, que saiu envergonhado para a varanda.
— Então, Feliciano? — perguntou-lhe o pai da Marta.
— O Arménio nunca mais voltará à Almodena, senhor João — segredou o taberneiro.
— Credo! Mas o que é que foi que aconteceu?!
— Ele e o Raimundo iam a passar numa rua de Paris, quando arrebentou uma bomba... Morreram várias pessoas. Coitado, ao Arménio nem a alma se aproveitou!...
— E o Raimundo?! — perguntou baixinho o reumático, amparando-se à bengala.
— O Raimundo, senhor João?! Foi um milagre!
— Então?!
— Teve uns arranhõezitos, mas já está em casa.
— Ó valha-nos Deus! — implorou o velhote, benzendo-se e olhando o céu.
— O meu genro e o Chico Serra, o rapaz que namora com a minha caçula, andam a dar as voltas para ver o que podem fazer pela Norina e pela filha. Coitadinha da menina, até me causa pena ouvi-la dizer que o pai não morreu. Que ninguém a contrarie, senhor João, que esta morte pode dar-lhe a volta à cabecinha.
— Ai, Feliciano, é tão triste perder-se o pai assim tão novo!
— Pois é, senhor João, mas pobre de quem vai!...
— Coitado do Arménio, era tão bom rapaz!
— Se era, senhor João, se era!...
— Vossemecê já se vai?
— O meu genro ficou de me telefonar e a minha Rita sozinha na taverna não dá conta do recado.
— Que Deus lhe pague, Feliciano!
— Ora essa, sempre às ordens! Diga à Norina que fique sossegada que eu voltarei à noitinha com a minha Rita, depois de fechar o comércio.
— Vá com Deus, Feliciano!
— Até logo, adeus! — disse o taberneiro, acenando ao velhote.
Entretanto, recuperados os sentidos, a viúva bebeu o copo de água e, apoiando-se na criada e na filha, arrastou-se até ao quarto, onde ficou a esvaziar sozinha a dor e a raiva que lhe corria vertiginosamente nas veias e domar os sacrílegos pensamentos que o demónio lhe suscitava freneticamente desde a manhã.
Aos vizinhos e conhecidos que vinham saber o dia e a hora do enterro do Arménio e apresentar os pêsames à viúva, Marta ia dizendo que aguardavam ordens de França e nada estava decidido, mas que a amiga tudo faria para que o marido fosse honrado com um imponente ofício religioso, se o funeral, por qualquer motivo, tivesse que se realizar em França.
Ah! o que elas não dariam para não ter que viver aquelas horas terríveis! O tempo, que tudo cura e digere impiedosamente, esquecera-se caprichosamente de prosseguir a sua inelutável e corrosiva viagem para mostrar àquela alma pecadora quão fútil e débil é o nosso destino e quão mesquinha pode ser a nossa fé quando perdemos brutalmente quem mais amamos...

continua em Capítulo VI

LMP - Luxembourg 1984 - Lud MacMartinson

Caminhos de ilusão: Capítulo IV

CAPÍTULO IV



A noite de Consoada, a três, não tinha a mesma magia como quando a numerosa família se juntava à volta do fogaréu, porém o destino quisera assim e havia que aceitar a vontade de Deus. Enquanto comiam, Arménio recordou muitas das ceias de Natal, que passara com os pais, o Tó, o irmão mais novo, que um acidente de moto lhe matara aos vinte anos, e alguns tios e primos maternos que, entretanto, ridículas zangas de partilhas de água, haviam separado. Dos que estavam no Brasil, só restava a lembrança dos lamuriantes pedidos de perdão, a quem ficava, na hora do adeus à terra. Norina também evocou os velhos tempos das consoadas harmoniosas, em que as famílias, alternadamente, comiam, bebiam e brincavam até de madrugada. E quantas delas, nesses recuados anos, depois da farra, não se terminaram com a reza do terço?!
Depois, pouco a pouco, eles foram perdendo esse hábito sagrado e a família foi-se desunindo. Naquelas horas de paz, até os parentes do Brasil, que eles mal conheciam, tantos eram já os postais de boas-festas amontoados na gaveta das lembranças, vinham à baila, sendo recordados com empedernida saudade.
A imagem do tio Rodrigo, omnipresente em tudo o que diziam ou tocavam, foi quem mais os comoveu, cortando-lhes a vontade de saborear os fritos e anestesiando-lhes a alegria secular daquela noite impar. Como ficaram espantados com a memória da Verónica, que, insensível a tão dolorosa saudade, lhes devolveu fielmente os últimos dias do querido velhote! Até parecia que os gestos e as palavras do moribundo se tinham congelado de frio e dor nas mãos e nos lábios da mocinha e agora, aquecidas pelo calor da nostalgia, se reanimavam naturalmente. Depois de tanto remexido, o borralho da braseira esmoreceu e o frio entrou pela cozinha, cercando-os na mesa do escano, o móvel que, depois de alisado e encerado, Arménio poria ao lado dos potes de ferro, na vivenda da Timpeira.
Apoquentada pelo sono das onze e meia, Verónica despediu-se dos pais, beijando-os na cara e, pegando nas bonecas, refugiou-se no seu quarto. Largado num terno e comovido face a face, o casal sentiu a libido esmorecida magnetizar e encadear os seus olhares tímidos, colando-os num sentido transcendental abraço.
À meia-noite, arrumada a casa e apagadas as derradeiras brasas do borralho, os namoradinhos foram prolongar os carinhosos mimos entre os lençóis que uma botija de borracha, cheia de água a ferver, entretanto colocada no fundo da cama, lhes amenizara.


No dia de Natal, Arménio, a esposa e a filha assistiram à missa, saudando brevemente os amigos e conhecidos que ali encontraram. No fim do culto, a geada fria e um repentino vento arisco evitaram ao emigrante as demorados e curiosas questões sobre as terras de França, que os homens, ao soalheiro, se preparavam para lhe pôr.
Enquanto a mulher ficou a cozinhar umas batatas frescas para acompanhar com a raia e o polvo fritos da véspera, ele correu a saudar o Manuel Feliciano, o taberneiro. Aí soube que o Zé Calhordas, aliás Pinto, pedira namoro à Maria, que lho aceitara; que a Zélia, aproveitando a boleia da irmã, também se falava com o Chico Serra e que o Raimundo, depois de o pôr em Valdahom, voltara a Portugal para fazer mais três carradas de clandestinos e, dizia-se, iria construir uma vivenda para os lados de Mateus.
Entre uma jeropiga e um doce de baunilha, também teve conhecimento de uns casos de morte à facada na Balsa e da prisão de uns tipos metidos a políticos no Pinhão. É que, apesar do Marcelo Caetano, presidente do governo, parecer ser um homem porreiro, a Pide não se compadecia com ninguém. No ultramar, como diziam os últimos a chegar, começavam a ouvir-se vozes de discórdia e protesto contra a guerra e, no continente, o regime Salazarista ia mostrando sinais de fraqueza, para júbilo dos apoiantes do assassinado Humberto Delgado, o general sem medo, que tantos seguidores deixara em Vila Real e em Trás-os-Montes, a quando da sua candidatura à presidência da república, cuja popularidade crescente causara o pânico nos comandos da Pide, que o atraiu e matou cobardemente em Badajoz.
Ao almoço, quis contar à esposa as novidades que colhera na tasca do Feliciano, mas ela pediu-lhe para não perder tempo com coisas que não lhes diziam respeito. E, acatando a sugestão da esposa, comeram tranquilos, ao som das histórias de fadas que a Verónica se encarregou de lhes contar. E o Natal lá se passou na paz dos anjos.

Na manhã do dia 27 de Dezembro, segunda-feira, os Salas apresentaram-se no cartório do notário para a abertura do testamento do tio Rodrigo. A impaciência apoderou-se-lhes do corpo e, como era a primeira vez que iam encarar um homem da justiça, não conseguiram disfarçar o nervosismo, patenteado na voz trémula e nas mãos suadas de tanto as esfregar e nos rostos corados. Verónica, encapotada numa jaqueta que o pai lhe trouxera para o Natal, viajava por mundos afáveis, alheia àquele acanhamento paternal. Sentados num banco de madeira bem lustrada, eles iam segurando os deditos da filha irrequieta e esperando que o doutor viesse quebrar aquele silêncio absurdo, em que estavam mergulhados. Mal ouviram o rangido da fechadura, levantaram-se e, espevitados pelos passos ruidosos no chão encerado, suspenderam a respiração, mas logo foram libertos desse constrangimento por um sorriso apaziguador.
— Bom dia! Ora essa, façam o favor de se sentarem! — perguntou o amável notário.
— Bom dia, senhor doutor! — responderam eles, apertando a mão esguia que o calvo homem de leis lhes estendia.
— Então como passaram as festas de Natal?
— Não tivesse o nosso tio, que Deus tenha, falecido — disse Norina, benzendo-se entristecida - e tudo teria sido óptimo, senhor doutor.
— O senhor Arménio está em França, não está?
— Sim, senhor doutor, desde Setembro.
— Lá vive-se muito melhor aqui, não vive?
— Nem se compara, senhor doutor!
— Ainda bem, senhor Arménio, ainda bem! — exclamou o notário, abrindo um envelope lacrado com um estilete pontiagudo.
E um silêncio asfixiante apoderou-se-lhes da garganta, suspendo-lhes a respiração por segundos. Rompendo o absurdo, o notário estendeu a folha dobrada na sua secretária e, ajustando bem os óculos, leu solenemente:
" Eu, abaixo-assinado, Rodrigo Valadares, nascido a 16 de Junho de 1894, na aldeia e freguesia de Almodena, do concelho e distrito de Vila Real, no pleno exercício de todas as faculdades mentais, declaro que é da minha própria e livre vontade que lego... " Os senhores estão a compreender? — interrompeu o executante, retendo-lhes o olhar comovido.
— Sim, senhor doutor! — assegurou a sobrinha do testador, segurando a mão da filha.
— Então, como não há dúvidas, — esclareceu o testamenteiro, confirmando o assentimento dos seus interlocutores — continuemos — e prosseguiu pausadamente. — lego, portanto: Primeiro, todas as minhas propriedades rústicas aos meus saudosos e queridos sobrinhos, Norina dos Anjos Valadares Sala e Arménio Sala, que sempre me estimaram, honraram e socorreram com carinho. Segundo, é meu desejo assegurar a educação da enfermeirinha e confidente dos meus últimos dias, a minha caridosa e meiguinha Verónica Valadares Sala, para que se forem esses os desígnios do nosso Salvador, possa realizar a sua vocação, servindo a Santa Madre Igreja, legando-lhe todas economias que poupei durante a vida e que estão depositadas na Caixa Geral de Depósitos de Vila Real e cujas promissórias totalizam quinhentos e dez mil escudos. Terceiro, é minha vontade doar à Santa Casa da Misericórdia de Portugal os dinheiros que trago emprestados e cujas letras somam noventa e nove mil escudos, para que essa instituição de caridade possa continuar a sua missão ao serviço dos mais necessitados. Quarto e último, lego a casa onde sempre vivi e todos os meus quinteiros aos meus supra-citadados sobrinhos, Norina dos Anjos Valadares Sala e Arménio Sala, para que a família tenha, em caso de fatalidade, um refúgio, e mais lhes peço que nunca desprezem nenhum mendigo que lhes bata à porta, como sempre o fiz, e lhe dêem uma sopa para matar a fome e guarida num dos quinteiros das traseiras ou da laje da eira. Por ser verdade e de minha livre vontade e no gozo de todas as faculdades mentais, ditei e assinei este meu testamento em Almodena, aos quinze de Outubro de 1971." Assinado — referiu o notário, dobrando a folha azul de papel selado - Rodrigo Valadares. Como estão a ver, — prosseguiu respeitoso — o vosso tio, que tive a honra de conhecer na sua agonia, manteve-se digno e fiel aos seus princípios até ao fim, não esquecendo a família com quem viveu, nem esta linda menina — disse o testamenteiro, sorrindo à Verónica.
— O tio Rodrigo, que Deus tem, foi sempre muito generoso para com toda a gente, senhor doutor — referiu Norina emocionada, retendo as lágrimas com o lenço.
— Olhe, minha senhora, eu nunca me lembro de ter escrito o nome do seu tio em nenhum livro, mas conhecia-o de vista e, a ver pelos elogios que lhe fazem aqui nesta bonita cidade de Vila Real, vejo que era um homem de bem e de coração nobre.
— Se não é falta de respeito ou atrevimento da minha parte, qual é a terra de Vossa Excelência, senhor doutor? — perguntou Arménio envergonhado, acariciando a mão húmida e trémula que a esposa lhe pousara no joelho.
— Eu nasci numa aldeia do concelho de Valpaços, mas fiz os meus estudos em Coimbra, senhor Arménio — respondeu prontamente o homem de leis.
E a conversa prolongou-se por mais de meia hora.
Ali, o emigrante e a esposa confessaram ao notário as suas vidas, sempre incomodados pelos trejeitos irrequietos da filha, a quem o notário, entretanto, dera um rebuçado de chupar. Quando abandonaram o gabinete, já estava na hora de meterem as panelas ao lume para o almoço.
Ainda tonta e absorvida pelos tachos, Norina não arranjara tempo para sonhar com a herança que o tio lhe deixara. Mais pragmático, Arménio, esse, começou logo a delinear novos projectos para a sua vida. Agora, que passava a dispor de todos os bens do tio Rodrigo, apesar de não poder mexer no dinheiro destinado, exclusivamente, à educação da Verónica, talvez tivesse que repensar um pouco melhor o futuro.
Pela tardinha, depois do cochilo da sesta, livres das traquinices da filha, que dormia como uma pedra, eles assentaram-se à volta da lareira e, mastigando umas castanhas assadas, que o lume ia aquecendo no aro do trasfogueiro, confessaram-se mutuamente os sonhos que o testamento lhes suscitava.
Norina, invocando que passaram a ter uma casa de perpianho, muito espaçosa e cómoda, tentava convencer o marido a não a voltar para o estrangeiro ou a antecipar o retorno definitivo, aconselhando-o a abandonar Valdahom e a vir ocupar-se da lavoura. Arménio, até concordou em voltar mais depressa, todavia, a tentação do dinheiro que podia contar ao fim da semana, ofuscou-lhe a razão e obrigou-o a contrariar os argumentos da esposa.
As lidas do campo, naqueles anos, eram o único sustento das gentes da aldeia, mas, desde que Marcelo Caetano facilitara a emigração, todo o mundo sonhava com o eldorado europeu, uma vez que o Brasil, anterior destino dos nossos corajosos emigrantes, já não dava como antes, enquanto que as províncias ultramarinas, antigo sonho imperialista, viviam horas aflitivas e ameaçavam cair nas mãos dos turras. Além disso, o vila-realense há muito que não segurava a rabeca do arado; que não atava as correias nas molhelhas dos bois; que não escavava, tesourava ou podava as cepas de morangueiro; que não semeava ou ceifava e, sobretudo, não estava habituado a esperar um ano inteiro para ver a cor do dinheiro dos pobres lavadores, quando as moléstias não os punham a pedir e os tornavam mais desgraçados e endividados. Não, a terra, mãe da felicidade, ia perdendo aquele arreigado encanto que fazia palpitar e tanto enfeitiçava os corações das gentes simples e rudes das nossas briosas aldeias.

No dia 31 de Dezembro de 1971, sexta-feira, saíram cedinho do Calvário para a Almodena, a fim de aí passarem as últimas horas do ano e, inebriados pela nostalgia do saudoso tio Rodrigo, tentarem conciliar os seus pontos de vista e darem outro rumo às suas vidas. A não convencer o marido a ficar, um dilema dilacerava o coração da Norina: continuar no Calvário, ou retornar às suas origens, instalando-se no enorme solar de perpianho que, sem as crias que aqueciam aqueles muros graníticos e quebravam a solidão daquele retiro, tantos medos lhe inspiravam. Ali, ela poderia contar com a solidariedade dos vizinhos, mas, mesmo assim, os mendigos, sobretudo os homens mais viris, que o tio Rodrigo habituara a procurar uma malga de sopa, metiam-lhe medo. Decidido a ir mais alguns meses para França, Arménio compreendeu o receio da mulher e, pensando bem, sugeriu-lhe que pedisse à Marta, a amiga de infância, para vir dormir com ela todas as noites e ajudar a cultivar as terras, pelo menos enquanto ele não voltasse.
Aproveitando a sugestão do marido, Norina não perdeu tempo e, à tardinha, decidiu ir falar com os pais da confidente dos tempos de namorico, de quem se desligara um pouco, depois do casamento. Embrulhando umas peças de fumeiro e uma garrafinha de jeropiga para os pais da moça, lá se foi reavivar uma amizade antiga.
Inevitavelmente, e porque Marta, a principal interessada, não estava, a conversa recaiu, inevitavelmente, sobre evocação da memória do saudoso tio Rodrigo, que Deus tinha, antes de passar para a badalada França, a terra das patacas que a todos fascinava. Também recordaram os bons velhos tempos de solidariedade nas das desfolhadas enluaradas, das malhadas infernais e das lagaradas divertidas, em que os moços, atiçados pelas coxas das raparigas, se precipitavam sobre as uvas, curando pequenas mazelas da epiderme com o melaço, enquanto jogavam à cabra-cega, cantarolando à volta da tarraxa do lagar, apinhado de moças solteiras.
A noite surpreendera a evocação das reminiscências e Almodena ficara envolta no breu; a aragem fria resfriara-lhes as pernas e as costas, apesar dos cavacos de carvalho, que o senhor João, pai da Marta, ia tirando do escano e metendo no lume, enquanto a senhora Soledade, a mulher , regressando aos tempos da sua meninice, evocava factos remotos, de que a Norina mal ouvira falar, esperando que a filha chegasse entretanto. Porém, como a Marta não desse sinais de vida e se fizesse tarde, Norina deu as boas-noites aos velhotes e, desejando-lhes um bom Ano Novo, pôs a caminho do solar. Empunhando um facho de palha, ela ouvia o alarido da mocidade festejeira e recordava nostalgicamente a sua, que não tivera. O clarão da labareda esbarrava nas lajes da calçada e infiltrava-se por debaixo das frinchas das portas, alertando os ruminantes das lojas e as gentes que tencionavam celebrar o nascimento de 1972.
No largo da aldeia, os moços amontoavam troncos de árvores e tudo o que pudesse arder, preparando a fogueira que, segundo a tradição, deveria durar até ser dia. Foi no meio da algazarra que Norina surpreendeu a amiga Marta a falar com um magricelas, porém fez que não a viu, continuando o caminho, atemorizada pela balbúrdia.
Postado na varanda, de pé e de candeia na mão esquerda, o marido já há muito que lhe acenava, mas ela, roçando as socas nas lajes românicas, pensava apenas em livrar-se das poças de lama e em chegar a casa com os pés enxutos. Matutando na vida, Norina só se apercebeu de que estava em casa, quando o Arménio fez ranger a porta de ferro forjado e lhe segurou o resto do facho de palha que se consumia lentamente.
Um sorriso envergonhado saltou-lhe dos lábios frios e foi-se colar na barba áspera do guardião na forma de um beijo demorado e doce, que o vento arisco e a febre do desejo convidavam a prolongar nas esteiras do escano.
E, enquanto o ano-velho dava o último brado, Arménio e Norina abafavam os suspiros langorosos da demencial febre de amor debaixo das mantas. No largo da aldeia, a mocidade, essa, pulava e soltava gritos animais para saudar a ano-novo como mandava a tradição, fumando mata-ratos, alcunha do kentuck, o minúsculo cigarro dos pobres, que a juventude tanto apreciava, e bebendo uns copitos de aguardente para empurrar os figos e as amêndoas que uns e outros se ofereciam.

1972 nasceu com muita fé. Pelas onze horas da manhã, a Verónica, farta de brincar e monólogo de surdos coma a boneca, encheu-se de coragem e foi bater à porta do quarto dos pais a reclamar a malga da sopa de farinha com açúcar escuro, mas não ouviu tui nem mui. Com a barriga em jejum, a pequenita lembrou-se então de bater os tachos e as panelas para os acordar. Assarapantada com o impacto estridente de uma panela de alumínio contra o trasfogueiro, a mãe saltou da cama em combinação e, alarmada com a hora tardia, apressou-se a matar-lhe a fome.
Nesse dia de Ano Novo, sábado, eles tencionavam voltar ao Calvário, logo depois do almoço, se Marta aceitasse a proposta. Caso contrário, Norina deveria desencantar outra companheira que a ajudasse a vencer o medo e a solidão das longas e friorentas noites de invernia. Sozinha no casarão é que ela não ficaria. Ainda arrumava o louceiro, quando ouviu a voz apaziguante da filha do senhor João e da senhora Soledade:
— Norina! - gritou a moça, tilintando a maçaneta do portão de ferro.
— Entra, Marta, entra! — gritou-lhe ela sorridente, acenando por detrás das cortinas.
Enquanto a amiga subia as escadas graníticas, limpou apressadamente as mãos, ajustou o avental e abriu a porta, beijando-lhe o rosto frio.
— Eu acho que te vi ontem à noite, perto da fogueira, com um rapaz. Era o teu namorado, Marta?
— Aquele pingareu, Norina?! Tu já viste que se eu lhe caísse em cima...
— Porquê? Ele não era assim tão pequeno!
— Pequeno?! Raquítico, mulher! Aquilo mais parecia meu filho... Enfim, já que esperei estes anos todos, agora só vou aceitar namoro a um que me encha bem as medidas, como dizia a outra! — exclamou Marta, balançando maliciosamente o busto.
— Também acho — aprovou a Norina, de riso no canto do olho.
— A minha mãe falou-me que o Arménio voltava para França e que tu querias mudar-te para aqui. É verdade?
— Sim, é verdade, Marta. O tio Rodrigo pediu-nos que não deixássemos cair estes muros e...
— Ah, seria uma pena, se este rico perpianho ficasse aqui para os ratos!
— O Arménio anda tão iludido com a França que ninguém o convence a vir de vez. Até parece que é o demónio que o está a tentar, rapariga!
— Iludido?! Como assim, Norina?
— Oh! Vê lá que passa os dias a desenhar e a matutar com a vivenda que há-de construir no nosso prédio da Timpeira. Bom, antes do tio morrer, até se aceitava, mas agora, que herdamos isto tudo, precisaria ele de voltar para França? Diz, precisava?
— Qual? Naquele, perto do circuito, onde até os pneus chiam nos dias das corridas?
— Sim, nesse todo.
— Ah, o Arménio tem razão! Uma vivenda ali devia ser um espectáculo! Quem me dera casar com um homem que pensasse assim, Norina!
— O meu é realmente muito bom, não posso dizer o contrário, porém esta caturrice assusta-me. Tenho a impressão que pensa mais na casa do que em mim.
— Credo, não digas isso! O teu Arménio não vê outra mulher!
— Talvez, mas se soubesses as arrelias que aquela cisma já nos trouxe!...
— Arrelias? Homem sem génio não é homem! Vá, não sejas assim tão exigente que o Arménio sempre foi bom rapaz, Norina. Até parece que ainda vos estou a ver namorar na esquina do adro. Ele vinha para aqui de bicicleta. Eu era uma catraia, mas...
— Catraia?! Tu eras tão alta e mais forte como eu! Diz, tu és mais nova que eu dois anos, não é, Marta?
— Sim, dois anos e dois meses. Quando entrei para a escola, tu andavas na 4ª.
— Mas isso foi porque eu avancei um ano — esclareceu Norina, franzindo a testa.
— O Arménio era muito prosa, não era?
— Bastante...
— Eu vi logo que tu eras maluquinha por ele, apesar do Raimundo se gabar...
— Oh, era o destino, Marta! Sabes, a mulher que sentir o apelo da maternidade deverá reconhecer instintivamente o marido, com quem se casará. O homem da nossa vida, aquele que nos levará ao altar e a quem entregaremos a nossa virgindade e com quem seremos verdadeiramente felizes até ao dia do Juízo, será o que não fará, porventura, nada, por vergonha ou medo de nos perder, mas cujo olhar nos dirá tudo. Há olhares, Marta, que são um livro aberto...
— Não me digas?!
— É verdade! Por isso pouco adianta andares aflita com os rapazes, porque o que tiver que ser eternamente teu, não será feliz com mais ninguém. O coração do puro amor — prosseguiu filosofal - é uma casa sem portas, nem janelas e, por isso, não precisa de passar a vida à procura de uma chave para a fechadura que não existe.
— Mas, se é assim, porque será que tantos casais até se dão bem e acabam por se divorciar ao fim de meia dúzia de anos, quando não é de meses? — arguiu a mocetona.
— É porque eles forçaram o destino, se casaram por conveniência, não escutaram a voz da consciência, ou ajuntaram os trapos para agradar a outros, quando não o fizeram para esconder a mancha do pecado.
— É, terás razão... — admitiu a rapariga convencida, cismando nas palavras da Norina.
E aqueles dois dedos de conversa bastaram para afinar as suas retinas cristalinas e ressuscitar a ingénua cumplicidade dos bancos da escola, quando se diziam tudo no recreio da escola, ou enquanto aguardavam a vez de encherem o cântaro na fonte. Não, apesar de casada, a sobrinha do ti Rodrigo não mudara nada.
Com quase vinte e três anos, Marta era uma rapariga habituada às rudes fainas do campo. Tão boa de braços como de dentes, também servia de pagode e chacota para os rapazes que teimavam em medir forças com ela. Outros, os pingareus, para se esquivarem aos desafios ou justificaram a derrota da virilidade, até diziam que ela devia ser filha da padeira de Aljubarrota ou prima da Maria da Fonte, lendárias e heróicas mulheres da História Portuguesa, a quem os manuais escolares atribuíam força hercúlea. Quem a visse, assim tão loira, pensaria que ela deveria ser a filha de alguma divindade viking, cujo drakkar tivesse encalhado na Póvoa de Varzim, não fossem os seus genitores transmontanos de gema, cujo mundo acabava na serra do Marão. Mais, a filha da Soledade possuía no rosto fino o espelho mágico que lhe subtraia os supérfluos tecidos adiposos do tronco e dos membros. No Verão, os cabelos compridos, ricocheteando nas searas de centeio, reflectiam o ouro do Sol e o seu sorriso subtil subjugava o sibilino sussurro do moço que nela encontrasse a sensual e fantasmagórica personificação do desejos. A austeridade paternal, a língua afiada da coscuvilhice das casamenteiras da aldeia e a sua irreverente franqueza, porém, desanimavam os rapazes que nela viam a mãe de uns filhotes de pêlo russo e de olhos azuis e nela iam beber aquele desejo ardente que tudo consumiam sem deixar rasto: o cansaço da faina do campo e a insónia das noites enluaradas. Ai Marta, Marta!...
Como o marido e a filha se atardassem na casa do antigo moço do tio Rodrigo, Norina, a quem as chalaças irreverentes da Marta haviam tirado da cabeça as cismas malfadadas, decidiu cortar umas cascas de feijão seco para cozer com chouriços. As seis da noite bateram imponentes no pêndulo do salão, mas ela, tão ocupada que estava, nem se voltou para ver as horas, como era seu hábito, pois considerava o relógio de pulso, tal como o de bolso com as correntes de ouro, com que os mais abastados se pavoneavam nos dias de feira ou nas ocasiões festivas, um enfeite desnecessário, para quem fazia do toque das Trindades o momento mais aprazível do dia e sem quem a noite não encontra a paz.
No campo, depois do sol, era o sino quem ditava as horas e o temor a Deus.
A bajulice hipnótica da tão fugaz, mas oh quão intensa!, quinzena natalícia desarmou Norina que, na madrugada do dia 7 de Janeiro, sexta-feira, se despediu do marido com um lacrimoso sorriso de esperança, enquanto Verónica enchia o pai de beijos.
A vida, agora que cuidava de uns bezerros e de uns leitões, a meias com Marta, era bem mais suportável, apesar do trabalho que as crias lhes davam. A sua readaptação à vida de Almodena fez-se tão rapidamente que as amizades ressurgiram naturalmente. Ela, que na cidade comprava quase tudo, readquiriu os hábitos da aldeia, imitando as pessoas que sempre se haviam remediado com a agricultura de sobrevivência. Era até com um certo orgulho e prazer que ela voltava ao forno do povo para cozer a farinha que trocava com o moleiro; que estrumava os quinteiros e os currais; que levava, quando lhe calhava, os bezerros a pastar e regava os quinchosos.
Cumprindo o testamento do tio, Norina também ia socorrendo os pobres que lhe batiam à porta e encaixando as letras destinadas à Santa Casa da Misericórdia. Todavia, a tarefa que mais lhe alegrava a alma era, sem dúvida, o arranjo do altar-mor da igreja, onde passava as tardes de sábado a varrer, a limpar o pó, a ajeitar os vasos e, num monólogo com Deus, se desculpava pelos maus pensamentos e iras da semana.
Marta, desejando talvez imitar e a enciumar a patroa, começara a ser mais regrada na língua e, sobretudo, nos dentes. É que, dizia, larpava demais e, a comer assim, ficaria pior do que uma lontra, mas, no íntimo, o que ela queria era ser tão fina como a Norina, para que os rapazes a vissem com outros olhos e a imaginassem mais meiga, mais doce e, sobretudo, mais sensual.

Na carta da Páscoa, além do trabalho e dos contos que deveriam chegar brevemente pelo vale dos correios, Arménio falava-lhe da visita inesperada do Faia a Valdahom, assim como do casamento, provavelmente no dia 15 de Agosto, do Zé Pinto, o Calhordas, com a Maria do Feliciano. Quanto a ele, segredava à esposa, tudo lhe corria às mil maravilhas e, possivelmente, só aguentaria mais um ano longe dela, pois as saudades eram mais que muitas. Além disso, também lhe pedia que fosse, com os desenhos e as medidas que lhe enviava, consultar um empreiteiro para saber por quanto lhe ficaria a vivenda e, se ele estivesse de acordo, quando é que lha poderia começar. O emigrante rogava ainda à mulher que visse a possibilidade de pagar uma parte da obra um ano depois de receber as chaves e lhe mandasse um duplicado com os orçamentos dos empreiteiros que contactasse. Abismada com aquele repertório e temendo não dar conta dos recados, Norina leu e releu várias vezes a carta mais comprida que ela recebera de alguém, dizendo-se que aquilo mais parecia um testamento que uma carta normal, mas também não seria para menos, a ver pela pressa que o emigrante tinha em realizar o seu sonho.
Ao Serão, conversando à volta da fogueira, revelou inadvertidamente à Marta alguns dos segredos que o marido lhe pedira para guardar e ainda o sono não lhe tinha acossada as retinas e já o arrependimento lhe batia à porta da consciência. Incomoda, pediu então à confidente que tivesse cuidado e, por amor de Deus, não contasse nada a ninguém. E a moça, sorrindo-lhe meiga, deu-lhe de olhos, tranquilizando-lhe os sonhos daquela abençoada noite.

Nos dias que se seguiram, as suas diligências pelos melhores empreiteiros das redondezas deram-lhe a saber que o sonho do Arménio lhe custaria, pelo menos, e se não demorasse muito tempo a decidir-se, trezentos e cinquenta mil escudos: uma fortuna! Sem perder tempo e seguindo à letra as recomendações do marido, registou a carta nos correios e voltou a Almodena pelos atalhos. Ao entrar em casa, apercebeu-se que estavam em vésperas de 13 de Maio, dia da peregrinação à Nossa Senhora de Fátima, que nesse ano deveria encher a praça da basílica por calhar ao sábado. Correu à igreja a acender uma vela à Virgem Mãe, permanecendo ajoelhada diante da estátua por mais de vinte minutos a rezar pelo marido.

Entretanto, a Primavera instalara-se discretamente nos campos. Atarefada com a azáfama das sementeiras, as regas e o sustento dos animais, Norina não tinha tempo para ouvir o canto alegre dos passarinhos, a chilrear pelos campos, nem saborear o ar puro que agora respirava; os dias cresciam a olhos vistos, mas ela tinha cada vez menos tempo para cismar com a lengalenga das cigana, que tanto a chateavam para que lhe deixasse ler novamente a sina, argumentando que, se tivesse fé, poderia mudar o rumo do destino.

No mês de Julho, lá justou a vivenda na Timpeira por trezentos contos, aproveitando a oferta de um construtor da cidade que, terminado o casarão de um emigrante de Lamas de Olo, não sabia como entreter os empregados. O contrato, feito em papel selado, foi enviado em duplicado ao Arménio que o assinou e o devolveu à esposa com a recomendação de o ir reconhecer ao senhor doutor Silveira, o notário, a quem o tio Rodrigo confiara o seu testamento.
Atarefada, Norina nem havia calculado as mesadas que o marido teria que mandar para pagar ao empreiteiro, mas, logo na primeira carta, em que o informou do início das escavações, lá no sítio onde ele havia espetado as estacas, não se esqueceu de lhe pedir explicações. É que, pelas suas contas, mesmo que o dinheiro da França ficasse todo de lado e, se Deus quisesse, havia de ficar, eles teriam na mão as chaves da vivenda, quando muito, no fim de Julho de 1973 e a última prestação teria que ser paga até 31 de Dezembro de 1975, quando ele, se não lhe aumentasse às mesadas, precisaria de andar pelo estrangeiro mais quatro anos. Não, ou o seu raciocínio não estava certo, ou o marido a enganava. Afinal, quantos anos é que ele queria ficar verdadeiramente lá por fora e trazê-la iludida? Quanto é que ele ganharia mesmo por mês? Como é que ele viveria? O que é que ele faria para se afoitar assim tanto com a vivenda? Estaria ele a cometer algum pecado, ou a desviar-se dos caminhos de Deus? E o rol das questões nunca mais acabava. Agarradas às dúvidas vieram as suposições e com elas a desconfiança e os maus presságios, mas, desta vez, preferiu guardá-los a sete chaves no seu coração, não fossem os muros ter ouvidos, ou tudo aquilo não passar de cismas malucas, como o Arménio costumava dizer.
À medida que o esqueleto da obra ganhava forma, o seu espirito perturbava-se e entrava em pânico, só de contar os dias que faltavam para pagar ao empreiteiro e o vale do correio sem chegar. Lendo-lhe as preocupações na testa, o pacato senhor Jaime, o construtor, punha-a à vontade quanto a um eventual atraso, mas Norina só sossegava realmente quando o carteiro lhe mandava assinar o postal cor-de-rosa e o montante ultrapassava as suas expectativas, o que acontecia frequentemente, sobretudo nos meses de Verão, com os dias muito mais longos.

No mês de Agosto, foi com emoção que viu chegar os emigrantes. Sempre que lhe perguntavam pelo marido, os seus olhos não resistiam e cobriam-se de lágrimas. Arménio não viria porque o Fortunato Galela lhe arranjara uns biscatos que iriam dar um jeito às finanças, graças à mansão de férias de um inspector das finanças, amigo da Martine, que eles e mais dois transmontanos lhe construíam para os lados do Jura, nos Alpes, perto da Suíça.
No sábado, 12 de Agosto, a taverna do Feliciano foi invadida por dezenas de alcoólicos: o patrão, para festejar o casamento da Maria com o senhor José Pinto, servia grátis para toda a gente.
Apesar de convidada, Norina aceitou o convite, mas à última hora, porque o marido não estava, preferiu enviar a Marta no seu lugar, com um lindo jogo de cama bordado na ilha da Madeira. Como ao casório não faltariam os colegas do noivo, obviamente o passador também estaria lá e, esse, por nada, mas nada deste mundo o queria olhar, de soslaio que fosse, para não ter passar mais noites de insónias e reviver más recordações.
No casamento do Zé, fascinado pelas curvas sensuais da conterrânea, que deambulava perdida por entre os convivas, Raimundo, para quem nenhuma das moças solteiras do rol servira, perguntou-lhe se o aceitava como par. Surpreendida, mas honrada pelo pedido de tão falado cavalheiro, a donzela não teve a coragem de recusar e lá deu o braço ao passador, seguindo as pegadas da Zélia que ia amarradinha ao Chico Serra. E uma multidão de curiosos, ladeando as bermas da faixa direita da avenida Carvalho Araújo, aplaudia entusiasticamente os casais que acompanhavam os noivos à Sé, onde os esperava D. António Helder Casaleiro, bispo de Vila Real.

No domingo, depois de cumprir o dever cristão, Norina largou a filha na varanda e, ouvindo ressonar ruidosamente, espreitou para o quarto da empregada. Acalorada, Marta dormia desacautelada sobre os lençóis. A combinação florida, iluminada pelo sol do meio-dia, mal lhe cobria as nádegas, revelando àquele olhar intruso todos os benefícios da dieta que a dorminhoca se infligia. Cerrando cuidadosamente a porta, Norina voltou à cozinha em pezinhos de lã, a fim de aprontar o almoço. Verónica queria falar-lhe alto, mas ela impôs-lhe silêncio com um aceno discreto.
Às duas menos um quarto, como a festejeira ainda continuasse enfiada na cama, decidiram ir bater-lhe as palmas atrás da porta. A sibarita, acalorada, e esfregando os olhos sonolentos, mastigou em seco, espreguiçou-se lentamente e, abrindo penosamente as pálpebras, desviou as retinas da claridade, tapando os bocejos com um punho.
Sentindo-a acordada, elas sorriram-se e cochicharam:
— Marta!... Marta!...
— Que horas são, Norina? - perguntou a preguiçosa.
— D duas da tarde, sua dorminhoca! — gozou Norina, dissimulando o riso súbito.
— O quê?! Não me digas, mulher! — bradou Marta envergonhada, abotoando a combinação para esconder os seios e puxando o lençol para tapar as coxas.
— A festa foi bonita? - indagou a pequenita, fixando a desguedelhada.
— Ah, foi muito linda, Verónica!
— E o vestido da noiva? Era chique? — interferiu a patroa curiosa.
— Quem me dera levar um assim, Norina!
— Levar? Não me digas que arranjaste lá um...
— Nunca se sabe.
— Porquê? Na boda, algum te piscou o olho?
— O olho, Norina?! Os olhos, a língua, os lábios...
— Mau-mau Maria, que estou sem Marta!
— Eh, Norina, agora também não penses que vim de lá prenha!
— Deus me livre de tal juízo! Eh, com coisas sérias não se brinca, Marta!
— Eu sei, Norina, eu sei que tu não és maliciosa - disse ela corada.
— Ah!... Ia perguntar-te se a Maria do Feliciano tinha muitos convidados, mas o melhor é arrumares-te e vires comer qualquer coisa — concluiu Norina sorridente.
A sesta daquele domingo foi passada em confidências ao soalheiro. À língua da Marta não escapou o mínimo pormenor do casamento, desde a chegada até à despedida do último casal. O cortejo, a cerimónia na igreja e a boda, tudo relatou em detalhe, mas o que lhe demorou mais a confidenciar foi, naturalmente, a luta que teve que travar consigo mesma para resistir às sediciosas propostas do cavaleiro que o destino lhe reservara.
Apenas soltou o nome do Raimundo Faia, Norina mudou de cor, mas logo se recompôs e apressou a dizer que, com ele, iria certamente conhecer meio mundo; que viveria num palácio como o de Mateus e, como dizia amiúde, poderia vestir-se e pintar as unhas como uma madame da alta, porque, segundo se contava, dinheiro era o que o não faltava ao vizinho.
Perturbada e atraiçoada pelos sentimentos, Marta comoveu-se e não conseguiu dominar a emoção que ecoava pelo seu coração apaixonado. E uma lágrima saltou-lhe timidamente das órbitas, resvalando-lhe sinuosa pelo rosto apimentado. Adivinhando aquela luta interior, Norina repetiu-lhe que ninguém poderia indicar-lhe as veredas da fé, da verdade e da felicidade, porque essas conquistas pressupõem uma diligência individual e permanente, mas a rapariga, algo confusa e aérea, não entendeu muito bem onde a patroa queria chegar. Porém, de uma coisa Marta ficou avisada: enquanto o Arménio estivesse fora, ela poderia namorar com o Faia, mas bem longe daqueles muros. Estranho, pensou a moça!...


Nos últimos quinze dias de Agosto, os namorados não se largaram mais. Raimundo perseguia-a por todo o lado, tal escravo da dulcineia ou predador implacável à espreita da relaxação da sua vítima para lhe dar o golpe fatal. A moça, que pela primeira vez em 23 anos, acreditava no amor puro e sincero de um homem maduro, ia no jogo do conquistador, procurando corresponder, até onde o temor a Deus deixava, aos galanteios do pretendente. E aos primeiros encontros angustiantes, sucederam-se outros mais langorosos que punham em doce pranto a fertilidade feminina. No povo, as casamenteiras afiançavam que Marta havia mordido o anzol do fanfarrão e que o enlace matrimonial se faria no Natal, para que o senhor abade não tivesse que crucificar no púlpito mais uma desavergonhada.
O senhor João e a dona Soledade, apesar do desgosto que tais calúnias lhes causavam, esses, sabiam muito bem que a filha não era rapariga de se enredar na lengalenga do passador, por mais apaixonada que estivesse, e saberia muito bem puxar-lhe o cabresto.
O namoro da Marta transtornou a vida à Norina que, para evitar falatórios, lhe proibira encontros com o Faia dentro das suas terras. Conselhos também não lhe deu, não fosse aquele diabo em figura de gente levar a mal e pedir-lhe explicações, ou travar-se de razões com o Arménio, o figurão que lhe roubara a sobrinha do tio Rodrigo, quando estavam para ir para a tropa.
Sempre que fitava a criada, Norina não conseguia afugentar da cabeça as cenas traumatizantes que a memória lhe vomitava desvairadamente. Ai há quanto tempo que essas imagens a perseguiam! E como doíam! Oh, seria que Deus a obrigaria a suportar tal pesadelo, ou penitência, nem sabia, até ao fim dos seus dias?

Cada vez mais apaixonado, Raimundo foi adiando o regresso a Macôn, para poder gozar os arraiais das romarias da região com a namorada. Marta, mimalhada com o riquíssimo anel que o namorado lhe oferecera orgulhosamente diante dos pais, foi cedendo timidamente aos caprichos viris, provando que também o amava, mas recusando cautelosamente perder a melhor prova de amor que uma noiva poderá dar no dia do enlace matrimonial: a virgindade, para desgosto do pretensioso. E o tempo da paixão foi devorando penosamente os seus desejos sulfurosos.


continua em Capítulo V

LMP - Luxembourg 1984 - Lud MacMartinson