Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

domingo, 1 de junho de 2008

Caminhos de ilusão: Capítulo IV

CAPÍTULO IV



A noite de Consoada, a três, não tinha a mesma magia como quando a numerosa família se juntava à volta do fogaréu, porém o destino quisera assim e havia que aceitar a vontade de Deus. Enquanto comiam, Arménio recordou muitas das ceias de Natal, que passara com os pais, o Tó, o irmão mais novo, que um acidente de moto lhe matara aos vinte anos, e alguns tios e primos maternos que, entretanto, ridículas zangas de partilhas de água, haviam separado. Dos que estavam no Brasil, só restava a lembrança dos lamuriantes pedidos de perdão, a quem ficava, na hora do adeus à terra. Norina também evocou os velhos tempos das consoadas harmoniosas, em que as famílias, alternadamente, comiam, bebiam e brincavam até de madrugada. E quantas delas, nesses recuados anos, depois da farra, não se terminaram com a reza do terço?!
Depois, pouco a pouco, eles foram perdendo esse hábito sagrado e a família foi-se desunindo. Naquelas horas de paz, até os parentes do Brasil, que eles mal conheciam, tantos eram já os postais de boas-festas amontoados na gaveta das lembranças, vinham à baila, sendo recordados com empedernida saudade.
A imagem do tio Rodrigo, omnipresente em tudo o que diziam ou tocavam, foi quem mais os comoveu, cortando-lhes a vontade de saborear os fritos e anestesiando-lhes a alegria secular daquela noite impar. Como ficaram espantados com a memória da Verónica, que, insensível a tão dolorosa saudade, lhes devolveu fielmente os últimos dias do querido velhote! Até parecia que os gestos e as palavras do moribundo se tinham congelado de frio e dor nas mãos e nos lábios da mocinha e agora, aquecidas pelo calor da nostalgia, se reanimavam naturalmente. Depois de tanto remexido, o borralho da braseira esmoreceu e o frio entrou pela cozinha, cercando-os na mesa do escano, o móvel que, depois de alisado e encerado, Arménio poria ao lado dos potes de ferro, na vivenda da Timpeira.
Apoquentada pelo sono das onze e meia, Verónica despediu-se dos pais, beijando-os na cara e, pegando nas bonecas, refugiou-se no seu quarto. Largado num terno e comovido face a face, o casal sentiu a libido esmorecida magnetizar e encadear os seus olhares tímidos, colando-os num sentido transcendental abraço.
À meia-noite, arrumada a casa e apagadas as derradeiras brasas do borralho, os namoradinhos foram prolongar os carinhosos mimos entre os lençóis que uma botija de borracha, cheia de água a ferver, entretanto colocada no fundo da cama, lhes amenizara.


No dia de Natal, Arménio, a esposa e a filha assistiram à missa, saudando brevemente os amigos e conhecidos que ali encontraram. No fim do culto, a geada fria e um repentino vento arisco evitaram ao emigrante as demorados e curiosas questões sobre as terras de França, que os homens, ao soalheiro, se preparavam para lhe pôr.
Enquanto a mulher ficou a cozinhar umas batatas frescas para acompanhar com a raia e o polvo fritos da véspera, ele correu a saudar o Manuel Feliciano, o taberneiro. Aí soube que o Zé Calhordas, aliás Pinto, pedira namoro à Maria, que lho aceitara; que a Zélia, aproveitando a boleia da irmã, também se falava com o Chico Serra e que o Raimundo, depois de o pôr em Valdahom, voltara a Portugal para fazer mais três carradas de clandestinos e, dizia-se, iria construir uma vivenda para os lados de Mateus.
Entre uma jeropiga e um doce de baunilha, também teve conhecimento de uns casos de morte à facada na Balsa e da prisão de uns tipos metidos a políticos no Pinhão. É que, apesar do Marcelo Caetano, presidente do governo, parecer ser um homem porreiro, a Pide não se compadecia com ninguém. No ultramar, como diziam os últimos a chegar, começavam a ouvir-se vozes de discórdia e protesto contra a guerra e, no continente, o regime Salazarista ia mostrando sinais de fraqueza, para júbilo dos apoiantes do assassinado Humberto Delgado, o general sem medo, que tantos seguidores deixara em Vila Real e em Trás-os-Montes, a quando da sua candidatura à presidência da república, cuja popularidade crescente causara o pânico nos comandos da Pide, que o atraiu e matou cobardemente em Badajoz.
Ao almoço, quis contar à esposa as novidades que colhera na tasca do Feliciano, mas ela pediu-lhe para não perder tempo com coisas que não lhes diziam respeito. E, acatando a sugestão da esposa, comeram tranquilos, ao som das histórias de fadas que a Verónica se encarregou de lhes contar. E o Natal lá se passou na paz dos anjos.

Na manhã do dia 27 de Dezembro, segunda-feira, os Salas apresentaram-se no cartório do notário para a abertura do testamento do tio Rodrigo. A impaciência apoderou-se-lhes do corpo e, como era a primeira vez que iam encarar um homem da justiça, não conseguiram disfarçar o nervosismo, patenteado na voz trémula e nas mãos suadas de tanto as esfregar e nos rostos corados. Verónica, encapotada numa jaqueta que o pai lhe trouxera para o Natal, viajava por mundos afáveis, alheia àquele acanhamento paternal. Sentados num banco de madeira bem lustrada, eles iam segurando os deditos da filha irrequieta e esperando que o doutor viesse quebrar aquele silêncio absurdo, em que estavam mergulhados. Mal ouviram o rangido da fechadura, levantaram-se e, espevitados pelos passos ruidosos no chão encerado, suspenderam a respiração, mas logo foram libertos desse constrangimento por um sorriso apaziguador.
— Bom dia! Ora essa, façam o favor de se sentarem! — perguntou o amável notário.
— Bom dia, senhor doutor! — responderam eles, apertando a mão esguia que o calvo homem de leis lhes estendia.
— Então como passaram as festas de Natal?
— Não tivesse o nosso tio, que Deus tenha, falecido — disse Norina, benzendo-se entristecida - e tudo teria sido óptimo, senhor doutor.
— O senhor Arménio está em França, não está?
— Sim, senhor doutor, desde Setembro.
— Lá vive-se muito melhor aqui, não vive?
— Nem se compara, senhor doutor!
— Ainda bem, senhor Arménio, ainda bem! — exclamou o notário, abrindo um envelope lacrado com um estilete pontiagudo.
E um silêncio asfixiante apoderou-se-lhes da garganta, suspendo-lhes a respiração por segundos. Rompendo o absurdo, o notário estendeu a folha dobrada na sua secretária e, ajustando bem os óculos, leu solenemente:
" Eu, abaixo-assinado, Rodrigo Valadares, nascido a 16 de Junho de 1894, na aldeia e freguesia de Almodena, do concelho e distrito de Vila Real, no pleno exercício de todas as faculdades mentais, declaro que é da minha própria e livre vontade que lego... " Os senhores estão a compreender? — interrompeu o executante, retendo-lhes o olhar comovido.
— Sim, senhor doutor! — assegurou a sobrinha do testador, segurando a mão da filha.
— Então, como não há dúvidas, — esclareceu o testamenteiro, confirmando o assentimento dos seus interlocutores — continuemos — e prosseguiu pausadamente. — lego, portanto: Primeiro, todas as minhas propriedades rústicas aos meus saudosos e queridos sobrinhos, Norina dos Anjos Valadares Sala e Arménio Sala, que sempre me estimaram, honraram e socorreram com carinho. Segundo, é meu desejo assegurar a educação da enfermeirinha e confidente dos meus últimos dias, a minha caridosa e meiguinha Verónica Valadares Sala, para que se forem esses os desígnios do nosso Salvador, possa realizar a sua vocação, servindo a Santa Madre Igreja, legando-lhe todas economias que poupei durante a vida e que estão depositadas na Caixa Geral de Depósitos de Vila Real e cujas promissórias totalizam quinhentos e dez mil escudos. Terceiro, é minha vontade doar à Santa Casa da Misericórdia de Portugal os dinheiros que trago emprestados e cujas letras somam noventa e nove mil escudos, para que essa instituição de caridade possa continuar a sua missão ao serviço dos mais necessitados. Quarto e último, lego a casa onde sempre vivi e todos os meus quinteiros aos meus supra-citadados sobrinhos, Norina dos Anjos Valadares Sala e Arménio Sala, para que a família tenha, em caso de fatalidade, um refúgio, e mais lhes peço que nunca desprezem nenhum mendigo que lhes bata à porta, como sempre o fiz, e lhe dêem uma sopa para matar a fome e guarida num dos quinteiros das traseiras ou da laje da eira. Por ser verdade e de minha livre vontade e no gozo de todas as faculdades mentais, ditei e assinei este meu testamento em Almodena, aos quinze de Outubro de 1971." Assinado — referiu o notário, dobrando a folha azul de papel selado - Rodrigo Valadares. Como estão a ver, — prosseguiu respeitoso — o vosso tio, que tive a honra de conhecer na sua agonia, manteve-se digno e fiel aos seus princípios até ao fim, não esquecendo a família com quem viveu, nem esta linda menina — disse o testamenteiro, sorrindo à Verónica.
— O tio Rodrigo, que Deus tem, foi sempre muito generoso para com toda a gente, senhor doutor — referiu Norina emocionada, retendo as lágrimas com o lenço.
— Olhe, minha senhora, eu nunca me lembro de ter escrito o nome do seu tio em nenhum livro, mas conhecia-o de vista e, a ver pelos elogios que lhe fazem aqui nesta bonita cidade de Vila Real, vejo que era um homem de bem e de coração nobre.
— Se não é falta de respeito ou atrevimento da minha parte, qual é a terra de Vossa Excelência, senhor doutor? — perguntou Arménio envergonhado, acariciando a mão húmida e trémula que a esposa lhe pousara no joelho.
— Eu nasci numa aldeia do concelho de Valpaços, mas fiz os meus estudos em Coimbra, senhor Arménio — respondeu prontamente o homem de leis.
E a conversa prolongou-se por mais de meia hora.
Ali, o emigrante e a esposa confessaram ao notário as suas vidas, sempre incomodados pelos trejeitos irrequietos da filha, a quem o notário, entretanto, dera um rebuçado de chupar. Quando abandonaram o gabinete, já estava na hora de meterem as panelas ao lume para o almoço.
Ainda tonta e absorvida pelos tachos, Norina não arranjara tempo para sonhar com a herança que o tio lhe deixara. Mais pragmático, Arménio, esse, começou logo a delinear novos projectos para a sua vida. Agora, que passava a dispor de todos os bens do tio Rodrigo, apesar de não poder mexer no dinheiro destinado, exclusivamente, à educação da Verónica, talvez tivesse que repensar um pouco melhor o futuro.
Pela tardinha, depois do cochilo da sesta, livres das traquinices da filha, que dormia como uma pedra, eles assentaram-se à volta da lareira e, mastigando umas castanhas assadas, que o lume ia aquecendo no aro do trasfogueiro, confessaram-se mutuamente os sonhos que o testamento lhes suscitava.
Norina, invocando que passaram a ter uma casa de perpianho, muito espaçosa e cómoda, tentava convencer o marido a não a voltar para o estrangeiro ou a antecipar o retorno definitivo, aconselhando-o a abandonar Valdahom e a vir ocupar-se da lavoura. Arménio, até concordou em voltar mais depressa, todavia, a tentação do dinheiro que podia contar ao fim da semana, ofuscou-lhe a razão e obrigou-o a contrariar os argumentos da esposa.
As lidas do campo, naqueles anos, eram o único sustento das gentes da aldeia, mas, desde que Marcelo Caetano facilitara a emigração, todo o mundo sonhava com o eldorado europeu, uma vez que o Brasil, anterior destino dos nossos corajosos emigrantes, já não dava como antes, enquanto que as províncias ultramarinas, antigo sonho imperialista, viviam horas aflitivas e ameaçavam cair nas mãos dos turras. Além disso, o vila-realense há muito que não segurava a rabeca do arado; que não atava as correias nas molhelhas dos bois; que não escavava, tesourava ou podava as cepas de morangueiro; que não semeava ou ceifava e, sobretudo, não estava habituado a esperar um ano inteiro para ver a cor do dinheiro dos pobres lavadores, quando as moléstias não os punham a pedir e os tornavam mais desgraçados e endividados. Não, a terra, mãe da felicidade, ia perdendo aquele arreigado encanto que fazia palpitar e tanto enfeitiçava os corações das gentes simples e rudes das nossas briosas aldeias.

No dia 31 de Dezembro de 1971, sexta-feira, saíram cedinho do Calvário para a Almodena, a fim de aí passarem as últimas horas do ano e, inebriados pela nostalgia do saudoso tio Rodrigo, tentarem conciliar os seus pontos de vista e darem outro rumo às suas vidas. A não convencer o marido a ficar, um dilema dilacerava o coração da Norina: continuar no Calvário, ou retornar às suas origens, instalando-se no enorme solar de perpianho que, sem as crias que aqueciam aqueles muros graníticos e quebravam a solidão daquele retiro, tantos medos lhe inspiravam. Ali, ela poderia contar com a solidariedade dos vizinhos, mas, mesmo assim, os mendigos, sobretudo os homens mais viris, que o tio Rodrigo habituara a procurar uma malga de sopa, metiam-lhe medo. Decidido a ir mais alguns meses para França, Arménio compreendeu o receio da mulher e, pensando bem, sugeriu-lhe que pedisse à Marta, a amiga de infância, para vir dormir com ela todas as noites e ajudar a cultivar as terras, pelo menos enquanto ele não voltasse.
Aproveitando a sugestão do marido, Norina não perdeu tempo e, à tardinha, decidiu ir falar com os pais da confidente dos tempos de namorico, de quem se desligara um pouco, depois do casamento. Embrulhando umas peças de fumeiro e uma garrafinha de jeropiga para os pais da moça, lá se foi reavivar uma amizade antiga.
Inevitavelmente, e porque Marta, a principal interessada, não estava, a conversa recaiu, inevitavelmente, sobre evocação da memória do saudoso tio Rodrigo, que Deus tinha, antes de passar para a badalada França, a terra das patacas que a todos fascinava. Também recordaram os bons velhos tempos de solidariedade nas das desfolhadas enluaradas, das malhadas infernais e das lagaradas divertidas, em que os moços, atiçados pelas coxas das raparigas, se precipitavam sobre as uvas, curando pequenas mazelas da epiderme com o melaço, enquanto jogavam à cabra-cega, cantarolando à volta da tarraxa do lagar, apinhado de moças solteiras.
A noite surpreendera a evocação das reminiscências e Almodena ficara envolta no breu; a aragem fria resfriara-lhes as pernas e as costas, apesar dos cavacos de carvalho, que o senhor João, pai da Marta, ia tirando do escano e metendo no lume, enquanto a senhora Soledade, a mulher , regressando aos tempos da sua meninice, evocava factos remotos, de que a Norina mal ouvira falar, esperando que a filha chegasse entretanto. Porém, como a Marta não desse sinais de vida e se fizesse tarde, Norina deu as boas-noites aos velhotes e, desejando-lhes um bom Ano Novo, pôs a caminho do solar. Empunhando um facho de palha, ela ouvia o alarido da mocidade festejeira e recordava nostalgicamente a sua, que não tivera. O clarão da labareda esbarrava nas lajes da calçada e infiltrava-se por debaixo das frinchas das portas, alertando os ruminantes das lojas e as gentes que tencionavam celebrar o nascimento de 1972.
No largo da aldeia, os moços amontoavam troncos de árvores e tudo o que pudesse arder, preparando a fogueira que, segundo a tradição, deveria durar até ser dia. Foi no meio da algazarra que Norina surpreendeu a amiga Marta a falar com um magricelas, porém fez que não a viu, continuando o caminho, atemorizada pela balbúrdia.
Postado na varanda, de pé e de candeia na mão esquerda, o marido já há muito que lhe acenava, mas ela, roçando as socas nas lajes românicas, pensava apenas em livrar-se das poças de lama e em chegar a casa com os pés enxutos. Matutando na vida, Norina só se apercebeu de que estava em casa, quando o Arménio fez ranger a porta de ferro forjado e lhe segurou o resto do facho de palha que se consumia lentamente.
Um sorriso envergonhado saltou-lhe dos lábios frios e foi-se colar na barba áspera do guardião na forma de um beijo demorado e doce, que o vento arisco e a febre do desejo convidavam a prolongar nas esteiras do escano.
E, enquanto o ano-velho dava o último brado, Arménio e Norina abafavam os suspiros langorosos da demencial febre de amor debaixo das mantas. No largo da aldeia, a mocidade, essa, pulava e soltava gritos animais para saudar a ano-novo como mandava a tradição, fumando mata-ratos, alcunha do kentuck, o minúsculo cigarro dos pobres, que a juventude tanto apreciava, e bebendo uns copitos de aguardente para empurrar os figos e as amêndoas que uns e outros se ofereciam.

1972 nasceu com muita fé. Pelas onze horas da manhã, a Verónica, farta de brincar e monólogo de surdos coma a boneca, encheu-se de coragem e foi bater à porta do quarto dos pais a reclamar a malga da sopa de farinha com açúcar escuro, mas não ouviu tui nem mui. Com a barriga em jejum, a pequenita lembrou-se então de bater os tachos e as panelas para os acordar. Assarapantada com o impacto estridente de uma panela de alumínio contra o trasfogueiro, a mãe saltou da cama em combinação e, alarmada com a hora tardia, apressou-se a matar-lhe a fome.
Nesse dia de Ano Novo, sábado, eles tencionavam voltar ao Calvário, logo depois do almoço, se Marta aceitasse a proposta. Caso contrário, Norina deveria desencantar outra companheira que a ajudasse a vencer o medo e a solidão das longas e friorentas noites de invernia. Sozinha no casarão é que ela não ficaria. Ainda arrumava o louceiro, quando ouviu a voz apaziguante da filha do senhor João e da senhora Soledade:
— Norina! - gritou a moça, tilintando a maçaneta do portão de ferro.
— Entra, Marta, entra! — gritou-lhe ela sorridente, acenando por detrás das cortinas.
Enquanto a amiga subia as escadas graníticas, limpou apressadamente as mãos, ajustou o avental e abriu a porta, beijando-lhe o rosto frio.
— Eu acho que te vi ontem à noite, perto da fogueira, com um rapaz. Era o teu namorado, Marta?
— Aquele pingareu, Norina?! Tu já viste que se eu lhe caísse em cima...
— Porquê? Ele não era assim tão pequeno!
— Pequeno?! Raquítico, mulher! Aquilo mais parecia meu filho... Enfim, já que esperei estes anos todos, agora só vou aceitar namoro a um que me encha bem as medidas, como dizia a outra! — exclamou Marta, balançando maliciosamente o busto.
— Também acho — aprovou a Norina, de riso no canto do olho.
— A minha mãe falou-me que o Arménio voltava para França e que tu querias mudar-te para aqui. É verdade?
— Sim, é verdade, Marta. O tio Rodrigo pediu-nos que não deixássemos cair estes muros e...
— Ah, seria uma pena, se este rico perpianho ficasse aqui para os ratos!
— O Arménio anda tão iludido com a França que ninguém o convence a vir de vez. Até parece que é o demónio que o está a tentar, rapariga!
— Iludido?! Como assim, Norina?
— Oh! Vê lá que passa os dias a desenhar e a matutar com a vivenda que há-de construir no nosso prédio da Timpeira. Bom, antes do tio morrer, até se aceitava, mas agora, que herdamos isto tudo, precisaria ele de voltar para França? Diz, precisava?
— Qual? Naquele, perto do circuito, onde até os pneus chiam nos dias das corridas?
— Sim, nesse todo.
— Ah, o Arménio tem razão! Uma vivenda ali devia ser um espectáculo! Quem me dera casar com um homem que pensasse assim, Norina!
— O meu é realmente muito bom, não posso dizer o contrário, porém esta caturrice assusta-me. Tenho a impressão que pensa mais na casa do que em mim.
— Credo, não digas isso! O teu Arménio não vê outra mulher!
— Talvez, mas se soubesses as arrelias que aquela cisma já nos trouxe!...
— Arrelias? Homem sem génio não é homem! Vá, não sejas assim tão exigente que o Arménio sempre foi bom rapaz, Norina. Até parece que ainda vos estou a ver namorar na esquina do adro. Ele vinha para aqui de bicicleta. Eu era uma catraia, mas...
— Catraia?! Tu eras tão alta e mais forte como eu! Diz, tu és mais nova que eu dois anos, não é, Marta?
— Sim, dois anos e dois meses. Quando entrei para a escola, tu andavas na 4ª.
— Mas isso foi porque eu avancei um ano — esclareceu Norina, franzindo a testa.
— O Arménio era muito prosa, não era?
— Bastante...
— Eu vi logo que tu eras maluquinha por ele, apesar do Raimundo se gabar...
— Oh, era o destino, Marta! Sabes, a mulher que sentir o apelo da maternidade deverá reconhecer instintivamente o marido, com quem se casará. O homem da nossa vida, aquele que nos levará ao altar e a quem entregaremos a nossa virgindade e com quem seremos verdadeiramente felizes até ao dia do Juízo, será o que não fará, porventura, nada, por vergonha ou medo de nos perder, mas cujo olhar nos dirá tudo. Há olhares, Marta, que são um livro aberto...
— Não me digas?!
— É verdade! Por isso pouco adianta andares aflita com os rapazes, porque o que tiver que ser eternamente teu, não será feliz com mais ninguém. O coração do puro amor — prosseguiu filosofal - é uma casa sem portas, nem janelas e, por isso, não precisa de passar a vida à procura de uma chave para a fechadura que não existe.
— Mas, se é assim, porque será que tantos casais até se dão bem e acabam por se divorciar ao fim de meia dúzia de anos, quando não é de meses? — arguiu a mocetona.
— É porque eles forçaram o destino, se casaram por conveniência, não escutaram a voz da consciência, ou ajuntaram os trapos para agradar a outros, quando não o fizeram para esconder a mancha do pecado.
— É, terás razão... — admitiu a rapariga convencida, cismando nas palavras da Norina.
E aqueles dois dedos de conversa bastaram para afinar as suas retinas cristalinas e ressuscitar a ingénua cumplicidade dos bancos da escola, quando se diziam tudo no recreio da escola, ou enquanto aguardavam a vez de encherem o cântaro na fonte. Não, apesar de casada, a sobrinha do ti Rodrigo não mudara nada.
Com quase vinte e três anos, Marta era uma rapariga habituada às rudes fainas do campo. Tão boa de braços como de dentes, também servia de pagode e chacota para os rapazes que teimavam em medir forças com ela. Outros, os pingareus, para se esquivarem aos desafios ou justificaram a derrota da virilidade, até diziam que ela devia ser filha da padeira de Aljubarrota ou prima da Maria da Fonte, lendárias e heróicas mulheres da História Portuguesa, a quem os manuais escolares atribuíam força hercúlea. Quem a visse, assim tão loira, pensaria que ela deveria ser a filha de alguma divindade viking, cujo drakkar tivesse encalhado na Póvoa de Varzim, não fossem os seus genitores transmontanos de gema, cujo mundo acabava na serra do Marão. Mais, a filha da Soledade possuía no rosto fino o espelho mágico que lhe subtraia os supérfluos tecidos adiposos do tronco e dos membros. No Verão, os cabelos compridos, ricocheteando nas searas de centeio, reflectiam o ouro do Sol e o seu sorriso subtil subjugava o sibilino sussurro do moço que nela encontrasse a sensual e fantasmagórica personificação do desejos. A austeridade paternal, a língua afiada da coscuvilhice das casamenteiras da aldeia e a sua irreverente franqueza, porém, desanimavam os rapazes que nela viam a mãe de uns filhotes de pêlo russo e de olhos azuis e nela iam beber aquele desejo ardente que tudo consumiam sem deixar rasto: o cansaço da faina do campo e a insónia das noites enluaradas. Ai Marta, Marta!...
Como o marido e a filha se atardassem na casa do antigo moço do tio Rodrigo, Norina, a quem as chalaças irreverentes da Marta haviam tirado da cabeça as cismas malfadadas, decidiu cortar umas cascas de feijão seco para cozer com chouriços. As seis da noite bateram imponentes no pêndulo do salão, mas ela, tão ocupada que estava, nem se voltou para ver as horas, como era seu hábito, pois considerava o relógio de pulso, tal como o de bolso com as correntes de ouro, com que os mais abastados se pavoneavam nos dias de feira ou nas ocasiões festivas, um enfeite desnecessário, para quem fazia do toque das Trindades o momento mais aprazível do dia e sem quem a noite não encontra a paz.
No campo, depois do sol, era o sino quem ditava as horas e o temor a Deus.
A bajulice hipnótica da tão fugaz, mas oh quão intensa!, quinzena natalícia desarmou Norina que, na madrugada do dia 7 de Janeiro, sexta-feira, se despediu do marido com um lacrimoso sorriso de esperança, enquanto Verónica enchia o pai de beijos.
A vida, agora que cuidava de uns bezerros e de uns leitões, a meias com Marta, era bem mais suportável, apesar do trabalho que as crias lhes davam. A sua readaptação à vida de Almodena fez-se tão rapidamente que as amizades ressurgiram naturalmente. Ela, que na cidade comprava quase tudo, readquiriu os hábitos da aldeia, imitando as pessoas que sempre se haviam remediado com a agricultura de sobrevivência. Era até com um certo orgulho e prazer que ela voltava ao forno do povo para cozer a farinha que trocava com o moleiro; que estrumava os quinteiros e os currais; que levava, quando lhe calhava, os bezerros a pastar e regava os quinchosos.
Cumprindo o testamento do tio, Norina também ia socorrendo os pobres que lhe batiam à porta e encaixando as letras destinadas à Santa Casa da Misericórdia. Todavia, a tarefa que mais lhe alegrava a alma era, sem dúvida, o arranjo do altar-mor da igreja, onde passava as tardes de sábado a varrer, a limpar o pó, a ajeitar os vasos e, num monólogo com Deus, se desculpava pelos maus pensamentos e iras da semana.
Marta, desejando talvez imitar e a enciumar a patroa, começara a ser mais regrada na língua e, sobretudo, nos dentes. É que, dizia, larpava demais e, a comer assim, ficaria pior do que uma lontra, mas, no íntimo, o que ela queria era ser tão fina como a Norina, para que os rapazes a vissem com outros olhos e a imaginassem mais meiga, mais doce e, sobretudo, mais sensual.

Na carta da Páscoa, além do trabalho e dos contos que deveriam chegar brevemente pelo vale dos correios, Arménio falava-lhe da visita inesperada do Faia a Valdahom, assim como do casamento, provavelmente no dia 15 de Agosto, do Zé Pinto, o Calhordas, com a Maria do Feliciano. Quanto a ele, segredava à esposa, tudo lhe corria às mil maravilhas e, possivelmente, só aguentaria mais um ano longe dela, pois as saudades eram mais que muitas. Além disso, também lhe pedia que fosse, com os desenhos e as medidas que lhe enviava, consultar um empreiteiro para saber por quanto lhe ficaria a vivenda e, se ele estivesse de acordo, quando é que lha poderia começar. O emigrante rogava ainda à mulher que visse a possibilidade de pagar uma parte da obra um ano depois de receber as chaves e lhe mandasse um duplicado com os orçamentos dos empreiteiros que contactasse. Abismada com aquele repertório e temendo não dar conta dos recados, Norina leu e releu várias vezes a carta mais comprida que ela recebera de alguém, dizendo-se que aquilo mais parecia um testamento que uma carta normal, mas também não seria para menos, a ver pela pressa que o emigrante tinha em realizar o seu sonho.
Ao Serão, conversando à volta da fogueira, revelou inadvertidamente à Marta alguns dos segredos que o marido lhe pedira para guardar e ainda o sono não lhe tinha acossada as retinas e já o arrependimento lhe batia à porta da consciência. Incomoda, pediu então à confidente que tivesse cuidado e, por amor de Deus, não contasse nada a ninguém. E a moça, sorrindo-lhe meiga, deu-lhe de olhos, tranquilizando-lhe os sonhos daquela abençoada noite.

Nos dias que se seguiram, as suas diligências pelos melhores empreiteiros das redondezas deram-lhe a saber que o sonho do Arménio lhe custaria, pelo menos, e se não demorasse muito tempo a decidir-se, trezentos e cinquenta mil escudos: uma fortuna! Sem perder tempo e seguindo à letra as recomendações do marido, registou a carta nos correios e voltou a Almodena pelos atalhos. Ao entrar em casa, apercebeu-se que estavam em vésperas de 13 de Maio, dia da peregrinação à Nossa Senhora de Fátima, que nesse ano deveria encher a praça da basílica por calhar ao sábado. Correu à igreja a acender uma vela à Virgem Mãe, permanecendo ajoelhada diante da estátua por mais de vinte minutos a rezar pelo marido.

Entretanto, a Primavera instalara-se discretamente nos campos. Atarefada com a azáfama das sementeiras, as regas e o sustento dos animais, Norina não tinha tempo para ouvir o canto alegre dos passarinhos, a chilrear pelos campos, nem saborear o ar puro que agora respirava; os dias cresciam a olhos vistos, mas ela tinha cada vez menos tempo para cismar com a lengalenga das cigana, que tanto a chateavam para que lhe deixasse ler novamente a sina, argumentando que, se tivesse fé, poderia mudar o rumo do destino.

No mês de Julho, lá justou a vivenda na Timpeira por trezentos contos, aproveitando a oferta de um construtor da cidade que, terminado o casarão de um emigrante de Lamas de Olo, não sabia como entreter os empregados. O contrato, feito em papel selado, foi enviado em duplicado ao Arménio que o assinou e o devolveu à esposa com a recomendação de o ir reconhecer ao senhor doutor Silveira, o notário, a quem o tio Rodrigo confiara o seu testamento.
Atarefada, Norina nem havia calculado as mesadas que o marido teria que mandar para pagar ao empreiteiro, mas, logo na primeira carta, em que o informou do início das escavações, lá no sítio onde ele havia espetado as estacas, não se esqueceu de lhe pedir explicações. É que, pelas suas contas, mesmo que o dinheiro da França ficasse todo de lado e, se Deus quisesse, havia de ficar, eles teriam na mão as chaves da vivenda, quando muito, no fim de Julho de 1973 e a última prestação teria que ser paga até 31 de Dezembro de 1975, quando ele, se não lhe aumentasse às mesadas, precisaria de andar pelo estrangeiro mais quatro anos. Não, ou o seu raciocínio não estava certo, ou o marido a enganava. Afinal, quantos anos é que ele queria ficar verdadeiramente lá por fora e trazê-la iludida? Quanto é que ele ganharia mesmo por mês? Como é que ele viveria? O que é que ele faria para se afoitar assim tanto com a vivenda? Estaria ele a cometer algum pecado, ou a desviar-se dos caminhos de Deus? E o rol das questões nunca mais acabava. Agarradas às dúvidas vieram as suposições e com elas a desconfiança e os maus presságios, mas, desta vez, preferiu guardá-los a sete chaves no seu coração, não fossem os muros ter ouvidos, ou tudo aquilo não passar de cismas malucas, como o Arménio costumava dizer.
À medida que o esqueleto da obra ganhava forma, o seu espirito perturbava-se e entrava em pânico, só de contar os dias que faltavam para pagar ao empreiteiro e o vale do correio sem chegar. Lendo-lhe as preocupações na testa, o pacato senhor Jaime, o construtor, punha-a à vontade quanto a um eventual atraso, mas Norina só sossegava realmente quando o carteiro lhe mandava assinar o postal cor-de-rosa e o montante ultrapassava as suas expectativas, o que acontecia frequentemente, sobretudo nos meses de Verão, com os dias muito mais longos.

No mês de Agosto, foi com emoção que viu chegar os emigrantes. Sempre que lhe perguntavam pelo marido, os seus olhos não resistiam e cobriam-se de lágrimas. Arménio não viria porque o Fortunato Galela lhe arranjara uns biscatos que iriam dar um jeito às finanças, graças à mansão de férias de um inspector das finanças, amigo da Martine, que eles e mais dois transmontanos lhe construíam para os lados do Jura, nos Alpes, perto da Suíça.
No sábado, 12 de Agosto, a taverna do Feliciano foi invadida por dezenas de alcoólicos: o patrão, para festejar o casamento da Maria com o senhor José Pinto, servia grátis para toda a gente.
Apesar de convidada, Norina aceitou o convite, mas à última hora, porque o marido não estava, preferiu enviar a Marta no seu lugar, com um lindo jogo de cama bordado na ilha da Madeira. Como ao casório não faltariam os colegas do noivo, obviamente o passador também estaria lá e, esse, por nada, mas nada deste mundo o queria olhar, de soslaio que fosse, para não ter passar mais noites de insónias e reviver más recordações.
No casamento do Zé, fascinado pelas curvas sensuais da conterrânea, que deambulava perdida por entre os convivas, Raimundo, para quem nenhuma das moças solteiras do rol servira, perguntou-lhe se o aceitava como par. Surpreendida, mas honrada pelo pedido de tão falado cavalheiro, a donzela não teve a coragem de recusar e lá deu o braço ao passador, seguindo as pegadas da Zélia que ia amarradinha ao Chico Serra. E uma multidão de curiosos, ladeando as bermas da faixa direita da avenida Carvalho Araújo, aplaudia entusiasticamente os casais que acompanhavam os noivos à Sé, onde os esperava D. António Helder Casaleiro, bispo de Vila Real.

No domingo, depois de cumprir o dever cristão, Norina largou a filha na varanda e, ouvindo ressonar ruidosamente, espreitou para o quarto da empregada. Acalorada, Marta dormia desacautelada sobre os lençóis. A combinação florida, iluminada pelo sol do meio-dia, mal lhe cobria as nádegas, revelando àquele olhar intruso todos os benefícios da dieta que a dorminhoca se infligia. Cerrando cuidadosamente a porta, Norina voltou à cozinha em pezinhos de lã, a fim de aprontar o almoço. Verónica queria falar-lhe alto, mas ela impôs-lhe silêncio com um aceno discreto.
Às duas menos um quarto, como a festejeira ainda continuasse enfiada na cama, decidiram ir bater-lhe as palmas atrás da porta. A sibarita, acalorada, e esfregando os olhos sonolentos, mastigou em seco, espreguiçou-se lentamente e, abrindo penosamente as pálpebras, desviou as retinas da claridade, tapando os bocejos com um punho.
Sentindo-a acordada, elas sorriram-se e cochicharam:
— Marta!... Marta!...
— Que horas são, Norina? - perguntou a preguiçosa.
— D duas da tarde, sua dorminhoca! — gozou Norina, dissimulando o riso súbito.
— O quê?! Não me digas, mulher! — bradou Marta envergonhada, abotoando a combinação para esconder os seios e puxando o lençol para tapar as coxas.
— A festa foi bonita? - indagou a pequenita, fixando a desguedelhada.
— Ah, foi muito linda, Verónica!
— E o vestido da noiva? Era chique? — interferiu a patroa curiosa.
— Quem me dera levar um assim, Norina!
— Levar? Não me digas que arranjaste lá um...
— Nunca se sabe.
— Porquê? Na boda, algum te piscou o olho?
— O olho, Norina?! Os olhos, a língua, os lábios...
— Mau-mau Maria, que estou sem Marta!
— Eh, Norina, agora também não penses que vim de lá prenha!
— Deus me livre de tal juízo! Eh, com coisas sérias não se brinca, Marta!
— Eu sei, Norina, eu sei que tu não és maliciosa - disse ela corada.
— Ah!... Ia perguntar-te se a Maria do Feliciano tinha muitos convidados, mas o melhor é arrumares-te e vires comer qualquer coisa — concluiu Norina sorridente.
A sesta daquele domingo foi passada em confidências ao soalheiro. À língua da Marta não escapou o mínimo pormenor do casamento, desde a chegada até à despedida do último casal. O cortejo, a cerimónia na igreja e a boda, tudo relatou em detalhe, mas o que lhe demorou mais a confidenciar foi, naturalmente, a luta que teve que travar consigo mesma para resistir às sediciosas propostas do cavaleiro que o destino lhe reservara.
Apenas soltou o nome do Raimundo Faia, Norina mudou de cor, mas logo se recompôs e apressou a dizer que, com ele, iria certamente conhecer meio mundo; que viveria num palácio como o de Mateus e, como dizia amiúde, poderia vestir-se e pintar as unhas como uma madame da alta, porque, segundo se contava, dinheiro era o que o não faltava ao vizinho.
Perturbada e atraiçoada pelos sentimentos, Marta comoveu-se e não conseguiu dominar a emoção que ecoava pelo seu coração apaixonado. E uma lágrima saltou-lhe timidamente das órbitas, resvalando-lhe sinuosa pelo rosto apimentado. Adivinhando aquela luta interior, Norina repetiu-lhe que ninguém poderia indicar-lhe as veredas da fé, da verdade e da felicidade, porque essas conquistas pressupõem uma diligência individual e permanente, mas a rapariga, algo confusa e aérea, não entendeu muito bem onde a patroa queria chegar. Porém, de uma coisa Marta ficou avisada: enquanto o Arménio estivesse fora, ela poderia namorar com o Faia, mas bem longe daqueles muros. Estranho, pensou a moça!...


Nos últimos quinze dias de Agosto, os namorados não se largaram mais. Raimundo perseguia-a por todo o lado, tal escravo da dulcineia ou predador implacável à espreita da relaxação da sua vítima para lhe dar o golpe fatal. A moça, que pela primeira vez em 23 anos, acreditava no amor puro e sincero de um homem maduro, ia no jogo do conquistador, procurando corresponder, até onde o temor a Deus deixava, aos galanteios do pretendente. E aos primeiros encontros angustiantes, sucederam-se outros mais langorosos que punham em doce pranto a fertilidade feminina. No povo, as casamenteiras afiançavam que Marta havia mordido o anzol do fanfarrão e que o enlace matrimonial se faria no Natal, para que o senhor abade não tivesse que crucificar no púlpito mais uma desavergonhada.
O senhor João e a dona Soledade, apesar do desgosto que tais calúnias lhes causavam, esses, sabiam muito bem que a filha não era rapariga de se enredar na lengalenga do passador, por mais apaixonada que estivesse, e saberia muito bem puxar-lhe o cabresto.
O namoro da Marta transtornou a vida à Norina que, para evitar falatórios, lhe proibira encontros com o Faia dentro das suas terras. Conselhos também não lhe deu, não fosse aquele diabo em figura de gente levar a mal e pedir-lhe explicações, ou travar-se de razões com o Arménio, o figurão que lhe roubara a sobrinha do tio Rodrigo, quando estavam para ir para a tropa.
Sempre que fitava a criada, Norina não conseguia afugentar da cabeça as cenas traumatizantes que a memória lhe vomitava desvairadamente. Ai há quanto tempo que essas imagens a perseguiam! E como doíam! Oh, seria que Deus a obrigaria a suportar tal pesadelo, ou penitência, nem sabia, até ao fim dos seus dias?

Cada vez mais apaixonado, Raimundo foi adiando o regresso a Macôn, para poder gozar os arraiais das romarias da região com a namorada. Marta, mimalhada com o riquíssimo anel que o namorado lhe oferecera orgulhosamente diante dos pais, foi cedendo timidamente aos caprichos viris, provando que também o amava, mas recusando cautelosamente perder a melhor prova de amor que uma noiva poderá dar no dia do enlace matrimonial: a virgindade, para desgosto do pretensioso. E o tempo da paixão foi devorando penosamente os seus desejos sulfurosos.


continua em Capítulo V

LMP - Luxembourg 1984 - Lud MacMartinson

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