Entretanto, a vivenda da Timpeira crescia a olhos vistos. O tempo dos bailaricos fora rapidamente esquecido pela azáfama das vindimas e pela apanha das castanhas. Sozinha e com o tempo frio, também o ardor sentimental da pobre rapariga acabou por esmorecer e a fazer duvidar um pouco, dando razão às palavras da Norina que não cessava de a repreender e de a pôr de pé atrás, quanto às verdadeiras intenções do passador.
Arménio continuava a mandar cartas animadoras à esposa e, como a filha recebia os maiores elogios da professora, não se cansava de lhe pedir que cuidasse bem da menina. Verónica, que nutria pela Marta uma simpatia contagiante, fruto dos meses de jucunda cumplicidade, dizia que, quando fosse grande, seria a doutora dos pobres. Doutora?! Sim, é que a enfermeira ficava abaixo de doutora e, no Céu, o bondoso tio Rodrigo também teria mudado de ideias, pois se a conta do dinheiro que lhe havia deixado no banco tinha aumentado, só poderia ser para que ela pudesse estudar um pouquinho mais e doutora era mais que enfermeira. Singela dedução, não?
Depois que Raimundo partira pela última vez, Marta, amuada e apreensiva, guardava ansiosamente uma carta que lhe viesse confirmar tudo quanto o namorado lhe cochichara, sobretudo quando dançavam os langorosos slows dos cálidos arraiais do mês de Agosto. Porém, a cada negação do carteiro, o seu coração batia angustiado e a confusão fazia vacilar as suas certezas, colocando-a em pânico. Atenta a essa angústia, Norina, tal fada carinhosa, tinha sempre na ponta da língua a palavra certa para dissipar aquele apaixonado desalento. Foi nesse clima de inquietação que, nos longos e friorentos serões do Outono, os muros ouviram as mais lamuriantes confidências de um coração desenganado. Mas como era terrível depender de alguém! E a alegria só voltou àquele corpo dilacerado nos últimos dias de Novembro, muito depois de outros corações se terem vestido luto e afrontado a penosa recordação da passagem para a eternidade do antigo dono daqueles muros.
A carta do Raimundo chegou na altura em que Marta já não acreditava e, farta de tanto esperar, se resignava com o desleixo do homem por quem se iludira. Porém, a magia das palavras do namorado apagara-lhe, num ápice, as mágoas com que o desespero lhe atarraxara o coração nas tristes noites de insónia. O breu eclipsou-se e uma esperança sagrada cintilou de novo naquele olhar subjugado.
Entretanto, em França, Arménio não arranjava tempo para cozinhar ou para escrever à mulher. De repente, a sua cabeça viu-se hipnotizada pelas notas que diariamente, conseguia apurar nos biscatos, que fazia depois de trabalhar para o patrão. Quantas meias-noites haviam soado longe do seu quarto, com o estômago a roncar esfomeado! Com a descoberta desse filão, até o fascínio e a tumescência, que a Norina exercia no seu metabolismo cerebral, se esvaneciam perante tão sedutoras imagens, por quem aceitava todos os sacrifícios daquela vida gananciosa. Pouco a pouco, também ele, até ali homem de um só Deus e de uma única mulher, começava a verificar a justeza do ditado longe da vista, longe do coração e a ceder às tentações que o novo mundo lhe oferecia.
Mas como mudara! Agora, já nem se lembrava de beijar os retratos que guardavam a velha mesinha de cabeceira que o Fortunato lhe dera, nem tampouco sentia a necessidade recordar demoradamente as cenas de amor com a esposa. Oh, de rezar, então, já perdera o hábito! A vivenda da Timpeira era o que ainda o fazia correr e labutar como um moiro pelas aldeias isoladas nas altas serranias do Doubs.
Se depois, pelo menos, pudesse levar uma vida como a dos franceses, na sua terra com aquela casa estilo maison, as janelas largas estilo fenêtre e um Fiat 147 para poder ir mostrar aos colegas que se haviam quedado na miséria da Brandoa e, quem sabe?, passear com a Norina e a Verónica pela costa do Estoril!...
Na sexta-feira, 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, Norina, aproveitando a ausência da filha e da ajudante, resolveu escrever ao marido para, a pretexto de lhe perguntar em que dia tencionava chegar para o Natal, despejar o saco; os vales do correio e as notas, que ia entregando ao empreiteiro, começavam a atormentá-la e, naquele desespero, a lengalenga da cigana voltou a dar-lhe volta à cabeça, consumindo-lhe até à alma. Há quanto tempo não recebia uma carta carinhosa? A conversa do marido reduzira-se, tão só e apenas, aos desleixados gatafunhos aqui te mando mais estes 10 mil escudos para pagares a prestação da obra e nada mais.
Ao invés, Marta passara a receber verdadeiros testamentos do Faia cheios de palavras bem estudadas, que lhe deviam aquecer a cabeça, e não só, a ouvir pelos estremecimentos nocturnos da cama. Se a obra da Timpeira não estivesse tão adiantada e já teria mandado tudo pelo Corgo abaixo, tamanha era a sua mágoa. E as palavras da cigana ecoavam impiedosamente nos seus tímpanos doridos. Durante o dia, dissimulando aquela angústia por detrás de um sorriso forçado, Norina espalhava todas as mágoas e as endemoninhadas crendices no absurdo silêncio das gélidas noites. Há muito que dispensara os roncos e os bafejos da Marta e agora, nessas horas negras, também não sentia coragem para esmorecer a platónica e meteórica felicidade da mocetona.
Pelas treze horas de terça-feira, 12 de Dezembro, apenas entrou no pátio, curvada de embrulhos, vinda do mercado da cidade, foi assustada pela aleluia da filha, que, mostrando o galo do selo francês, gritava radiante:
— É do pai!, mamã, é do pai!!
— Já não era sem tempo! Mas deixa-o vir... — respondeu ameaçadora, pegando a caixas dos embrulhos.
— A senhora vai ralhar ao pai, mãe?
— Ai vou, Verónica, ai vou!
— A sério?, ou a mãe diz isto porque está chateada e depois...
— Oh! sei lá, filha, sei lá!... Vá, dá cá a carta e leva os embrulhos para a cozinha.
Obedecendo lesta, a menina abarcou as caixas e, segurando os sacos mais leves entre os dentes, subiu as escadas de granito, corcunda, espiando a mãe com um olhar curioso. Da varanda de granito, espreitando pelas tábuas dos parapeitos de castanho, viu o rosto maternal esvanecer-se e uma lágrima escapar-se sorrateira das retinas. Vista de cima, aquela mulher que soluçava, nem parecia a mãezinha que tanto adorava. Incomodada com a tristeza maternal, abandonou cautelosamente o postigo e foi ajeitar os embrulhos no escano.
Limpando-se ao lencinho bordado, que escondia no punho da blusa, Norina compôs-se e, ganhando fôlego, subiu a escadaria, depois de fechar a porta da rua. Ao passar diante da cozinha, nem espreitou, preferindo refugiar-se no seu quarto para mudar de roupa e engolir a decepção que o coração, a adivinhar pelas entrelinhas do marido, lhe cravava na alma. Depois de vestir a blusa e a saia de todos os dias, juntou-se à filha e, metendo um figo seco na boca, lá foi enganando o estômago, enquanto a massa e os ervanços da véspera se aqueciam na boca do fogão.
E dizer que, no meio de tantas notícias boas, um talvez bastou para lançar a confusão no seu espírito. Os alimentos não lhe fizeram sangue. Com os seus lápis, Verónica ia riscando e descontando os dias que a separavam da noite de Consoada pelos dedos. A pilha de brinquedos, que imaginava na mala do pai, saltava-lhe das órbitas e espelhava-se nas suas mãozitas.
Enquanto a filha dava largas ao sonho e mal via o tempo passar, Norina ia arrastando os dias e as noites com o seu coração atribulado; um rosário de questiúnculas malfazejas foi-lhe cercando e obcecando de tal maneira a razão que, em casa, todos evitavam o seu olhar desvairado. Marta adivinhava-lhe as marés, mas esquivava-se lesta para não se tornar o bode expiatório da sua alma depenada.
No dia 22 de Dezembro, sexta-feira, ouvindo os alaridos da filha, a senhora largou tudo e acorreu à varanda, mas, dando com um papel na mão da pequena, esvaziou-se do sangue frio que lhe gelava as veias. Sentindo a mãe desfalecer, Verónica perguntou inquieta:
— A senhora que tem, mãe?!
— Nada, filha, nada...
— Ah, é a carta do pai! É a carta do pai!
Murmurando por entre os lábios trémulos um eu sei mórbido, Norina pegou na missiva do marido, dobrou-a sem a abrir, enfiou-a no bolso do avental e, lançando à filha um olhar indecifrável para tão tenra idade, correu a refugiar-se no seu quarto. Para não ter que ouvir os gritos e os soluços abafados que jorravam do pranto maternal, Verónica desceu ao pátio e iniciou um monólogo que só as bonecas pareciam entender. Depois, convidando-as a um passeio pelo reino da fantasia, deu largas à sua autoridade e impôs-lhes um silêncio cego e surdo. E esse ritual endofásico foi saciando a fome adulta desse botão de mulher que desabrochava já naquela criança em fim de estação.
1972, que vira nascer o sonho e concretizara a ilusão do Arménio, reservara-lhe para o fim uma quinzena de lágrimas e suspiros. Até parecia que o emigrante se esquecera como o Natal contava para a esposa. Lá longe do seu torrão, as fotos da vivenda da Timpeira substituíram-lhe no olhar egocêntrico as imagens vivas que, meses antes, quebravam o gelo de tantas noites de solidão e saciavam a tumescência. Agora que a felicidade começava a assentar arraiais à beira das cachoeiras do Corgo e a vida ia ficando mais desafogada, quisera o destino pô-los mais uma vez à prova da fé...
Na manhã de sábado, 23 de Dezembro, depois de uma noite de insónias, Norina passou por casa dos pais da Marta a convidá-los para passar a Consoada com elas, antes de subir à cidade para fazer as derradeiras compras do Natal. Às treze horas, quando entrou em casa, foi encontrar a empregada a choramingar sobre o escano da cozinha.
— O que tens rapariga?! Oh! agora deu-te para chorar? Não me digas que...
— Oh, não é nada! Não é nada! — exclamou confusa, disfarçando atabalhoadamente as lágrimas com os punhos da blusa.
— Vá, diz lá o que se passa, Marta!
— O Raimundo já nem vem ao Natal nem ao Ano Novo!
— Deixa lá, isso é só para te enganar! Ele sempre gostou de gozar os outros, de dizer uma coisa e fazer outra...
— Olha aqui o telegrama, Norina!
— O Arménio também não pode vir. Temos que nos conformar, Marta, temos que nos conformar!... — repetiu resignada, acariciando o poupo da criada.
E um sorriso dolorido saltou desvairado pelos olhos lacrimejantes da ingénua rapariga, que, decepcionada com a carta do passador, se encerrou pensativa no quarto, deixando a patroa a aprontar o almoço. De tarde, enquanto faziam os fritos da Consoada, não conseguiam disfarçar a tristeza que tinham na alma. Só a Verónica, a batuchar na massa das lêvedas, se esquecera do pai. Sem o Arménio, aquela quinzena da quadra natalícia, tornou-se um calvário para a Norina. Perdida no turbilhão das crendices malfazejas, vivia obcecada pelos vaticínios da cigana.
1973 nascera muito cinzento. Em Portugal, o regime fascista, no poder há quase meio século, vivia sobressaltado com os revés militares em África e ameaça ruir; a contestação à guerra no ultramar era cada vez maior; o povo, esfomeado e sem dinheiro começava a desertar as aldeias de subsistência do interior e a emigrar em massa para a Europa ocidental, aproveitando a magnanimidade do professor Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros, cuja popularidade não crescia a olhos vistos de dia para dia.
Enquanto que a mãe e a Marta se entretinham com a azáfama das sementeiras primaveris, no solar de Almodena, Verónica contava, pelos da mão, os meses para faltavam para se mudar definitivamente para a Timpeira. Ah, como as cachoeiras do Corgo a fascinavam!
Na primeira semana de Abril, Arménio decidiu-se, finalmente, a escrever à mulher a carta mais feliz da sua vida. Incrédula, Norina não se cansou de a ler e a reler milhentas vezes para se certificar que não sonhava, tantas desilusões haviam mortificado o seu coração ingénuo.
E Maio chegou com um manto florido de esperança. A árdua azáfama da terra dissipara-lhe um pouco as dúvidas e as horas da sesta e das noites cálidas ajudavam-na a diluir os obscuros pensamentos e substituí-los por outros, mais radiantes, graças, em parte, ao sorriso encantador da inocente e sonhadora Verónica e, sobretudo, às maliciosas e irreverentes piadas da Marta, decididamente leviana.
Naquela sexta-feira, 11 de Maio, antevéspera de peregrinação a Fátima, Norina passou na Timpeira para escolher os tons do colorido dos quartos e do salão da vivenda, visto a pintura exterior ficar para mais tarde, quando Arménio viesse e, com o tempo, os muros tivessem puxado. Mostrando-lhe orgulhosamente a obra, o empreiteiro reparou que ela não parava de olhar amarguradamente para as cachoeiras do sussurrante Corgo, mas, intimidado com aquele fino rosto sorumbático, não ousou dizer-lhe nada. No fim da ronda, porém, viu-a ficar pálida e respirar dificilmente.
— A D. Norina sente-se bem? — perguntou intrigado, franzindo o sobrolho.
— Deve ser fraqueza, senhor Jaime! De manhã não me apeteceu tomar o café.
— Não, D. Norina, fraqueza não creio que seja, que o rosto da fraqueza não é assim!
— Será tristeza... — disse resignada, afrontando a dor que lhe trespassava o peito.
— Tristeza, agora que a obra chegou ao fim, D. Norina?!
— O Arménio..., ai! ai, meu Deus, o meu Arménio!... — bradou aflita, agarrando-se ao braço do empreiteiro para não bater nas escadas.
— D. Norina! — exclamou o homem perplexo, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a para que ela não lhe desfalecesse nos braços.
Empalidecendo num abrir e fechar de olhos, a senhora começou a transpirar por todos os poros e a alagar-se de suor, comovendo o empreiteiro que, embaraçado com tão delicada formosura, quase perdeu a voz.
— Zé!!! Toninho!!! Acudam que a senhora teve um ataque!!! — gritou assustadíssimo.
Largando as talochas, os pedreiros acorreram lestos e ajudaram o patrão a transportar a senhora para a cabina da carrinha. Depois, enquanto Zé amparou a doente, senhor Jaime instalou-se ao volante e, dando de olhos ao António, arrancou a todo o gás, levantando uma nuvem de poeira. E, buzinando o mais que podia, a Bedford não gastou três minutos até ao hospital, onde Norina, entretanto mais aliviada, entrou pelo próprio pé, amparada corajosamente pelo empreiteiro. Zé, esse, seguia-os embasbacado e comovido. Meia hora depois, um sorriso de circunstância voltava a iluminar aquele doce rosto, apesar das picadas que o seu coração continuava a sentir de tempos a tempos.
— Quer que a leve a casa, D. Norina? — perguntou o empreiteiro atencioso.
— Se fizer o favor, senhor Jaime.
Mirando aqueles olhos lívidos, o construtor meneou apenas a cabeça e, abrindo a cabina, esperou que a convalescente se sentasse para deixar passar o empregado. Até à Almodena, ninguém ousou dizer mais nada. Um silêncio sufocante não os deixou abrir a boca, nem tampouco respirar livremente. Atordoada com as crendices sussurrantes, que lhe abrasava a cabeça e a impediam de pensar e reflectir normalmente, Norina voltava a sentir-se prisioneira da malfadada cigana que tantas desgraças lhe vira nas linhas da mão naquele desditoso dia em que, solteira ainda, ousara desafiar o namorado, a deixar ler a sina àquela mulher de lenço preto.
Mal atravessou as portas do solar, Norina esquivou-se à filha, que embalava as bonecas num canto da varanda e, espreitando para a cozinha, onde a criada aprontava o almoço, foi trancar-se no seu quarto. Entretidas, tanto Verónica como Marta não se aperceberam de nada e, chegada a hora da refeição, sentaram-se na varanda à espera dela, mas, os minutos passaram e a fome apertou sem que os seus olhares inquietos a vissem transpor o portão. Enchendo-se de razão, decidiram enganar o estômago com um naco de broa que molharam na calda do arroz de espigos. Sossegados os ventres, beberam um pouco de água pelo mesmo púcaro de alumínio e, rindo brincalhonas, decidiram ir fazer as camas, esperando que Norina chegasse entretanto, para o arroz não recoitar na panela. Correndo lesta, Verónica quis entrar primeiro no quarto da mãe, mas esbarrou com o nariz na porta.
— Oh!, a mãe levou a chave! — exclamou desconsolada, forçando a mãozeira.
— Não levou nada, Verónica, puxa bem que é a mãozeira que está perra!
— Caramba, és bem teimosa, Marta! Se eu te digo que levou é porque levou mesmo! Estás a ver como esta geringonça não está perra?!
— Realmente... — constatou a criada, vendo a mãozeira subir e descer facilmente.
— Ah!... - admirou-se a pequenita, espreitando pelo buraco da fechadura.
— O que foi? Deixa-me ver! — perguntou Marta curiosa, desviando a pequenita e abaixando-se para espreitar também.
— A chave está não fechadura, pois está, Marta?
— É, para a tua mãe ainda estar a dormir a estas horas, deve ter passado muito mal de noite... Eh, põe-te a pé, dorminhoca, que o arroz fica todo ensopado! Norina!!! Eh, Norina!!! — bradou a criada alarmada pelo imobilismo da coberta, torneando a mãozeira e abanando a porta.
— Ponha-se a pé mãe, que o almoço fica todo receitado! — gritou a filha esganiçada.
— Norina!!! Norina!!! — insistiu Marta, dando uns murros na porta para a acordar.
— Oh!, comei vós e deixai-me em paz que me dói a cabeça! — respondeu soluçante.
— Está a chorar, mãe?! Porque chora, mãezinha? — volveu carinhosamente a enternecedora filha, assustada pelo semblante sisudo de Marta.
— Vá, põe-te a pé, Norina, senão arrombamos a porta — ameaçou a mocetona, fazendo-se dura.
— Está bem, pronto, ide pôr a mesa que eu já lá vou ter...
— Não demore, mãe! — berrou Verónica mais alegre.
— Não, filha, eu não demoro — prometeu molemente a mãe, enxugando as lágrimas.
E, dando as mãos, as moças lá obedeceram, deixando em paz aquele coração aflito. Mal viram Norina entrar de cabelos emaranhados a esconder o rosto pálido, elas baixaram os olhos e continuaram a mastigar lenta e silenciosamente o arroz, donde emergiam os espigos de couve e os pedaços de toucinho; de semblante carregado, ela também se limitou a sentar-se e a fitar morbidamente o prato fumegante que lhe estava destinado e mirá-lo abulicamente; com as mãos cruzadas sobre as pernas e aquele olhar circunspecto, ela mais parecia uma múmia embalsamada que gente viva; inocentemente ingénua, suspirava por dentro para não se ouvir, mas, mesmo abafado, o timbre das suas palpitações dolorosas ecoava sorrateiramente pelas tábuas do escano, atraiçoando-lhe os intrínsecos propósitos. Depois de uns três ou quatro minutos de lânguida contemplação, decidiu-se a mastigar uma garfada de arroz, mas o estômago rejeitou-lha; bebeu então um púcaro de água e, arrepiando-se toda, voltou cabisbaixa para o quarto. E uma chapa de absurdo silêncio desceu sobre aquelas quatro paredes, emudecendo-as de vez, como se o hálito da morte lhes agoniasse a alma.
Cansadas de troçar dos fantasmagóricos vaticínios da desditosa cigana, com que Norina lhes enchia os ouvidos nas horas de desânimo, desta vez, as moças acabaram por se amedrontar e, apesar das golfadas de calor que sentiam entre as mantas, tetanizadas de medo, dormiram abraçadas uma à outra como nas longas e frias noites de invernia.
De manhãzinha, assarapantadas por um rude pesadelo, saltaram da cama e, gesticulando cautelosamente, foram ferver um chá de erva-cidreira para aliviar as dores de cabeça deixadas pela insónia nocturna. Depois, como o Sol batesse desavergonhadamente na vidraça da cozinha, deitaram um púcaro de água no lavatório de esmalte azulado da cozinha e lavaram a cara, espantando a soneira e a preguiça persistentes. Mais guichas, meteram duas bolachas na boca e, mastigando-as inadvertidamente, aproveitaram aqueles trinta minutos para regarem a horta, antes de Verónica se aprontar e ir para a escola.
Às nove menos dez, como a patroa continuasse trancada no quarto, Marta, que nunca se sentira tão perdida, pegou na saca da confidente e acompanhou-a até ao adro da igreja, precisamente onde a rampa começava a subir, mandando-a fazer os últimos metros sozinha. E, sentando-se ofegante numa pedra de granito, lá ficou a ver como aquelas pernitas saltitavam de laje em laje, palmilhando jovialmente os últimos decâmetros da encosta sem se voltar. Porém, chegada ao cimo da ruela, a inocentinha virou-se e, acenando alegremente, desatou a correr, sumindo-se por entre os plátanos.
Apaziguada, Marta levantou-se e, limpando as areias apegadas às nádegas da saia, regressou ao solar pelo caminho mais longo, convicta de que, depois de tantos dias sem novidades de França, cruzaria o reinadio Mesquita com a tão desejada carta que Raimundo lhe devia, mas do carteiro... nada, nem capacete, nem mota, nem correio. E, reconfortando mais uma vez a terrível decepção interior, voltou para casa, dizendo-se que devia andar maluca, pois ainda faltavam quase duas horas para o homem chegar.
Entretanto, no solar, Norina decidira erguer-se e ferver um copo de leite com mel para curar a estranha rouquidão com que acordara naquela manhã. Apenas lhe viu as covas dos olhos, Marta percebeu logo quão sofredora e lacrimosa havia sido aquela noite e, compadecida, sugeriu-lhe que ficasse a descansar ou fosse à cidade espraiar um pouco que ela lá trataria de tudo.
— As videiras... — adiantou roufenha, franzindo a testa e forçando a garganta.
— Deixa isso com o meu pai, Norina — disse a moça apiedada.
— Ele que... — murmurou baixinho, engolindo um golo de leite melado.
— Vá, não te preocupes com o prédio da Timpeira que o Arménio...
— Senhora Norina!!! Eh, está lá senhora Norina? — berrou subitamente o carteiro, batendo furiosamente a maçaneta do portão. — Tem aqui um telegrama, senhora Norina! Depressa, que é um telegrama!!!
— Ai, meu Deus, que desgraça! — gritou desesperadamente Norina, cruzando as mãos e erguendo os olhos ao tecto, numa prece ao Todo Misericordioso.
— Credo, parece que viste o diabo, mulher! — sussurrou Marta apavorada, vendo a aflição estampada no rosto lívido da patroa, que se agarrava desvairadamente ao escano para não desfalecer.
— Senhora Norina!!! Senhora Norina!!! — persistiu o vozeirão.
— Já ouvimos, senhor Mesquita, já ouvimos!!! — berrou-lhe a moça arreliada.
E, acarinhando a patroa com um olhar compassivo, correu ao encontro do carteiro que, entretanto, se adiantara e subira as escadas, empiscando à moça e brandindo espalhafatosamente o telegrama.
— O que será, Mesquita?! — inquiriu Marta assustada, pegando medrosamente no pedaço de papel e tremendo como uma vara verde.
— Oh, nunca pensei que a tua passarinha também tremesse assim, rapariga! — comentou o carteiro com ar de gozo, mirando-a atrevidamente.
— Oxalá não seja...
— Marta!!! — gritou esganiçada a dona do solar.
— Calma, Norina, calma! — aconselhou a criada, virando as costas ao mensageiro.
E, acenando aérea, apressou o passo, entrando na cozinha de telegrama na mão.
— Abre-o tu e lê-o que não deve ser coisa boa...
— E porque não há-de ser coisa boa, Norina? — retorquiu corajosamente a moça, abrindo cautelosamente a folha lacrada.
— Então?!
— O Armé... — balbuciou amuada, antes de acrescentar tristemente: — Ó meu Deus, que desgraça, Norina!!! Coitadinha da Verónica que já não tem pai!!!
— Ó Arménio, Arménio!!!... Eu bem te avisei Arménio!!!... Mas tu nunca quiseste ouvir os meus conselhos! Perdi-te, amor da minha alma!!! — bradou lancinantemente aquele coração trespassado, ouvindo a confirmação do que mais temera na vida.
— Senhor Mesquita!!! — berrou Marta, deixando cair ao chão o telegrama e sustendo energicamente a patroa desfalescente.
— Coragem, senhora Norina, coragem! — disse o carteiro perplexamente apiedado.
— Por favor vá avisar a professora e trazer a Verónica, mas não lhe diga nada!
— Fique sossegada e que Deus a ajude nesta hora, senhora Norina!
— Ai que desgraça, meu Deus!!! Ó amor da minha alma, que te perdi, amor da minha alma!!! Mas que vida vai ser a minha agora, meu Deus?! Ó maldita casa que foi a tua perdição! Arménio! Arménio!!! Nunca mais te verei, Arménio!!!
— Não te mortifiques, Norina, não te mortifiques... — implorou Marta, abraçando-a e reconfortando-a com emocionadas palmadinhas nas costas e nos flancos.
— Ui que dor!. Ó desgraça! Ó morte, leva-me, morte! Ai como és cruel, meu Deus!
— Por favor, Norina... Vá, toma, limpa essas lágrimas que a Verónica não vai tardar! — murmurou a moça, ajudando-a a sentar-se no escano e estendendo-lhe um lenço para enxugar as lágrimas.
— E agora o que vai ser da minha filha sem o pai, Marta?!
— Deus...
— Deus?! Não me fales mais de Deus, Marta, porque Ele não existe e se existe é cruel de mais para ser Deus!!! Mas que pecado fiz eu para merecer tal castigo, Marta?
— Acalma-te, Norina, que Deus é Bom e Justo.
— Bom?! Cala-te! Deus não existe! Eu sempre O avisei: se o Arménio morresse...
— Vá acalma-te, Norina, que vem gente no portão — sussurrou atemorizada.
E não disseram mais nada. Ouvindo passos e soluços, a tristeza apoderou-se-lhes da garganta e, mudas de dor, deixaram-se reconfortar pelas primeiras carpideiras de lenço negro que, sabendo da desgraça, acorreram lestas para lhes apresentar os pêsames e rezar pela alma do infeliz Arménio Sala.
Quando se abeirou de casa pela mão da professora, que fechara a escola e mandara os alunos embora, Verónica foi abraçada e beijada por quantos se amontoavam nas escadas e esperavam a sua vez para irem apresentar os sentimentos à pobre viúva. Comovidas, muitas pessoas, sobretudo mulheres, arredando-se para que a filha do emigrante passasse e se fosse abraçar à mãe.
— Ó mãezinha, não chore mais que o pai não morreu, mãezinha!!! — bradou a inocente aninhada no regaço maternal, tentando raivosamente evitar também as lágrimas negras que lhe jorravam fluidas pela alma esfaqueada cobardemente pela odiosa orfandade.
E Norina, agarrando-se e beijando desesperadamente à filhinha, disse tresloucada:
— Foi Deus quem matou o teu pai, Verónica!!! Foi Deus...
— Deus matou o meu paizinho?! Porquê?! Ó paizinho, não nos deixe aqui sós, paizinho!!! Não, não nos digas que te foste embora para sempre, paizinho do meu coração!!
Comovidas com aqueles gritos dilacerantes, as pessoas mais corajosas não resistiram e fundiram também em pranto; os lenços, as pontas dos aventais, os punhos ou as fraldas das blusas e as próprias mãos, tudo, tudo servia para enxugar aqueles rostos lacrimosos; enquanto uns cochichavam entre si, outros olhavam o céu azul e imploravam a clemência divina para a alma do conterrâneo. Mais célere que o vento, a notícia da tragédia voou de campo em campo e de rua em rua, espalhando a consternação e parando a faina daquele maravilhoso dia primaveril. E aos poucos, digerido o tremendo choque inicial, a população foi-se retirando cabisbaixa e apiedada para as suas casa, deixando a viúva e a órfã chorar em paz.
Como o Faia, que assinara o telegrama, tivesse escrito apenas “ o Arménio morreu ontem num acidente ” Norina, sentindo-se uma lástima sem forças nem coragem para enfrentar ninguém, mandou chamar Marta e pediu-lhe que fosse com o pai ou a mãe à vila falar com Manuel Feliciano, a quem a filha e o genro, que trabalhava com o passador, já teriam certamente telefonado àquelas horas. Porém ainda mal a moça metera as mãos no lavatório para passar uma pouca de água no rosto e nos olhos avermelhados, que a senhora Soledade, postada no canto da varanda, lhe cochichava:
— Vem aí o Feliciano Barrigana, filha!
— O que me diz, mãezinha?! — perguntou ela, limpando-se à pressa.
E, correndo de toalha ao pescoço, Marta foi avisar a patroa da chegada eminente do taberneiro, encorajando-a a erguer-se da cama e ajudando-a a recompor-se um pouco, pois parecia mal recebê-lo assim toda desguedelhada e lastimável. Para lhe dar tempo que Norina se penteasse, a rapariga pediu ao pai, que conversava no pátio com os vizinhos mais próximos do solar, para reter o homem da vila por dois ou três minutos. Compreendendo o rogo da filha, o senhor João lá saudou e reteve o taberneiro até que a mulher lhe acenou pelo postigo da varanda.
— Suba, senhor Feliciano — disse a velhota, ajeitando o lenço preto.
— Pobre da Norina, senhora Soledade! — murmurou condoído o visitante.
— Pois..., mas foi o Arménio quem se foi..., agora que tinha a vida tão arrumadinha, com aquele casarão da Timpeira e um emprego que o senhor Morgado da senhora D. Elisa lhe arranjara na câmara...
— Ainda bem que chegou, senhor Feliciano, estávamos mesmo para ir ter consigo! — disse Marta muito triste, encaminhando-o para a salinha de jantar.
__ Os meus pêsames, Norina, acredita que sinto muito o que aconteceu. O Arménio... Oh! eu nem acredito que é verdade! Até parece que o estou a ver a última vez que partiu: estava tão alegre, tão confiante e orgulhoso por vos poder levar para a Timpeira! — balbuciou comovido, apertando a mão franzina que a viúva lhe estendia timidamente, enquanto a filhinha, arrebatada, lhe retinha carinhosamente a outra.
— Obrigado, senhor Feliciano, eu sei que o senhor sempre foi muito nosso amigo.
— Dá cá uma beijinho, Verónica! — adiantou o taberneiro carinhoso, curvando-se.
— O senhor escusa de chorar que o meu pai não morreu, senhor Feliciano...
— Pois não, Verónica, pois não!... — repetiu o vila-realense apiedado.
— Marta, por favor, saiam um pouco, que eu quero falar com o senhor Feliciano.
— Está bem, nós vamos para a cozinha, se for preciso qualquer coisa... — disse a criada, retirando-se e pegando na Verónica pela mãozita.
Respirando fundo, a viúva encheu-se de coragem e escutou silenciosamente as novidades que o taberneiro ouvira há menos de meia hora da boca do genro, a única pessoa a quem o passador contara o sucedido ao Arménio na véspera, sexta-feira 13, algures numa rua de Paris. Estóica, Norina resistiu aos detalhes mais cruéis da morte do marido, mas quando se apercebeu que, por causa da terrível explosão assassina, jamais poderia trazer os restos mortais do Arménio para Portugal e dar-lhes uma digna sepultura, desmaiou nos braços do taberneiro que gritou:
— Marta!! Um copo de água, Marta!!!
— Depressa, Verónica, traz a água que eu vou ajudar o senhor Feliciano.
— Isso, ajude-me a sentá-la nessas almofadas — disse o taberneiro, curvado com o peso daquele corpo inerte.
— Coitada da Norina!... — murmurou a criada, ajeitando a almofada na cadeira.
— Olhe, Marta, nestes dias a D. Norina vai precisar muito da sua ajuda dia e noite, porque não lhe será fácil habituar-se a esta ideia.
— Que ideia, senhor Feliciano?
— O Arménio..., tchut!...
— O Arménio quê, senhor Feliciano? Vá, deixem-se de segredos que eu já não sou nenhum bebezinho! — ordenou Verónica, encarando-os corajosamente.
— O corpo do teu paizinho não pode vir...
— Corpo?! Qual corpo? O senhor é surdo ou faz-se? — retorquiu a órfã arreliada.
— Pronto, Verónica, não grites que a tua mãe... Dá cá a água e ajuda-me a dar-lhe de beber — adiantou Marta, amparando a patroa e despachando discretamente os serviços do taberneiro, que saiu envergonhado para a varanda.
— Então, Feliciano? — perguntou-lhe o pai da Marta.
— O Arménio nunca mais voltará à Almodena, senhor João — segredou o taberneiro.
— Credo! Mas o que é que foi que aconteceu?!
— Ele e o Raimundo iam a passar numa rua de Paris, quando arrebentou uma bomba... Morreram várias pessoas. Coitado, ao Arménio nem a alma se aproveitou!...
— E o Raimundo?! — perguntou baixinho o reumático, amparando-se à bengala.
— O Raimundo, senhor João?! Foi um milagre!
— Então?!
— Teve uns arranhõezitos, mas já está em casa.
— Ó valha-nos Deus! — implorou o velhote, benzendo-se e olhando o céu.
— O meu genro e o Chico Serra, o rapaz que namora com a minha caçula, andam a dar as voltas para ver o que podem fazer pela Norina e pela filha. Coitadinha da menina, até me causa pena ouvi-la dizer que o pai não morreu. Que ninguém a contrarie, senhor João, que esta morte pode dar-lhe a volta à cabecinha.
— Ai, Feliciano, é tão triste perder-se o pai assim tão novo!
— Pois é, senhor João, mas pobre de quem vai!...
— Coitado do Arménio, era tão bom rapaz!
— Se era, senhor João, se era!...
— Vossemecê já se vai?
— O meu genro ficou de me telefonar e a minha Rita sozinha na taverna não dá conta do recado.
— Que Deus lhe pague, Feliciano!
— Ora essa, sempre às ordens! Diga à Norina que fique sossegada que eu voltarei à noitinha com a minha Rita, depois de fechar o comércio.
— Vá com Deus, Feliciano!
— Até logo, adeus! — disse o taberneiro, acenando ao velhote.
Entretanto, recuperados os sentidos, a viúva bebeu o copo de água e, apoiando-se na criada e na filha, arrastou-se até ao quarto, onde ficou a esvaziar sozinha a dor e a raiva que lhe corria vertiginosamente nas veias e domar os sacrílegos pensamentos que o demónio lhe suscitava freneticamente desde a manhã.
Aos vizinhos e conhecidos que vinham saber o dia e a hora do enterro do Arménio e apresentar os pêsames à viúva, Marta ia dizendo que aguardavam ordens de França e nada estava decidido, mas que a amiga tudo faria para que o marido fosse honrado com um imponente ofício religioso, se o funeral, por qualquer motivo, tivesse que se realizar em França.
Ah! o que elas não dariam para não ter que viver aquelas horas terríveis! O tempo, que tudo cura e digere impiedosamente, esquecera-se caprichosamente de prosseguir a sua inelutável e corrosiva viagem para mostrar àquela alma pecadora quão fútil e débil é o nosso destino e quão mesquinha pode ser a nossa fé quando perdemos brutalmente quem mais amamos...
continua em Capítulo VI
LMP - Luxembourg 1984 - Lud MacMartinson
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