Capítulo XV
Naquela noite, quase ninguém dormiu: enquanto que, em Paris, mãe e filha temiam fechar os olhos, com o medo de que o sonho lindo, em que as suas almas viviam, voltasse à realidade e se transformasse num pesadelo cruel para os seus corpos martirizados, em Macôn, matutando com os seus botões, a Maria e a Zélia, desconfiavam que os maridos lhes tivessem escondido a real natureza do passador da Almodena, sobre quem recaía a suspeição pela tragédia, tão bizarra sempre fora a sua atitude.
Quando a aurora desta quinta-feira, 7 de Agosto, despontou sobre a capital francesa, Norina, cansada de tanto adiar o sono apoquentador, sucumbia a último assédio dos remorsos, adormecendo a olhar para a filhinha, que dormia com a felicidade estampada no rosto, embalada pelos assobios ressonantes que se escapavam do quarto contíguo ao delas, onde descansavam os conterrâneos.
Às nove horas, apenas dobrou a esquina da rua que desembocava no terreiro diante da prisão, elas foram imediatamente rodeadas por um batalhão de jornalistas, que não se cansaram de tirar fotos e lhes fazer perguntas, tentando desenfreadamente obter delas a confidência com que matracariam o público naquele fim de semana. Amparadas e protegidas pelos conterrâneos, que repeliam os teimosos do melhor que podiam, Norina e Verónica lá foram caminhando por entre as alas e encolhendo os ombros, tentando alcançar os portões da prisão para lá se refugiarem. Vendo-as tão assediadas, o director correu a abrir-lhes as portas da prisão e a dar-lhes guarida no átrio dos visitantes, dando com os olhos num casal e dois senhores de aspecto distinto que lhes sorriam como se já os conhecessem há muito tempo.
— Bom dia, D. Norina! Eu sou o Fortunato Galela do Fiolhoso e estes senhores são o patrão do seu marido, Monsieur Paraffini e Monsieur le Député Lavoisier du Doubs! — disse o transmontano, cumprimentando-a e apresentando-os.
— Muito prazer em conhecê-los e muito obrigado por terem vindo tão depressa! — agradeceu acanhada, estendendo-lhes a mão e virando-se para o Francisco para que traduzisse.
Depois das apresentações, o director chamou-os à enfermaria, onde o prisioneiro era examinado pelo chefe dos médicos. Correndo a beijar a mão ao pai, Verónica perguntou:
— Dormiste bem, papá?
E, sorrindo, ele meneou negativamente a cabeça.
— A mamã também não. Ficou todo o tempo de olhos abertos a pensar em ti, mas eu dormi como um anjinho! Ah! Tive um sonho tão lindo, papá!
Tacteando os cabelos da filha, Arménio virou-se para lhe beijar o rosto e logo as lágrimas lhe saltaram das órbitas, comovendo os visitantes. Abeirando-se dele, a esposa beijou-o na boca e murmurou baixinho:
— Pronto, não chora mais, meu amor, que o pior já passou. Se Deus quiser, ainda recuperarás a fala e a visão para veres como a Verónica está linda…
— E a mamã também, papá! Sabes, a tua Norina não teve outro homem, apesar de não acreditar que ainda estavas vivo, pelo menos era o que ela me dizia. A mãe dizia que não era capaz de amar mais alguém…
— Verónica! Deixa o papá tranquilo, filha!
— Estão aqui, pelo menos, dois senhores e uma senhora que te conhecem. Olha, para que o senhor director saiba que tu estás inocente, eles vão pronunciar o teu nome e uma ou duas palavras e se tu reconheceres a voz deles aperta-me a mão, sim?
E o pai meneou afirmativamente a cabeça.
— Arménio, conheces o padre? — perguntou um.
Mexendo os dedos, o prisioneiro pediu com que escrever. Vendo o gesto, o deputado tirou do bolso uma agenda de função e uma esferográfica e ofereceu-os à Verónica, que a meteu na mão do pai, dizendo:
— Escreve lá então o nome dele.
E as palavras Francisco e Serra apareceram na folha.
— E eu sou portuguesa ou francesa?
“Francesa! ”— gatafunhou lentamente, acrescentando: — Como estás, Martine?
— Bem, Arménio!
— Olá Portugallo!
“ Merci, patron! ”
— Como se chama o teu patrão, papá?
“ Paraffini ” ―
— Ainda te recordas de mim, Arménio?
“ De ti e da Martine, claro! Obrigado por tudo, Fortunato! ”
Entretanto, surgindo na enfermaria, o juiz pôde constatar que o prisioneiro era apenas mais uma vítima daquele hediondo atentado da rua das Rosas, rapidamente chegando à conclusão de que a confusão se devera à similitude do apelido e do nome próprio do emigrante, Arménio Sala, o que fizera dele um perigoso activista da organização terrorista SALA — Secret Army of Liberation of Armeny — que lutava pela independência do povo arménio e pelo reconhecimento internacional do genocídio contra ele praticado pela Turquia no início do século XX.
Depois de conferenciar com Maître Fournier, a quem aconselhou a introduçãodo pedido de revisão do processo e a consequente indemnização, o juiz assinou a autorização de saída, pedindo ao director que lhe fizesse uma cópia da cena que a câmara acabava de filmar.
...
Os Capítulos XVI & XVII estão no segredo dos deuses, para que justiça divina seja feita... na hora que o destino marcou..
LMP - Luxemburgo 1984 - Lud MacMartinson
Nenhum comentário:
Postar um comentário