Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Caminhos de ilusão: Capítulo XII

Capítulo XII



Finalmente, levado à razão pelos pais, que haviam telefonado a um advogado antes de o visitarem, o Faia ficou no hospital até tirar os pontos, adoptando a postura hipócrita dos últimos vinte meses de pseudo-alienação mental e desistindo de perseguir a viúva, pois, face ao burburinho popular, não haveria homem de leis que o pudesse livrar da cadeia, até porque, graças à liberdade, sopravam sobre Portugal ventos de folia e as vindictas, como a que ele tentara, de julgamento sumário, pois agora era o povo quem mais mandava, como todos se orgulhavam de cantar com o Zeca Afonso. E mesmo com aquela cara de Barrabás, o Raimundo lá se resignou a parecer o maluco que todos diziam que era, aproveitando para cicatrizar as suas feridas na casa paterna, a uns quinhentos metros do solar dos Valadares, evitando assim uma investigação da Interpol, a polícia internacional, com que uma carta anónima o ameaçara, e obrigando-o a esconder-se como um rato ou um bandido que se sabe perseguido por toda a parte.
Face à resignação do passador, Norina, que ainda chegara a pensar em abandonar os cursos nocturnos e desistir do sonho de criança, encorajada pela filha, pelos colegas, pelos professores e por quem lhe queria bem, lá continuou a ir todas as noites assistir às aulas e a receber as explicações da Carminda, que quase todos os dias a acompanhava até às portas do liceu, fazendo assim companhia ao Leão, seu fiel guarda-costas; e, enquanto ela lutava estóica e obstinadamente contra o medo interior, que lhe fazia temer uma cilada do vil Faia e ser surpreendida e esfaqueada nalguma esquina da cidade, a filha não parava de responder aos cartões do simpático Chico Serra, a quem pedia por favor que não se esquecesse dela, sobretudo agora, com tudo o que se começou a suspeitar, depois que o Leão obrigara o Raimundo a trocar precipitadamente de máscara e a meter o rabo entre as pernas.

Entretanto, os meses passaram e nunca os governos provisórios justificaram tanto esse nome: os partidos esquerdistas e as intermináveis lutas intestinas pelo poder fragilizaram de tal maneira a base de apoio dos elencos governamentais, demasiado conservadores a seus olhos, que não houve primeiro-ministro que resistisse mais de meio ano, ora decepcionado pelos desvios revolucionários, ora pelas traições permanentes dos que estavam encarregados de executar honesta e lealmente a política que conduzira à insurreição militar de 25 de Abril de 1974 e que se resumia aos três Dês, dos verbos Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, sem os quais Portugal não poderia construir um futuro melhor.
Mas a descolonização estava a ser um nojo, um negócio sujo, uma ignomínia para quem, e contavam-se por milhares os retornados, não tendo perdido a vida, deixara em África todos os bens e, sobretudo, o sonho que justificava todos os sacrifícios do mundo: empreender e enriquecer para, nem que fosse no limiar da morte, regressar orgulhosamente à pátria e poder mostrar que se era alguém. A esses, infelizmente a viver de esmolas, mais que falta de pão para a boca, era fome de dignidade que eles tinham e essa ninguém lha deu, pelo contrário, acusados de espoliar e escravizar os negros, até os restos de coragem e de amor-próprio que ainda possuíam no fundo da alma, lhes arrancaram, acusando-os e fazendo-os carregar os males de África. A democracia, essa, era o que se via: saneamentos sumários, expropriações arbitrárias e acusações reaccionárias, só para fomentar a desordem civil e fomentar o caos que justificassem um contra-golpe revolucionário radical; e, com o desmantelamento do aparelho industrial, com a sórdida decapitação patronal, como é que podia haver desenvolvimento?

E, inevitavelmente, no dia 11 de Março o Marechal António de Spínola, Presidente da República e figura emblemática da Revolução dos Cravos, foi destituído, acusado de fomentar uma intentona contra-revolucionária fascista, sendo substituído pelo Marechal Costa Gomes, um transmontano de gema, que encarregou Vasco Gonçalves, um apologista da luta de classes, de formar um novo governo provisório, o que veio aquecer os ânimos dos que recusavam e se opunham firmemente à ditadura do proletariado; e as paixões exaltaram-se, quando se descobriu que o pretenso contra- golpe militar de 11 de Março não passou de uma encenação comunista que, entretanto, confiara a maior parte das chefias dos três corpos das Forças Armadas a simpatizantes seus, criando ainda o Copcon, polícia e cão de guarda do futuro regime vermelho, e entregando-o ao célebre e fanático general Otelo Saraiva de Carvalho, o capitão mentor e executante do golpe de Estado que derrubara o fascismo numa madrugada de Abril, e um dos mais polémicos Conselheiros da Revolução.
Com um início de Primavera assim tão controverso e explosivo, adivinhava-se e temia-se um Verão extraordinariamente quente, dado que o país se cindiu claramente em dois blocos mais ou menos homogéneos e antagónicos, cabendo aos exilados Álvaro Cunhal e Mário, respectivamente chefes comunista e socialista, a honra de chefiar a esquerda revolucionária e a Francisco Sá Carneiro e Freitas do Amaral, carismáticos líderes do PPD - Partido Popular Democrático - e do CDS - Centro Democrático Social - , incarnar a direita reaccionária, juntamente com o ex-presidente da Democracia Cristã, major Sanches Osório, a quem se atribuíam simpatias fascistas e do MDLP — Movimento Democrático de Libertação de Portugal — , um grupúsculo da extrema direita que usava a violência, imitando a extrema esquerda, para defender os seus ideais patrióticos.
E às inventivas e às provocações públicas nos inúmeros comícios e sessões de esclarecimento, que os jornais e a televisão, manipulados por uns e por outros, se apressavam de dilatar, sucederam-se as agressões corporais, os atentados e os incêndios criminais, derramando-se o sangue de muitos inocentes, cuja fatalidade quisera por perto dessas deflagrações aterrorizadoras naquele ápice de morte.
Com a Reforma Agrária, cujo o lema era a terra para quem a trabalha, milhares de portugueses, essencialmente nos latifúndios alentejanos, pensaram realizar os seus sonhos e pilharam impunemente quem lhes havia valido nesses anos duros do pós-guerra, como se a famigerada Liberdade de Abril tivesse surgido para conferir só direitos a uns e apenas deveres a outros; e nem todo o autoritarismo e todo o despotismo do governo Gonçalvista evitou as exacções irresponsáveis dos revanchistas demagogos comunistas que, sabendo a essência da sua mensagem condenada ao fracasso, tentavam convencer a ignorância popular pela generosa jactância, oferecendo benesses a correligionários e ousando contaminar e corromper a consciência de quem nada tendo desde o início, tudo sonhavam possuir no fim da vida...

No dia 12 de Maio de 1975, a escassos dois meses do exame, Norina acordou bem-disposta, mas a fotografia da mesinha-de-cabeceira lembrou-lhe o segundo aniversário da morte do marido, entristecendo-a e acelerando-lhe imediatamente o ritmo cardíaco: porém, enchendo-se de coragem, disfarçou como pôde o seu estado de alma, evitando a comemoração dessa data trágica à filha convalescente, que, constipada, a Carminda dispensara dos últimos três dias de aula.
Porém, à noite, antes de se deitar, a inocente beijou emocionadamente a mãe e, percebendo a tristeza que lhe ia na alma, balbuciou comovida:
— Posso pedir-te um favor, mamã?
— Claro, diz, filha!
— Por amor de Deus, aguenta mais um ano sem te casares!
— Mas que ideia, Verónica?! Um, dois, três, os que calharem...
— Não, a Carminda tem razão: tu és ainda muito nova e muito linda para ficares sozinha neste casarão toda a vida, com o Faia a rondar por aqui...
— Ah! nem imaginas como gosto que me digas isso, filha! Mas...
— Mas quê, mamã?! Não digas que queres ficar viúva toda vida? E se o Faia te mata?
— Escuta, Verónica, eu não tenho medo do Faia e não será por isso que me casarei, se me chegar a casar. O problema é que eu até já vi homens jeitosos e simpáticos que me pareciam sinceros e sensíveis, como o Jorge, mas o problema é que quanto mais eles me fascinam, mais eu me lembro do meu querido Arménio, e, por agora pelo menos, sei que não adianta nada forçar as coisas e pôr o carro à frente dos bois, porque, mesmo que se fosse com algum para a cama, não daria certo. Ainda é pelo teu pai, que Deus tem, que o meu coração bate, filha! E..., - balbuciou trémula - e como eu não tenho o direito e nem quero iludir ninguém, acho que é melhor viver assim. Além disso, jurei fidelidade eterna e não me sinto com coragem para me apresentar diante de Deus… Não, não seria justo da minha parte. Se eu tivesse visto teu pai morto, se o tivesse enterrado, talvez já o tivesse esquecido, mas assim não! Como posso, filha?!
— Sua mentirosa! Tu também tens andado todo este tempo a enganar-me...
— A enganar-te não, Verónica! Ele morreu, mas custa-me a admiti-lo.
— Eu sonho todas as noites com ele, mamã! O papá é o meu herói! Como queres que eu te diga que ele morreu durante o dia e depois vá falar e sonhar com ele na escuridão do meu quarto? É impossível! Se o papá tivesse morrido, eu também não pensaria tanto nele! Olha o pobrezinho do tio Rodrigo, só me lembro dele de vez em quando...
— E o que fazes, quando ele te aparece nessa cabecinha, filha?
— Oh! rezo um Pai- Nosso ou uma Ave- Maria e pronto…, ele vai-se embora!
— E pelo papá? — insistiu Norina cabisbaixa, acariciando-lhe as mãos.
— Pelo papá?! Mas..., pelo papá não rezo, porque ele não morreu, já te disse! Caramba, mamã, realmente és bem esquecida! — relembrou Verónica aborrecida.
— Eu bem queria ter a tua fé, filha, mas, infelizmente, não tenho, sobretudo desde que me chateei com Deus e deixei de rezar o terço e falar com Ele — confessou resignada.
— Faz como eu, mamã, sonha com o papá! Vá!, sonha! Apaga a luz e sonha que ele é um anjo colorido e vai surgir na escuridão! Sonha, mamã! Se soubesses como é fácil sonhar e como sonhar faz bem! Sonha, mamã! — repetiu radiante, arregalando os olhos e sorrindo os contagiosos raios da luz da fé que ardia no seu coração de oiro.
— Está bem, filha! Tens razão, esta noite vou sonhar! Vá, dorme! Boa-noite! — prometeu a mãe, beijando-a demoradamente na testa.
— Amanhã contas-me!
— Se conseguir...
— Claro que vais conseguir, mamã! Boa-noite e... Oh, muitos sonhos cor-de-rosa! - exclamou jovial, empiscando e cruzando os dedos para desejar sorte.
Sorrindo, Norina apagou a luz e, perscrutando obstinadamente a escuridão, ficou com a sensação que nos olhos da filha continuava a brilhar a estrela da fé e a esperança deve ter renascido naquele coração contristado, porque o peito se embalou como antes, suscitando-lhe o desejo de fazer amor naquele instante. Certificando-se que as portas estavam trancadas, a Norina foi estender-se toda nua na cama, sonhando como a filha lhe pedira, e o Arménio veio ter com ela, beijando-a e amando-a como nunca. E, arrebatada, sentiu a força do sonho invadir e ressuscitar-lhe a libido esmorecida nas suas entranhas, donde jorrou a incomensurável felicidade. Depois, entregando a corpo e alma ao príncipe de luz, prosseguiu a quimérica viagem pelos confins do infinito, adormecendo agarrada ao travesseiro, virada para o seu angélico companheiro...
De manhã, assustada pelos latidos do Leão, balbuciou inconscientemente:
— Vai, ver quem é , Arménio!
“ Oh, não! Por favor, vai tu, que eu estou com sono! ”— resmungou o anjo de luz.
— Arménio!!! Não te vás, Arménio!!! — gritou desesperada, apalpando o lençol.
E o cão desatou a ladrar assustado, obrigando-a a saltar para fora da cama. Foi então que se apercebeu que estava nuazinha e, sorrindo feliz, se vestiu à pressa, acalmando o Leão. Depois, esfregando os olhos, abeirou-se suavemente da porta.
— Abre! Sou eu, Norina! — bradou serenamente a professora, sossegando-a.
— Ah!... És tu, Carminda? — retorquiu bocejante, abrindo a porta.
— Por onde andaste esta noite para faltares às aulas e estares assim cheia de sono?
— Ai é verdade, as aulas! Puxa!, mas como é que eu havia de me esquecer! — constatou desolada, beijando a amiga.
— Estive à tua espera; fui ao liceu saber de ti e se o Max…
— Oh! Como é que havia de faltar às aulas?! — exclamou aborrecida.
— Ei, também não é preciso ficares com essa cara: de certeza que há lá quem tenha mais faltas que presenças, não há? — referiu a professora, batendo-lhe na espádua.
— Pois há, mas eu queria tanto passar o ano sem faltas! — disse a Norina decepcionada, acariciando o cão, que saiu para a rua, deixando-a fechar a porta e entrar para a cozinha.
— Diz ao Max...
— Não, Carminda, ontem não tinha francês. É hoje!
— Seja como for, então hoje vais e dizes-lhe que te sentiste mal e que, além disso, tinhas a filha doente. Leva a factura da consulta e mostra-a se alguém duvidar — sugeriu a docente.
— Senta-te, Carminda, que a Verónica ainda dorme.
— Será que a dorminhoca...
— Dorminhoca não, madrugadora! — emendou Verónica eufórica.
— Oh! Até parece que a menina dormiu com o namorado! — bradou a professora maliciosa, empiscando à Norina.
— E não se engana, mas como a senhora é muito curiosa não lhe conto nada! Nada, ouviu? — repetiu enérgica, pousando a pasta dos livros num canto da mesa.
— Ai é, menina rebelde?! — indagou Carminda frustrada, de beicinho queixoso.
— E lá recomeçam os bebés! — desabafou a viúva, mexendo o caldo à filha.
— Hum! Mas coisa mais esbranquiçada é essa, Norina? — interpelou a professora intrigada.
— Sopa de farinha para a doentinha.
— Ui!, assim tão branca e pegajosa?! E é boa?
— Com açúcar escuro é uma delícia! Ora prova, Carminda!
— Ui!, isso mais parece...
— Ora essa!.. Leite das vacas, não?! — respondeu Verónica convicta, bufando à sopa.
— Dos bois não, mas das vacas... — duvidou maliciosa, rindo descaradamente.
— Diga lá! A senhora professora está boa da cabeça, está? Ah, essa é boa! Leite dos bois!... Só se for dos de Valpaços! — exclamou risonha, pondo o dedo na testa e empiscando à mãe.
— Dêmo-lhe o desconto, filha — sugeriu a Norina, servindo a sopa de farinha à professora, que começou a imitar a aluna, remexendo aquela pasta viscosa e açucarando-a.
— Hum, Norina, esta mixórdia até é gostosa! — bradou maliciosa, mergulhando a ponta da língua na colher da sopa.
— Mixórdia, Carminda?! — repreendeu a cozinheira ofendida com a depreciação.
— Mixórdia não, delícia, Norina! — corrigiu a gulosa, lambendo os beiços.
— Ah! a mixórdia acabou! — bradou irónica a cozinheira, mostrando a panela vazia.
— Diz, mamã, tu já tiveste uma lambona assim aqui em casa? — traquinou Verónica risonha, afastando-se com o prato na mão para que a esfomeada não lhe metesse lá a colher.
— Lambona, filha?! Uma loba!!! — exagerou Norina maliciosa, fugindo para o corredor.
— Foge, foge, que eu logo apanho-te! — ameaçou a professora, corando como um pimento e rindo a gargantas despregadas como uma tola.
— Quando quiser, podemos ir, senhora...
— Vamos lá ver o respeitinho! — repreendeu Carminda, receando que a malícia, que se escondia nos olhos e na ponta da língua da aluna, degenerasse em ofensa.
— Quando quiser, podemos ir, senhora professora — repetiu Verónica séria e no mais respeitoso dos tons.
— Muito bem, então vamos, menina. Obrigado pela... delícia e até logo, Norina! — gritou eufórica, espreitando para o interior.
— Vem almoçar com a Verónica que eu faço-te mais e conto-te por onde andei esta noite — convidou a Norina do corredor, enxugando o rosto e os cabelos.
— Sem dúvida! Até logo! — confirmou Carminda, empiscando à aluna.
— Até logo, mamã!
— Até logo! — respondeu a Norina, sorrindo para o Leão que, depois de ir dar a sua girata matinal, surgia ofegante a esticar a língua esfomeada.
Depois de cuidar da a sua toalete, a viúva apressou-se a beber um copo de leite e a arrumar a casa, cogitando no sonho estranho que tivera e a fizera passar tão bem aquela noite, que a magia da quimera sublimara por encanto, transformando a tristeza inicial na mais inefável dos dois últimos anos, como se o sonho fosse a chave da felicidade.
Perto do meio-dia, encerrou-se na cozinha e, ligando a Rádio Renascença, começou a trautear as canções que o António Sala e a Olga Cardoso, animadores do célebre programa Despertar, iam lançando entre dois concursos; precisando de batatas, desceu à garagem e perdeu a hora do Angeles; foi então que, dando com os olhos no calendário, se apercebeu que era terça-feira, 13 de Maio, dia de peregrinação a Fátima e, inexplicavelmente, começou a rezar pelo pais, pelos tios, mas pelo marido não, sem, contudo reflectir nesse pormenor instintivo. Só muito depois, pensando bem, é que se lembrou de que esquecera do Arménio e, recordando as palavras da filha, sorriu simplesmente como se ele estivesse à sua frente, nada mais; e, retomando a sua tarefa, deixou-se enfunar novamente pelo romantismo das melodias que ia retendo ao acaso no gravador.
Por volta da uma da tarde, posta a mesa, desceu a ver o que estava na caixa do correio, descobrindo uma carta do Chico para a Verónica, e, apesar da curiosidade, não a abriu, até porque não tinha tempo para a ler e recolar: elas já lhe acenavam na curva da Timpeira, meteu então a carta ao bolso do avental e, retribuindo os acenos, esperou-as pacientemente.
— Ui, vem carregada, Carminda!
— Como de tarde não há aulas, aproveitei para corrigir os exercícios dos alunos ao soalheiro na varanda, enquanto me contas por onde andaste a noite passada — explicou a professora, desfazendo-se do saco plástico da mão esquerda.
— Irra!, afinal as letras também pesam! — enfatizou Norina, tomando o peso aos cadernos.
— Houve correio, mamã? — perguntou Verónica, vendo a caixa aberta.
— Sim, filha, uma carta para ti.
— Aqui no meu bolso, mas calma! Lê-a depois do almoço, sim?
— É do Chico? — volveu a filha impaciente, procurando-a no avental.
— Porque? Esperavas carta dele? — retorquiu a mãe, empiscando à professora.
— Claro! De quem havia de ser?!
— Sei lá! Se calhar andas a esconder-me algum genro! — bradou maliciosa.
— Não sejas tonta, que já tens idade, mamã! — ripostou Verónica séria, abortando os risos galhofeiros que as adultas trocavam nas suas costas.
Congeladas por tão súbita e acérrima frieza, as senhoras calaram-se e adiantaram o passo, deixando a impertinente a mimalhar o Leão ululante, que, rodeando-a e agitando a cauda, lhe fitava obstinadamente os olhos radiantes. Porém, compenetrada a ler, a Verónica não lhe ligava patavina. Finalmente, dobrando a carta e sorrindo exuberantemente, a menina abaixou-se e, limpando-lhe o pêlo luzidio, beijou-o afectuosamente na testa.
— Verónica!!! A comida está na mesa!!! — cantarolou a mãe da varanda, chamando-a.
— O Leão não tem água na malga! Comam que eu já vou, mamã!
Pousando os livros nas escadas, Verónica encheu a malga de água e, pondo-a à sombra da casota para não aquecer, subiu para almoçar, escondendo a carta entre a blusa e a barriga, mas à mesa, nem uma palavra: hipnotizados pelo horizonte, os seus olhos radiantes pareciam em viagem.
Depois do almoço, a nefelibata trancou-se no seu quarto do sótão e, fascinada pela mensagem, adormeceu, ignorando as confidências que as segredeiras cochichavam ao soalheiro, na varanda virada para o rio.
— Porque será que a Verónica está assim tão enigmática, Carminda? — questionou a viúva, depois de revelar à amiga aquele sonho estranho da véspera.
— Se pudéssemos ler a carta... — arguiu a professora, ainda impressionada com a confissão da Norina, cogitando e puxando pela massa encefálica.
— Espera, que eu vou ver!
E, erguendo-se, Norina foi vasculhar em vão nos livros da filha, voltando de mãos e cabeça a abanar; depois, pegando numas revistas e chamando a Carminda, fechou a porta à chave, desceu as escadas e, adiantando-se sempre escoltada pelo Leão, esgueirou-se pelo meio dos bardos, obrigando a confidente a uma corrida até ao rio, onde passaram a sesta.
Às quatro da tarde, porém, sentindo-se espiadas e aborrecidas com os latidos do cão, que não parava de ladrar para a outra margem, voltaram para a vivenda e, dando com a Verónica a ver televisão, sorriram-lhe e chamaram-na para tomar o café com elas; ao pôr do Sol, a estudante mudou de roupa e, pegando nos livros, lá foi com elas e o seu fiel guarda-costas para o liceu; e, absorvidas pelo sonho e pelo conteúdo da carta, ninguém se lembrou que a Norina fazia vinte e oito anos naquele dia.

Entretanto, na Almodena, enquanto que, o Faia levava uma vida solitária e reclusa, controlado pelos pais desgostosos que o diziam de juízo perdido a quem ousava criticá-lo, no solar a Marta contava pelos dedos da mão o dia da tão desejada maternidade, mas, preguiçoso, o bebé parecia comprazer - se no ventre.
Na madrugada de 24 de Maio, porém, sentindo uma dor forte, queixou-se ao marido, que, julgando chegada a hora da assustadora paternidade, a transportou ao hospital. Na sala de partos, vendo a mulher contorcer de dor e perder as águas, Júlio quase desmaiou, mas a parteira, pedindo-lhe desesperadamente que amparasse e ajudasse a esposa, comoveu-o tanto que, acariciando a Marta, ele não ousou fugir dali como queria. Porém, mal viu a fenda genital da esposa dilatar-se cada vez mais sob a pressão da cabeça do filho começar a sair, encheu-se de coragem e começou a dar eco às palavras da médica puxa-puxa!, isso-isso!, mais-mais!, puxa-puxa! E, de repente, todo aquele alarido foi interrompido pela aparição de um pilinhas todo roxinho, a quem uma auxiliar se encarregou de dar uns açoites nas nádegas, meter um tubo no nariz e fazer gritar uá-uá! uá-uá!, comovendo o pai, que quis pegá-lo.
— O senhor Júlio não quer dar-me o que está lá dentro, pois não? — questionou a médica.
— Ou-ou-outro?! — gaguejou o taxista embasbacado, dando de olhos à esposa.
— Vá!, acalme-se e ajude-nos a tirar o outro!
— Puxa, Marta! Puxa, Marta, puxa! — gritou comovido, chorando de alegria e acariciando a esposa que, alagada de suor, cerrava os dentes e franzia a testa, forçando a saída do bebé.
Pouco depois, a médica segurava um segundo pilinhas para regozijo de todos; cortado o cordão umbilical, a auxiliar deitou os gémeos de bruços e ainda por lavar no regaço da mãe lacrimejante, que os beijou e os embalou até que os uás se calaram. Comovido, o pai agradeceu à parteira, acariciou os herdeiros e, beijando a esposa na testa, desabafou radiante:
— Ah! sua segredeira, agora me lembro: bem que a Verónica tinha razão!
— São bonitinhos! — exclamou a mãe orgulhosa, sorrindo feliz.
— Bonitinhos?! Marta, os bebés, quando nascem, são todos feios! — reconheceu Júlio, mirando-lhes bem a pele ainda suja e os olhitos inchados.
— Têm tanto cabelinho!
— Pois têm, mas não é russo como o da mãe! — traquinou o pai garboso, roçando-lhes levemente os dedos no cabelo.
— Júlio!!! — repreendeu a mãe ciumenta.
— Escusas de te arreliar, que eles saem ao pai!
— Só se for a serem feios!... — ironizou Marta, esmorecendo o orgulho paternal.
— Pois, mas tu gostaste do feio...
— Vá!, dêem-nos cá os meninos e pensem nos nomes, enquanto nós os lavamos! — disse a parteira sorridente, acompanhada da auxiliar.
— Que nomes lhes havemos de pôr, Marta?
— Ah, meu menino, eu fi-los, agora tu...
— Bom, um tem que ser Júlio como o pai, mas o outro...
— Sei lá! Luís, Rui, António, Manuel, Alfredo..., o que tu quiseres, Júlio.
— Pois, se fosse menina era Júlia... E por falar em menina, a minha irmã tem que ser a madrinha do Júlio, e a do outro?
— A do outro é a Verónica, que me dou muito bem com ela e tem muito jeito para cuidar de crianças — explicou Marta, enquanto a médica lhe retirava a placenta.
— Então podíamos chamar-lhe Arménio, como o pai dela! — sugeriu o taxista tristonho.
— Ai a Verónica vai ficar contentíssima! E se fosses trazer os meus pais?
— Não, primeiro deixa lavar os bebés... Bebés?! E a roupa do Arménio?
— És bem tolinho, Júlio, pensas que eu me esquecia da roupa? Vai ao carro buscar a minha mala que está lá tudo — disse Marta, sorrindo ao marido, que a beijou na boca de fugida e executou prontamente a ordem.
Ao meio-dia, quando tocou para o fim das aulas, o táxi estava diante dos portões da escola; reconhecendo-o, a Verónica correu a saudar o Júlio e fitou a irmã dele.
— Olá! Tu por aqui, Sara?
— Entra, Verónica, vamos ver os nossos afilhados.
— Os nossos afilhados?! — indagou aérea, perturbada pelo alarido dos colegas. — Ah! a Marta já teve os gémeos! Parabéns, Júlio!
— Obrigado, comadre!
— Senhora professora, eu vou ao hospital ver o meu afilhado! — gritou Verónica radiante, acenando à Carminda.
— Ei, esperem e levem-me até ao S. Pedro! — berrou a mestra de livros debaixo dos braços.
— E quem avisa a minha mãe? — volveu a aluna com um pé dentro do táxi.
— Tens razão, podes ir que eu avisarei a tua mãe — concordou a professora, acenando-lhes.
E, deixando passar os últimos alunos, o táxi arrancou a todo o gás, levantando uma nuvem de poeira que obrigou a Carminda a esconder-se atrás de uma árvore para se livrar do pó. Sentando-se no muro da escola, a mensageira esperou que a Norina aparecesse na curva e foi ao encontro dela, avisando-a do sucedido. Comovida com a feliz novidade, a viúva não conseguiu reter as lágrimas da felicidade e chorou logo ali; sensibilizada, a professora deu-lhe um lenço de papel para enxugar as lágrimas e ofereceu-se para almoçar com ela.
Às duas da tarde, a corajosa Marta recebeu as felicitações de toda a da família, que, sabedora do parto, acorreu ao hospital para ver e tirar as parecenças aos gémeos; perto das três chegou a Norina com a filha e o Júlio, que, orgulhoso e feliz, não só se consolava de fazer fretes de borla, mas também não parava de distribuir convites para o baptizado dos filhos.
— Parabéns, muitas felicidades e oxalá que os meninos tenham nascido em boa hora! — disse a viúva, beijando a companheira das mais tenebrosas horas de solidão.
— Obrigada, Norina! Ah, se tu soubesses como estou feliz por realizar este meu sonho de criança! — exclamou Marta radiante, agarrando-se ao pescoço da confidente da infância.
— Pois é, quando brincávamos com as bonecas, no adro da igreja, tu querias sempre fazer de mãe! — recordou nostalgicamente a soluçante Norina.
— Ei, deixem-se de choraminguices, que a enfermeira está a mostrar os meninos! — avisou Verónica, correndo a juntar-se às outras pessoas aglutinadas diante dos postigo.
Enxugando as lágrimas, a Norina sorriu à amiga e foi tirar as parecenças aos meninos. Como as avós curiosas não parassem de lançar beijinhos aos dorminhocos, o pais resmungou:
— Vá!, saiam daí suas corujas que ainda me cospem e acordam os meninos!
— Ei, deixem-mos ver que a madrinha também direito! — reclamou Verónica, forçando uma passagem e constatando que toda empinada não via nada.
— Ah! a madrinha é esta sirigaita! — exclamou orgulhosa a senhora Soledade, acariciando os cabelos à refilona e cedendo-lhe o lugar.
— Os nossos afilhados são muito giros, pois são, Sara? — adiantou Verónica toda emproada, empiscando à mãe, que estava muito calada à espera de vez.
— Pudera!, os meus sobrinhos têm muito a quem sair!
— Ah! — tossiu o Júlio, baixando-se e escondendo o riso.
— Realmente são muito lindos, mas eu ainda não sei como se chamam os meninos! — volveu a Norina, mal avistou os gémeos.
— Júlio e Arménio! — respondeu orgulhosamente o pai, batendo no vidro para os despertar.
— Que tem, mamã? — questionou a Verónica, vendo a mãe emocionar-se.
— Nada, filha, os meninos são bonitos e os nomes também! — respondeu a Norina confusa, retirando-se para enxugar os olhos.
Olhando-as os presentes não disseram nada, respeitando-lhe a emoção.
— Coitada da Norina, ainda não se refez da morte do marido! Com uma casa tão bonita e uma mulher assim, o Arménio teve bem pouca sorte! — comentou o senhor João entristecido, mirando a viúva que desaparecia amparada pela filha no corredor da enfermaria.
— Realmente o rapaz teve pouca sorte! — apoiou condoído o senhor António, pai do Júlio.
— Vocemessê não conhecias o Arménio, pois não? — volveu o sogro do taxista.
— Não, mas fiquei muito triste, quando ouvi falar da morte dele. Dizem que saltou pelos ares em mil pedaços...
— Olhe, senhor António, se quer que lhe diga, eu já nem sei em quem acreditar: nos que dizem que nem alma se aproveitou e os franceses meteram qualquer coisa no caixão para fazer peso ou nos que dizem que foi enterrado sem pernas, sem braços... Oh!... Enfim, uma tristeza que nem é bom recordar!
— Vá!, deixem para lá essas coisas que hoje é dia de festa! — interferiu o Júlio.
— Então pagas-nos um caneco, filho?
— Dois, três, os que o pai quiser!
— E às mulheres, o que o meu compadre paga? — retorquiu a despercebida Sara, puxando o braço ao irmão e sorrindo à mãe, que falava com a senhora Soledade.
— Um sumol, um galão, sei lá!, um copo de jeropiga se quiserem apanhar a piela.
— Ei!, apanhar a piela não, mas ficar animada!...
— Olha, chamar aquelas corujas que os meninos abriram os olhos! — ordenou Júlio, sorrindo orgulhosamente meigo e lançando um pst! aos filhos.
Alertadas, as avós apressaram-se a rever e a mimalhar os netinhos, enquanto os avós, encostados à janela cochichavam a respeito do trágico desaparecimento do emigrante vila - realense; relembrando ao sogro da filha o brutal ataque do Leão ao passador no quinchoso da Almodena, o senhor João não pôde deixar de comentar a baixeza do miserável e de confessar que ele e o Júlio chegaram a temer o pior pela Marta e pela Norina, as mulheres que o fanfarrão ainda tentara gozar, quando era mais novo e parecia bom rapaz.
Depois de muito hesitar durante a semana em que esteve internada, Marta convenceu o marido a marcar o baptizado dos filhos para os fins de Agosto, para lhe dar tempo de preparar as coisas como devia ser, dado que a Norina e a Sara, atarefadas com os exames do 1º ciclo, não a podiam ajudar e, além disso, tinha muito medo de deixar a velhota dela sozinha no solar com os gémeos, ainda por cima sabendo o maluco do Faia a quinhentos metros. O taxista, ressentindo a insegurança e a desconfiança da esposa, não só concordou com a sugestão, como também começou a pensar em alugar uma casinha na vila, para fugir do diabo, a quem só lhe apetecia acabar de vez com a raça.

Na sexta-feira 13 de Junho, dia de Santo António, patrono de Vila Real, as festas fizeram afluir à cidade correr milhares de forasteiros foliões, uns para se divertirem, outros, poucos, mas ruidosos, para participarem nas manifestações de apoio ao governo de Vasco Gonçalves, o primeiro-ministro, a quem a esquerda revolucionária se dedicava corpo e alma para manter no poder; entretanto os excessos de zelo do Copcon, cão de guarda da Liberdade, interpelavam a consciência dos opositores à ordem vermelha, que, apercebendo-se do perigo que representava o totalitarismo comunista, começaram a contestar abertamente as opções do Gonçalvismo, a que, nos diversos corpos das Forças Armadas, alguns capitães e majores não permaneciam indiferentes. Jaime Neves, capitão e chefe dos Comandos da Amadora, a elite do exército português, surgiu naturalmente na ribalta das hierarquias militares, assim como o de outros graduados que, alheios às guerrilhas de bastidores, esperavam pacientemente a hora que o destino lhes havia marcado. Doente, Sá Carneiro estava internado em Londres, deixando o PPD entregue ao professor Emídio Guerreiro, um resistente fascista que lutara ao lado das brigadas internacionais que combateram em vão o general Franco, na guerra de Espanha. Sob a capa do instaurado serviço cívico, os esquerdistas da UDP e do MRPP tentavam semear os ideais marxistas- leninistas e maoistas pelos mais recuados ermos e as mais pacatas aldeias transmontanas, onde não era bom ser-se ou dizer-se comunista.

No domingo da véspera do exame, Norina, que passara os últimos dias agarrada aos livros e adormecera quase sempre às duas da manhã, tal como Carminda que a ajudara a rever a matéria e a resolver os testes dos derradeiros anos, deitou-se cedinho, deixando a limpeza da vivenda para a filha, muito eufórica, mais pelo baptizado e o vestido que iria levar, que pela passagem para o 1º ciclo do liceu, há muito assegurada.
Na manhã daquele 21 de Julho, segunda-feira, a estudante ergueu-se antes do despertador tocar, lavou-se, vestiu umas calças de ganga azul, roçadas, e uma camisa t-shirt preta e, seduzida pelo cheiro do café, seguiu-a até à cozinha, dando com as madrugadoras Carminda e Verónica a fazerem-lhe as torradas:
— Bom dia, meninas! — bradou sorridente.
— Bom dia! A menina dormiu bem?
— Optimamente, senhora professora!
— Porque leva a t-shirt preta, mamã? Podia ter vestido a amarela, a branca, a verde...
— Porque não, ir de saia para que os professores e os colegas, que não pararam de me cobiçar e despir com o olhar durante o ano, me vissem finalmente as pernas? — retorquiu prontamente, sentando-se na cadeira.
— É normal que os homens cobicem as mulheres bonitas, Norina — adiantou Carminda.
— Pois, mas eu não sou uma mulher qualquer, eu sou uma viúva!
— Tu és uma mulher livre e muito corajosa — insistiu a professora, sorrindo carinhosamente.
— A Carminda tem razão, mamã, o que passou! Há que olhar o futuro e acreditar que, se quiser de todas as suas forças, pode realizar os seus sonhos - apoiou Verónica, fitando-a seriamente e beijando-a no rosto.
— Por isso mesmo, filha: hoje tive um sonho lindo, muito lindo!
— Conta, mamã, conta!
— Estava a boiar num lago muito grande e sereno; de repente, vi um menino correr de pés nus sobre a água e tive medo que se afundasse; então, aflita, dei-lhe instintivamente a bóia para o ajudar, porém ele, sorrindo, disse-me que ali ninguém precisava de bóia e que não era numa bóia, mas numa nuvem que eu estava sentada; amedrontei-me e comecei a afundar-me, só que aquela água não afogava, porque não era água...
— Então o que era?
— Não sei, filha, talvez fosse a entrada do Paraíso, porque quanto eu mais me afundava, mais feliz me sentia.
— E depois?
— Depois, depois fui arrebatada pelos anjos de luz e, viajando a uma velocidade vertiginosa, percorri aquela imensidão branca e não encontrei quem procurava...
— E quem é que tu procuravas, mamã?
— Não sei, talvez a minha alma gémea, talvez o reflexo da minha própria imagem, por quem me enamorei e de quem me perdi no início da viagem!
— Estranho, não é, Verónica? — comentou a professora.
— Talvez não! — balbuciou a catraia confiante, sorrindo placidamente à mãe, como se tivesse a chave daquele enigmático sonho.
E a mãe, fitando-a e sorrindo também, não quis saber mais nada, porque compreendeu que a partir daquele instante não precisava de mais ninguém para seguir livremente a sua estrada; a Carminda, tolhida por aquela cumplicidade, percebeu imediatamente quão subjectiva e inconstante pode ser a felicidade de alguém, sobretudo para quem acredita que a verdade e a vida eterna é uma permanente conquista pessoal.
Apenas chegou ao liceu, Norina saudou os colegas e os professores com um sorriso e entrou confiante para a sala de aula: levava apenas um porta- lápis e um pacote de lenços de papel; duas horas depois, saía tranquila, acariciando levemente o couro do estojo; intrigada por aquele gesto carinhoso, Verónica ofereceu-se para lhe pegar nele e, abrindo-o sorrateiramente, deu com olhos na mini- foto do pai; correndo o fecho, segurou-o e começou a jogá-lo ao ar, recordando os tempos em que, menina de bibe, ele lhe fazia o mesmo.

Concluídas as provas, os alunos passaram quatro dias de angústia e de incerteza; trancada na vivenda com a filha, a Norina não sabia como matar o tempo: nem a televisão, nem as revistas, nem tampouco as prolongadas horas de sesta a conseguiam distrair para que os segundos de exasperação lhe parecessem uma eternidade; sem nada que fazer, pensou fazer uma visita à Marta e embalar-lhe os meninos, mas logo surgia a imagem arrepiante do diabo ensanguentado a tolher-lhe o pensamento e a coragem; resignada, começou a remexer na latinha das recordações, onde guardava as poucas fotos que tinha da família e, ao vê-las as lágrimas saltaram-lhe das órbitas; chorou pelos pais, sobretudo pela mãe, morta naquele 13 de Maio de 1947, pouco depois de ela ter visto a luz do dia, quando soava o toque das Trindades, como se Deus a tivesse chamado numa santa hora; chorou pela tia Elvira e o tio Rodrigo, que lhe deixara quase tudo, e chorou pelo Arménio, que, casando com ela, a livrara das manápulas do diabo, que mais cedo ou mais tarde, a bem ou a mal, a teria desonrado.
No domingo ao pôr do Sol, sentindo sono, largou a Verónica diante da televisão e deitou-se para recuperar as horas de insónia das noites transactas; os olhos começavam a fechar-se, quando a mendicante da Carminda lhe entrou airosa pelo quarto dentro.
— Champanhe pá doutora! — gritou cambaleante e espalhafatosa, atirando-se para a cama.
— Oh! Oh! A gaja está borracha! — bradou atónita, fugindo dela.
— Borracha não, só tenho um grão na asa! — gracejou a bêbeda, soltando um arroto mestre.
— Um balde, Verónica, um balde!!! — berrou Norina assustada, temendo pelas colchas.
E agarrando rapidamente a ébria pela cintura, pô-la às costas, correndo a levá-la para o quarto de banho; depois, como ela não se segurasse, sentou-a numa cadeira e esperou que a filha lhe trouxesse o balde.
— Segura-o aí debaixo da boca desta tonta!
— A mãezinha que vai fazer?
— Estás a segurar? Segura bem, Verónica! — avisou Norina, antes de meter dois dedos na garganta da embriagada, obrigando-a a vomitar imediatamente.
— Ui que cheiro! Ué!!! — exclamou a ajudante, virando a cara para evitar que o azedume e o mau hálito lhe entrasse logo para o nariz.
— Uá! Uá!! Ai! — arrotava Carminda, agoniando-se toda e expelindo aquele fétido desperdiço pela boca toda lambuzada.
— Mais, mais, sua borrachona! — berrava-lhe Norina, batendo-lhe nas costas.
— A senhora professora não tem vergonha?
— Ah! Ah! — exultou a bêbeda, arrepiando-se toda e chorando sem querer.
— Pronto, filha, despeja lá essa porcaria na sanita e dá a descarga!
— Desculpa, mas...
— Nem mas, nem meio mas! Cabeça que não tem juízo... Agora despe-te, mete-te debaixo da água fria e toma um bom banho que cheiras mal.
— A mãe ainda precisa de mim? — perguntou Verónica, apertando o nariz .
— Não, filha, leva o balde, que eu cá cuido dela.
— A senhora professora também nunca mais ganha juízo! — repreendeu triste, vendo a mestra despir-se e limpar a boca e os lábios à t-shirt.
— Desculpa, Verónica! — balbuciou a professora envergonhada.
— Vai, filha, que eu cá cuido dela! — disse a mãe, segurando a amiga.
E fugindo daquele ar viciado, a órfã fez o que a mãe lhe pediu, sentando-se depois diante da televisão a ver o fim do filme; no quarto de banho, a Norina abriu as torneiras a toda a força e, temperando a água, ajudou a professora a lavar-se; depois, vendo-a mais equilibrada, foi à cozinha trazer-lhe um copo de água com açúcar para lhe adoçar a boca.
— Bebe que te faz bem, Carminda!
— Obrigada! Tu és um amor, Norina! — murmurou a professora corada.
— Está calada que não sabes o que dizes!
— A sério!...
— Olha, lava-te como deve ser e ganha juízo que já tens idade!
— Norina! — insistiu a professora.
— Ah!!! — resmungou a viúva, virando-se enervada.
— Ficaste bem!
— O quê?! Fiquei bem?!
— A sério! O Max disse-mo!
— Oh! Carminda, Carminda! Hum!!! — exultou a estudante radiante, beijando inadvertidamente a bêbada na boca e gritando eufórica: — Jeropiga, Verónica, jeropiga!!!
— Oh! Oh! A bebedeira pega-se! — comentou a pequenita perplexa, perguntando irónica: Jeropiga?! Por alma de quem?
— Fiquei bem, Verónica, fiquei bem! — bradou a mãe felicíssima.
— Ah!, então a Carminda tinha razão! Champanhe com gelado é melhor!
— Bom, por esta vez estás perdoada, mas para a próxima vou deitar-te com o Leão! — ironizou a Norina, pegando no chuveiro e tirando-lhe a espuma.
— Ui que bom!
— Vá, acaba e seca-te, enquanto eu te vou arranjar um pijama para não ficares com essas mamonas e essa parreca ao léu, sua borracha!
— Por favor, não batas mais na ceguinha! — implorou a Carminda, lavando os seios.
Voltando com a toalha, a Norina deu com a professora a pavonear descomplexadamente a sua nudez, num verdadeiro strip-tease diante do espelho, e atirando-lha raivosamente para cima da cabeça, ironizou :
— Oh! esta bêbeda pensa que está num cabaré! Ei! pára lá com isso que aqui não há homens, sua depravada!
— Mas há mulheres! — sussurrou a professora cambaleante, querendo agarrar-se a ela.
— Chega-te para lá que cheiras mal, sua... Carminda!!! — repreendeu enérgica, furtando-se à irreverente que, sanguessuga esfomeada, a queria beijar.
— Norina! Eu gosto de ti, Norina! — balbuciou a ébria, agarrando-se à mãozeira.
— Olha, veste-te, bebe água, muita água, e quando estiveres com juízo chama! — gritou-lhe a viúva confusa, trancando-a no quarto de banho.
— Norina!!! - berrou a choramingueira, batendo desesperadamente na porta.
— Bebe água, Carminda, bebe água!
— Oh! então já não quer a jeropiga, mamã? — perguntou Verónica perplexa de garrafa na mão, espreitando curiosa.
— Claro que quero! Então por causa daquela maluca eu não havia de festejar?!
— Dê-lhe o desconto, porque a senhora professora é muito amorável connosco na escola! Coitada, ela até é bonita, mas se calhar ainda não encontrou ninguém que gostasse dela! — retorquiu a mocinha tristonha, pedindo à mãe mais compreensão para a pobre Carminda.
— Se calhar! Bom, e tu não me dás os parabéns?
— Ah, desculpe, mamã! Parabéns! Mil parabéns! — exultou Verónica, beijando o rosto que a mãe lhe oferecia orgulhosamente.
— Obrigado, filha! Sem ti e sem a Carminda...
— Está a ver? Vá!, perdoe-lhe lá, que ela é muito amorável!
— Então dá cá a garrafa e vai abrir-lhe a porta.
— O quê?! A mamã encerrou-a no quarto de banho?!
— Claro, cabeça que não tem juízo o corpo lho paga!
— Carminda!!! Carminda!!! — bradou a órfã eufórica, correndo para o banheiro.
— Não abras, Verónica, não abras! — gritou a professora, encostando-se à porta.
— Porquê? A minha mãe não a trancou por mal: só estava a brincar consigo!
— Pois, é o que tudo o mundo faz! — choramingou desgostosa, arrotando e soltando um ai.
— Mas não, senhora professora, mas não! Na escola toda a gente gosta de si.
— Oh! Tu dizes isso para me consolar, mas não é verdade!
— O quê?! A senhora acha-me com cara de mentirosa? A senhora pensa que, se eu ouvisse alguém a dizer mal de si, não lho diria imediatamente? Ai, Carminda! — exclamou a aluna zangada, trancando-a novamente.
— Isso, dá mais uma volta à chave e leva-a contigo!
— Ai é? A menina não quer sair daí? Ainda bem! Olhe, então beba muita água, que eu e a minha mãe não precisamos de si para despejar a garrafa de jeropiga! — desabafou Verónica, dando a volta à chave, mas em sentido contrário.
— Verónica, desculpa, Verónica!
— Beba água, porque cabeça que não tem juízo o corpo lho paga! — volveu filosofal, deixando-a desdenhosamente só.
Resignada, a professora vestiu-se e cumpriu religiosamente o que ambas lhe pediram, bebendo e vomitando, bebendo e vomitando e mergulhando a cabeça na torneira até que se sentiu fresca e sem tonturas; depois de lavar raivosamente os dentes durante mais de três minutos, limpou-se, penteou-se e perfumou-se, vestindo a combinação que a Norina deixara pendurada no cabide; apercebendo-se que a fechadura estava aberta, encheu-se de coragem e foi ter com as festejadoras, a quem pediu simplesmente uma aspirina e um biscoito, que mordeu parcimoniosamente, enquanto o comprimido efervescia no copo...


Continua em Capítulo XIII

LMP - Luxemburgo 1984 - Lud MacMartinson

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