CAPÍTULO III
Até à véspera do regresso dos Estados Unidos, onde se encontrava a seguir um estágio de formação e adaptação ao F-15, o mortífero avião de caça americano, do brigadeiro da Força Aérea Júlio Sampaio que, com os acontecimentos revolucionários de 1974 e 1975, conhecera uma ascensão militar fulgurante, Rui Patrício e Cristina não aguentaram mais de um dia sem se ver. Enamorados, ora passeavam pelos pinhais e as praias do Estoril com a filha, ora iam ao cinema ou ficavam horas a fio em mútua contemplação. Entretanto, a princesinha Anilec tornara-se a graciosa fada do solar e a todos contagiava com a sua graça.
Entretanto, Rui oferecera à namorada um anel de rubis, pois só queriam ficar noivos pelo Natal e unir-se pelos sagrados laços do Matrimónio, diante de Deus e do padre Ximenes, no Verão do próximo ano, mais precisamente, no sábado 6 de Agosto de 1983, quando fizesse exactamente dez anos, dia por dia, que o destino os separou cruelmente. E, pensando bem, até parecia que o ésse do Sábado e da Sedução da primeira vez, da Separação da Segunda-feira e do Sofrimento, do Sentimento e do Silencioso Sacrifício seria Sagrado pelo Sim ao Senhor num Sábado, se o destino não fosse sacana! E foi muito naturalmente que, passando as suas noites de sábado no solar em quartos separados, os namorados tudo fizessem para se amar loucamente.
Encorajada pelo namorado, a Dra. Galvão decidira pôr os pontos nos ís ao execrando maníaco Dr. Santos sem, contudo, conseguir dar-lhe verdadeiramente à cabeça e curá-lo de vez. O tarado não escondia o regozijo que sentia com a sua maquiavélica e cínica perseguição às indolentes subalternas, demasiado submissas perante a indecorosa insolência.
Esquecido o sonho premonitório, Cris retomou normalmente as suas viagens na caixinha de fósforos, alcunha do Austin. O sonhador, esse, porém, entrava em pânico sempre que esbarrava no vermelho sangue e para que nada de mal lhe acontecesse.
Entrementes, aproveitando a contagiosa felicidade da filha, D. Susana convidara várias vezes a Sílvia, sua nora, que vivia com os pais, para almoçar com eles no solar, para a habituar a visitá-los mais amiúde, quando Júlio chegasse, o que aconteceria neste dia 16 de Dezembro, quinta-feira.
De manhãzinha, antes de sair para o hospital, Cristina quis desejar boa sorte ao pai, que iria ter o primeiro confronto futuro genro, o que os impediria, provavelmente de assistirem à chegada do Brigadeiro.
Na soleira da porta, já de bata branca, a médica lançou-lhe risonha:
― Defenda-se e não lhe faça a menor concessão, Dr. Sampaio, se não quer conhecer o gosto amargo da derrota! O meu anjo descobriu o seu ponto fraco!
― Pois, talvez, mas ainda não é hoje que o teu conquistador me baterá, filha! ― afiançou altivo.
― Engana-se, Dr. Edgar, o seu adversário não lhe dará a menor hipótese!
― A menina quer amedrontar-me ou divinizar o seu Pigmalião?
― Por amor de Deus, papá! Só espero que saiam do tribunal, seja qual for o vencedor, mais amigos do que nunca.
― Pronto, para te demonstrarmos o nosso fair play, será o vencido a consagrar seu vencedor!
― Assim sendo, até merece mais um beijinho, papá! Adeus... campeão... batido! ― ironizou a médica, entrando inocentemente no desgraçado Austin Morris vermelho sangue.
Acenando jovialmente à filha, o advogado acabou de beber o ,café observado pela Maria, criada da família há mais de dez anos, que ainda se recordava daquela noite em que os patrões, partindo para Tróia, a deixaram no solar para testemunhar a loucura da menina Cristina com o afilhado do Dr. Félix.
Às quinze horas, regressando da peleja homérica, o B.M.W turbo diesel negro surgiu pacatamente no parque de estacionamento do aeroporto. Impaciente, Cris, que se despachara mais cedo e não cessara de perscrutar o horizonte, acorreu carinhosa a consolar o namorado, que se adiantara, beijando-o na boca para lhe amenizar a amargura da derrota.
― Deixa lá, meu amor, para a próxima ganhas tu!
― Perder ou ganhar, pouco interessa, quando se fica de consciência tranquila, não é verdade, Dr. Edgar?
― Com certeza, Dr. Aguiar Fontoura! ― apoiou o advogado, empiscando ironicamente à filha.
― Parabéns, papá! ― bradou resignada, beijando-o de fugida no rosto.
― Os parabéns aceito-os, porque me bati como um diabo, mas é o Rui, perdão, é o excelentíssimo Sr. Dr. Rui Patrício de Aguiar Fontoura que os merece, Cristina ― rectificou orgulhoso, apertando a mão ao futuro genro.
― Não?! ― explodiu eufórica, atirando-se tão desavergonhadamente ao vencedor que os transeuntes até se voltaram chocados.
Entretanto, presenciando a cena, D. Susana viera consolar o marido e felicitar o genro, que se escusou, dizendo que apenas tivera a sorte de defender o lado da verdade. A professora sorriu-lhe, empiscou à filha e ofereceu orgulhosamente o braço ao marido, arrastando-o até ao bar.
Na sala de desembarque do aeroporto, a Sílvia, que era filha única, e os pais aguardavam a chegada do brigadeiro Sampaio, assentados num sofá de couro castanho, donde conferindo o quadro electrónico que afixava o número do voo, a proveniência e a respectiva hora de chegada. Simpática, Sílvia beijou os advogados e aproveitou para apresentar o futuro cunhado aos pais, que o conheciam desde os tempos do PPD ― Partido Popular Democrático ― e, graças à afinidade política, nutriam por ele uma grande admiração.
― O papá e a mamã não conhecem o Dr. Rui de Aguiar, pois não?
― Sílvia?! Filha! Mas quem não conhece o senhor Dr. Rui de Aguiar que tantos serviços prestou à Revolução, ao País e ao Partido, seguindo fielmente até ao fim o nosso mártir? Quando penso nele, não posso deixar de pensar nesses bandidos comunistas que, depois de o abateram cobardemente em Camarate, andam por aí à solta. Se eu tivesse as provas que dizem que existem... Oh, desculpe, muito prazer, companheiro ― disse o Major Manuel Contreiras, retomando os espíritos.
― O prazer é todo meu, Sr. Major! Parabéns! A sua filha tem a quem sair, D. Evira! ― respondeu o advogado, beijando a mão da senhora.
― Que mártir, paizinho?! ― inquiriu Sílvia, intrigada.
― O Dr. Francisco Sá Carneiro, filha! ― acrescentou o militar.
― O Sr. Major pode ter a certeza que dentro de quatro ou cinco anos, ou talvez menos, seremos nós, quem governará Portugal e sozinhos. A Verdade e a Fé, regadas com o sangue dos mártires, sempre acabou por triunfar, mesmo no tempo do Império Romano. Acredite, grande será o nosso triunfo!
― Que optimismo, Dr. Rui!
― Eu, senhor major, sempre acreditei tínhamos razão ao renegar o comunismo, mas agora tenho a certeza absoluta que a maioria dos portugueses seguir-nos-á rumo a um futuro risonho. Mais, a demagogia marxista acabará por ser desmascarada e reduzir-se às cinzas donde nunca devia ter saído. É que nós, Sr. Major, temos a força da alma e da verdade, enquanto eles vegetam ignominiosamente pelo marasmo da mentira, que vão arrastando, tais vampiros, pelas catacumbas do obscurantismo, mas quando a luz da verdade derreter as cataratas.. , oh, desculpem!
― Por favor continue, Dr. Rui.
― Não, o Júlio deve estar a chegar. Fica para outra vez, Sr. Major.
― Sinceramente, nunca cheguei a entender porque é que o Dr. Rui de Aguiar, talentoso e popular como é, sempre evitou as luzes da ribalta ― adiantou o Major Contreiras, interpelando o Dr. Sampaio, a quem acabava de apertar, entusiasticamente, a mão.
― Aqui só para nós, Sr. Major... ― murmurou o orador, aproximando-se do militar e olhando à sua volta para ninguém ouvisse a confidência.
― Diga, diga! ― cochichou curioso.
― Só precisam das luzes da ribalta os satélites que gravitam à volta do Sol e que, findo o espectáculo, partem cegos e às apalpadelas... São como planetas parasitas das estrelas: apesar de lhes sugarem a luz, não mudam de condição ― cochichou enfático, acenando à sua princesa que, mirando o quadro das chegadas, avisou sorridente:
― O sinal de aterragem já se acendeu!
― Parabéns! Vocês formam um casal muito bonito, Dra. Cristina ― disse emocionada.
― Muito obrigada, Sr. Major! ― agradeceu sensibilizada, apressando o passo para se juntar aos pais.
A luz verde do quadro electrónico continuava a piscar, assinalando a manobra de aterragem; os olhos da Sílvia começavam a marear-se, contagiando primeiramente as mulheres; o Dr. Edgar, esse, tentava dominar a emoção, mas acabou por deixar aparecer uma lágrima no canto do olho; o Major, orgulhoso e exigente como era, há muito que vestira a máscara da indiferença draconiana e, cicatrizado pelo sangue que os seus homens haviam derramado no ultramar, sobretudo em Angola, perdera o hábito de chorar; Rui Patrício, que, desde aquele Verão de 1973, nunca mais falara com o Júlio, apesar de ter acompanhado, pelos jornais os feitos dele, não estava nada impressionado e ia encorajando a lourinha. Uma empiscadela da D. Susana fê-lo corar e baixar os olhos. Procurando-lhos, a médica viu neles uma ponta de inquietação e, mirando-o insistentemente, obrigou-o cochichar-lhe ao ouvido estou morto por ver o Júlio para saber porque razão ele e a Silvia não são felizes.
E, obedecendo ao psch! sibilino da Cristina calou-se, fixando as escadas rolantes por onde descia espalhafatosamente o Brigadeiro Sampaio. Antecipando-se à família, Silvia lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o amorosamente até o Major dizer basta, o que fez sorrir o Dr. Edgar, mas não passou despercebido ao imperturbável Rui Patrício. Depois de abraçar e beijar os sogros e os pais, Júlio fitou a irmã, agarrou-se-lhe ao pescoço e disse orgulhoso:
― Parabéns, querida maninha!
― Muito obrigada, maninho! ― agradeceu altiva, ajeitando-lhe o boné.
― Ei, parece que estás com medo de me apresentar o cunhado!
― Achas que o Rui precisa de apresentações, Júlio? Não me digas que já te esqueceste dele?!
― Claro que não! Parabéns, Pat! Ei, se não cuidares da médica como ela merece, teremos duelo! ― ameaçou sério.
― Não será preciso, mas se acontecer, o prazer será todo meu, Júlio. Só uma coisa?
― Diz! ― disse o Brigadeiro, distraído.
― Que duelos preferes? Os de pistola ou os de espada?
― Os de pistola, porquê?
― Nada, é só para ir treinando...
― Cuidado, Júlio, este santinho maneja melhor a espada do que o Dartagnan ― ironizou a médica.
― Ai é?! ― indagou o militar, impressionado com serenidade do futuro cunhado.
― E é infalível: acerta sempre no coração!
― Não sabia a sua filha tão divertida, Dr. Edgar ― comentou o Major Contreiras, sorrindo ao ilustre advogado.
― Nem eu, meu amigo, agora, porém, cada vez mais me convenço, que, muito mais que o sonho, como diz Gedeão, é o amor que comanda a vida.
― Ou a corrói, quando deixa o ciúme transformar-se em ódio ― acrescentou Rui Patrício, filosofal, dando a mão à sua dulcineia.
E a verdade emudeceu-os por segundos. Depois foi o corre-corre a procurar as malas do oficial e a metê-las apressadamente nos carros, antes de partirem para o solar. O Júlio e a Sílvia foram no Toyota Celica deles com Major e a esposa, a D. Susana e o marido seguiram no BMW e os namorados no Austin Morris porque ainda tinham que passar pelo tribunal de Oeiras, onde o advogado deixara o Mercedes.
Durante o trajecto, ao passar sob o aqueduto das Águas-Livres, Rui teve uma sensação estranha, mas não contou nada à namorada para não perturbar a felicidade que ela trazia no olhar.
Em Oeiras, ele pegou então no Mercedes, enquanto ela conduziu, sempre pela Marginal e atrás dele, o Austin vermelho até ao Monte Estoril, onde para festejaram a chegada General até perto da meia-noite, comendo, rindo, jogando às cartas e falando de tudo e de nada ao sabor da sua intuição.
Apesar de muito solicitado, Rui, que fora alvo de um rasgado elogio por parte do futuro sogro, decidiu ouvir os outros, imitando a namorada, que permanecia muito reservada.
Depois dos sogros partirem sozinhos e os pais se deitarem, Júlio, Sílvia, Pat e Cris assentaram-se num canapé do salão e maravilharam-se reciprocamente com as suas experiências profissionais.
Às duas da madrugada, quando se deitaram, Júlio e Sílvia pareciam outros! E naquela noite o amor jorrou entre eles sem constrangimentos, medos ou tabus. Rui Patrício, depois de beijar, amorosamente a namorada, voltou a casa por não se achar, àquela hora tardia, em condições físicas e psicológicas para maravilhar como devia a sua amada, tanto mais que devia ultimar, na sexta-feira, uns preciosos detalhes jurídicos.
Dormindo apenas quatro horas, levantou-se mesmo a tempo de tomar o pequeno almoço com a filha e o padrinho.
― Bom dia, mon amour! ― bradou jovial.
― Ontem nem te vi! Por onde andaste? Os homens já inventaram o telefone, sabias, papá?
― Desculpa, esqueci-me, filha!
― Parabéns! O Edgar telefonou logo que terminou o julgamento ― disse o arquitecto, orgulhoso, abraçando-o.
― Ainda bem que a inocência acabou por triunfar!
― Isso mesmo, escuta sempre a voz da tua consciência, Rui, que este mundo está podre! O dinheiro tornou-se o deus desta sociedade materialista e, pelo que se vê, é fácil adivinhar que isto vai acabar muito mal!
― Tem razão, padrinho, mas como a salvação é um problema individual e depende do mérito de cada um de nós... Bem, ainda havemos de falar sobre este e outros aspectos espirituais com mais calma.
― Vens comigo à escola, papá? ― perguntou Cély, limpando-se.
― Não é preciso, filha! O vovô vai contigo.
― A senhora professora pergunta-me quase todos os dias por ti...
― Ah, sim?! E tu que lhe dizes, filha?
― Que tu já encontraste o teu outro mon amour e que a princesa Sirc é giríssima.
― Giríssima?!
― Sim, lindíssima! Ei, não penses que eu sou uma tonta, papá!
― Não, por amor de Deus, Cély! Mas... e o que te responde a Ester?
― Que está muito feliz por tu deixares de andar triste, por teres cortado a barba e que és bem mais bonito assim... Ah! E que a Cris é uma felizarda.
― Olha, diz-lhe que ela também é muito bonita e que um dia há-de encontrar um príncipe encantado.
― Bom, quer dizer que não vens? ― deduziu resignada, dando a mão ao vovô que, entretanto, pegara na sacola.
― Vens almoçar, filho? ― perguntou o arquitecto.
― Não, padrinho, tenho que sair com a Cristina e o Júlio.
― Então avisa a Sra. Noémia.... Ah! Mais depressa...
― Bom dia, Ruizinho! ― exclamou a governanta, toda airosa, ainda de cabelos eriçados.
― Bom dia, Sra. Noémia! Hoje só volto à noite, se calhar com alguém, ainda não sei, mas logo avisarei ― disse feliz, acenando à Cély.
― Mas o menino ainda nem bebeu o cafezinho!
― É para compensar os copitos que bebi a mais ontem à noite! Hoje vou passar a pão e água ― ironizou bem-disposto.
Largando a gravata, Rui vestia uma camisola de gola, umas calças cinzentas e levava um casaco castanho debaixo do braço e a pasta na mão.
No escritório, foi calorosamente felicitado pela secretária que, batendo-lhe nas mãos como os jogadores de basquetebol, lhe falou da vitória, de que o jornal fazia eco, sublinhando o brilhantismo da oratória do talentoso advogado.
― Parabéns! Posso dar-lhe um beijo, patrão? ― perguntou reinadia.
― Claro! Dois, se quiser, Paula! ― respondeu malicioso, oferecendo-lhe a face fria.
― Toma um cafezinho?
― Agradecia, Paula ― disse sonolento, bocejando e espreguiçando-se.
― Com certeza, mas... descanse um pouco!
Apenas a secretária encostou a porta do seu gabinete, Rui Patrício ligou para o hospital para falar com a sua doutora, mas a recepcionista voltou a mostrar-se reticente, respondendo-lhe com evasivas. Furioso, perguntou-lhe descaradamente quem a estava a manipular.
Na hora do almoço, quando a Paula saía para almoçar, ele convidou-a para irem festejar o regresso do Júlio com a Sílvia e a Cris, aconselhando-a, porém, a tomar outro café com o bolinho de nata pois comeriam tarde. Sensibilizada, a secretária aceitou e aproveitou para adiantar o trabalho.
Às duas menos vinte, quando chegaram ao hospital, o brigadeiro já lá estava com a esposa. Foi então que, depois de lhes apresentar a Paula, lhe falou do nojento que perseguia a mana que, àquelas horas, devia estar a descer, e dirigiu-se zangadíssimo à recepcionista, que lhe confirmou a saída iminente do Dr. Santos e da Dra. Galvão.
Entrementes, pensando bem e temendo que o advogado se atirasse ao o médico, o que só poderia estragar a carreira de ambos, caso se chegasse a um contencioso judicial, pensou que o mal-educado reflectiria melhor se visse pela frente um militar como ele, e até porque era a honra da sua família que estava em perigo, Júlio antecipou-se e pediu ao cunhado que o deixasse resolver a questão. Depois, dirigindo-se à recepcionista, pediu-lhe que lhe assinalasse o tarado logo que ele surgisse no hall da recepção. Aflita, tremendo como uma vara verde, a moça, mal teve tempo para reflectir e, vendo que o cínico vinha a perseguir a colega, apontou-o logo:
Quando viu que a maninha forçava o passo e se adiantava para o beijar, Júlio esquivou-se e, fora de si, atirou-se ao desgraçado, cravando-lhe a mão direita nos colarinhos e esquerda no cinto. E, fazendo-o perder o contacto com o chão, assentou-o violentamente em cima da mesa da recepção, cochichando-lhe furiosamente ao ouvido:
“ Ove lá doutor de merda! Nojo de homem! Se eu sei que continuas a perseguir a minha irmã, se lhe tocas com uma unha que seja, ou lhe faltas minimamente ao respeito a ela, Dra. Maria Cristina Galvão Sampaio, eu, Brigadeiro Júlio Galvão Sampaio, acabo-te com a raça! Vê lá o que fazes, porque não te volto a avisar!. Ah!... Que nem te passa pela mona pressionar ou intimidar alguém!. Outra coisa, se não és capaz de controlar essas bolotas de merda, corta-as redondas e atira-as aos cães. Só me apetecia partir-te esse focinho, mas vai-te lá em paz, seu figurão de merda, que já me estragaste o dia! ”
Pálido e afónico, o médico, viu o dedo acusador do advogado que, a cinco metros, seguira calmamente a cena e foi-se embora sem olhar para trás. Antes de sair, o advogado dirigiu-se à recepcionista e disse-lhe:
― A menina não lhe deve consentir abusos de autoridade. Se precisar de ajuda, eu estou defendo-a gratuitamente.
― Ele ameaçou-me, Sr. Dr. Aguiar! . A Dra. Cristina devia mudar-se daqui antes que aconteça uma desgraça. O director faz o que quer, mas ninguém se queixa. Ele tem muitos amigos, sabe?
― Ai tem? Eu pagaria para conhecer tais trastes! Vá, fique tranquila e veja se há outras empregadas... Aqui tem o meu cartão e telefone-me, quando precisar de uma ajuda urgente. Se a Dra. Galvão estiver de serviço, dirija-se a ela, se não, telefone à polícia e chame-me.
― Muito obrigada, mas não será preciso. Boas férias, senhora doutora ― disse a empregada, mais confiante e apaziguada.
― Fique tranquila, Rosário, que nós não o deixaremos fazer-lhe mal!
― Se ele não mudar... aviso-a.
― Adeus e até para o ano, Rosário.
― Adeus!
Nas escadarias, enquanto Júlio e Sílvia se beijavam calmamente, a Paula, essa, fumando um cigarro, ria-se como uma tola. Filtrando aquele seu olhar matreiro e safado, o advogado perguntou-lhe:
― Porque ri, menina?
― O gaja mijou-se toda, patrão! ― bradou hilariante, imitando o sotaque brincalhão dos Africanos.
E ninguém resistiu àquela reflexão, rindo como perdidos. Malicioso, Rui estancou o riso e, virando-se para o Júlio perguntou irónico:
― Não me digas que lhe apertaste os tomates?
― E tu achas que ele os tinha no sítio?
― Ah, para mijar tinha! ― acrescentou a mulata, descarada.
― Ainda bem que a trouxeste contigo, Pat! ― afirmou o militar, empiscando à moça.
― Se como profissional, a Paula é irrepreensível, como pessoa é simplesmente excepcional. Aliás, a Cris já se apercebeu disso...
― É verdade, Júlio ― confirmou a irmã, adiantando: ― Eu ainda nunca lho disse, mas, uma vez que estamos a brincar, pergunto-me se a Paula não terá sido o verdadeiro o anjo da guarda do Pat.
― Ei, acertaste em cheio, meu amor! ― confirmou corado, beijando a namorada e sorrindo à secretária.
― Obrigada, por mo ter guardado intacto, Paula! ― agradeceu a médica.
― Não tem de quê, Dra. Cristina! Era muita pena que um homem bonito como o senhor doutor fosse dar de comer aos bichinhos assim tão novo, não era? ― arguiu irreverente, fixando descaradamente o patrão.
E não perderam mais tempo, partindo para o restaurante a todo o gás. Júlio e Sílvia que, aproveitando para passear, tinham vindo de comboio até ao Cais do Sodré, ocuparam o banco traseiro do Mercedes, enquanto a Cris se assentou ao lado do namorado. A Paula, essa, estava toda emproada por a médica lhe ter concedido o privilégio de conduzir o vermelhinho.
No restaurante, Sílvia, que quase perdera a voz hospital, foi quem mais perguntas fez ao advogado, pois sabia que ele vivera uma apaixonadíssima história de amor com a lindíssima e não menos célebre Dina. Naturalmente emocionado, Rui resumiu-lhes muito sucintamente a sua vida amorosa, enquanto ia mastigando. No fim, virando-se para o militar, disse:
― Júlio, como sabes, o sofrimento foi quem me amadureceu antes do tempo e me deu aquela irreverência de um injustiçado que, julgando-se irremediavelmente condenado pelo destino, se revoltou contra Deus e contra os tabus, por pensar que eles lhe haviam roubado a felicidade. Então, até porque, infelizmente graças ao sangue dos meus pais, não tinha dificuldades económicas, comecei a obedecer unicamente à voz da minha consciência e segui-la cegamente.
― Quer dizer que a sociedade, a reprovação pública e o que os outros...
― Os outros, Júlio?! Mas devia-lhes eu alguma coisa, porventura?
― Nada! ― respondeu sem hesitar.
― Júlio, eu nunca fiz nada para agradar aos outros, sobretudo aos falsos e aos mesquinhos. Com a Dina amei e segui os meus impulsos. Felizmente, nós estávamos tão sintonizados que bastava um olhar para nos levantarmos, como aconteceu numa reunião da direcção do jornal que ela presidia e onde, em plena discussão, vendo como eu a desejava, num daqueles ataques libidinosos, que todos nós temos...
― E ainda bem que todos os temos! ― interferiu a secretária, vendo a timidez do Brigadeiro e o sorriso envergonhado da Sílvia.
― Sim, podes continuar... ― adiantou Júlio, acariciando a esposa e sorrindo à irmã que, calando-se, aprovava aquela confissão.
― Como dizia, a Dina deu cinco minutos aos colaboradores para puxarem pela cabeça, enquanto nós fazíamos amor. Depois, voltámos à sala de reunião descontraídos como se tivéssemos ido tomar um cafezinho, percebeste? Com ela, era assim...
― E em nove anos de casados, nunca tiveram chatices? ― questionou Sílvia, corando profundamente.
― E quem as não tem? Claro que as tivemos, mas nós utilizámo-las para cimentar ainda mais a nossa paixão.
― Posso fazer-te uma pergunta indiscreta? ― insistiu a gestora, consultando previamente o marido com um olhar submisso.
― Ora essa, está à vontade, Sílvia, que para mim não há tabus!
― O facto de a Dina ter amado outro homem antes de ti, não te enervava, nem te causava ciúmes?
― Ela não tinha alguma culpa de eu não existir, quando nasceu, de precisar de alguém para viver, quando eu não estava lá, pois não
― Não!
― Olha, Sílvia, eu tive uma sorte imensa em receber um fruto maduro!
― Pois, eu ainda estava muito verde, não estava? ― retorquiu a médica, enciumada.
― Não, meu amor, foi o destino que quis que eu amadurecesse um pouco mais para te merecer e aprendesse a amar-te no corpo de outra mulher...
― Ah! O patrão nunca me disse que era poeta! ― bradou a secretária.
― Se a Sra. Dra. Cristina permitir, fotocopiar-te-ei alguns poemas e...
― Ah não, isso não!! ― recusou enérgica, justificando: ― Desculpe, mas isso não posso de maneira nenhuma autorizar, Paula, sobretudo os que foram feitos para mim. Também tenho o direito de ter ciúmes, não acha?
― Com certeza que tem! ― anuiu a angolana.
― Eu e a Silvia, sou franco, não temos essa coragem, pois não?
― Pois, eu e o Júlio, quando nos zangamos, o que é normal, ficamos ressentidos, enciumados e não nos falamos durante dias e depois as coisas complicam-se.
― No amor, o ciúme é um feeling muito sensível que, regado em excesso, corrói e mata, quando, normalmente, devia ser como a gota de água da flor.
― Chega, Pat! Ei, os advogados não dão conselhos de graça! ― observou a médica, receando que ele levasse longe de mais as confidências.
― Quanto lhe devo, Sr. Dr. Aguiar? ― ironizou Júlio.
― Por amor de Deus, meu brigadeiro, eu é que quero saber quanto me vai custar aquela operação comando no hospital.
― Se acha que a intervenção dá para pagar esta consulta, estamos quites.
― Perfeitamente de acordo! ― aceitou o jurista, apertando a manápula do militar e agarrando-se amorosamente à médica.
― Realmente estes tipos dos advogados arranjam sempre maneira de ir à água e voltar com a fonte! ― bradou o Júlio, vendo-o beijar-lhe furiosamente a irmã, sob o olhar envergonhado da esposa.
― Não adianta lastimar-se, meu brigadeiro! Se você for capaz de se levantar já e beijar assim a Sílvia diante de toda a gente, eu pago-lhes o almoço ― desafiou o advogado.
Encarando o desafio como um teste à sua virilidade, mais que à sua coragem, Júlio agarrou-se furiosamente à esposa, mordendo-a e beijando-a, apupado pelo desafiador que, sorrindo à secretária e à namorada, batia na mesa e bradava:
― Só mais um! Só, só mais um! Só, só mais um!
― Psch! ― murmurou a médica, envergonhada com a algazarra, a que a Paula aderira imediatamente, e o olhar intrigado das pessoas.
― Os senhores desculpem, mas a Sílvia e o Júlio decidiram fazer o pedido de casamento diante de toda a gente ― justificou irónico, erguendo-se e pedindo ao público que aplaudisse tão corajosa decisão.
Percebendo o apelo, os clientes do restaurante levantaram-se e bateram palmas, enquanto a Paula e a Cristina não paravam de rir e de aplaudir. Terminado o aplauso, Rui Patrício, deixou que eles sentassem e, como a gratidão dos beijoqueiros fosse um magro e tímido aceno, disse:
― Obrigado, meus amigos, e bebam um copo que os noivos pagam!
― Certamente! ― anuiu o brigadeiro, enxugando as lágrimas da esposa.
― Não diga que a Sílvia não gostou desse beijo? ― volveu a angolana.
― Oh! Vocês são malucos! ― murmurou comovida, rindo e soluçando.
― Ei, há mentiras que valem mais que mil verdades, não é, Julinho? ― retorquiu a irmã.
― Vocês são uns amores, Cris! ― balbuciou o militar, emocionado.
― Ah pois somos! ― afiançou o instigador daquela felicidade.
― E se fossemos ao cinema? ― propôs a gestora.
― Quer vir, Paula? ― perguntou o advogado, bebendo a bica.
― Obrigada, Dr. Rui, mas ainda tenho muita coisa para fazer no escritório ― escusou-se nervosa, consultando o relógio.
― Bom, então, quando quiser, pode ir e levar o Austin da senhora doutora que ela nos próximos dias não vai precisar dele.
― É, a Paula pode utilizá-lo à vontade que eu vou vendê-lo qualquer dia.
― Se a senhora doutora aceitasse vendê-lo às prestações...
― Depende do seu fiador! Vá, conduza com precaução, que a caixinha de fósforos voa. Quanto à venda, depois falaremos melhor, está bem?
― Obrigada e muitas felicidades para todos! Então, com licença ― disse a secretária, erguendo-se e balançando alegremente as chaves do Austin.
Ainda se haviam olhavam, e já a Paula os interrompia acanhada.
― Desculpe, Dra. Cristina, mas eu só preciso da chave do vermelhinho!
― Obrigado, Paula! ― bradou a médica, segurando a chave de casa.
― Adeus e... divirtam-se!
― Adeus! ― responderam risonhos, retribuindo o aceno jovial.
E, pedindo a conta, Rui Patrício pagou a despesa toda, deixando a do cinema para o Júlio que, agradecendo a amabilidade, lhe disse que acabava de descobrir o irmão que sempre quisera ter para poder brigar à vontade, pois com a Cristina nunca fora capaz de medir forças sozinho não tinha jeito. No cinema, no bairro dos Anjos, assistiram a um filme de terror, mas em cantos opostos para que o pudor de uma presença constrangedora não os impedisse de saciar as arremetidas do amor quando elas surgissem. Quando o End apareceu na pantalha, os seus olhares apaixonados não conseguiam disfarçar a libido efervescente que fervilhava dos corações deles. Preferindo deambular pela cidade e ir beber um pouco a um pub sossegado com a esposa, excessivamente tímida, Júlio desejou-lhes boa viagem, partindo de braço dado com a Sílvia.
Até Santo Amaro, Pat não cessou de excitar a sua vénus que, intimidada pelo tráfego, temia mostrar as coxas que o cupido acariciava obstinadamente. Já perto da vivenda, a médica pediu-lhe que parasse para não molhar o banco e ajeitou decentemente a saia castanha que combinava com a madeixa alourada e o pôr do Sol da camisola amarelo torrado.
― Ah, até que enfim, pensei que não vinham para jantar! ― bradou a governanta, sorrindo-lhes e recusando-lhes o beijo por cheirar a peixe.
― Sempre a trabalhar, D. Noémia! ― exclamou a médica.
― Ah, eu gosto muito de cozinhar, menina! Mas saiam que este cheiro...
― O padrinho e a Cély? ― perguntou Rui do corredor.
― Foram comprar uns moletes, mas não devem demorar.
― Quando ela chegar, não lhe diga que a Cris veio comigo.
― Vão sossegados, que eu não digo nada, Ruizinho.
De mão dada, eles subiram para se beijarem tranquilamente no quarto. Depois, o fogo da paixão foi um ar que lhe deu e o fez alastrar pela vivenda, acabando de incendiar os seus corpos endemoninhados encostados às cortinas da janela do quarto para melhor vigiarem a entrada.
No horizonte, o mar sussurrante e as gaivotas pipilantes faziam eco daquele amor fogoso e divino! A aparição da Celina, lá no fundo da calçada a saltitar de alegria com o saco dos moletes, fê-los abortar aquele orgasmo que procurava pacientemente o ponto de não retorno. Descendo a beijar a filha, Rui Patrício deixou a namorada a avisar os pais de que estava em Santo Amaro e que o Júlio e a Sílvia haviam ficado a passear pelas ruas de Lisboa e que ia vender o Morris à Paula.
A sala de jantar estava toda iluminada e a mesa arvorava uma jarra de flores no meio; instalado no seu lugar, o arquitecto aguardava que o afilhado se sentasse, enquanto a netinha olhava para os pratos e sorria maliciosamente. Entretanto, vendo o Rui ocupar o seu lugar, a Sra. Noémia serviu-lhes a canja, largando a terrina fumegante na mesa. Rindo, Cély encheu o prato que restava e saiu a gritar:
― Se a princesa demorar, vai comer a sopa fria!
E correu a assentar-se no seu lugar e a espelhar-se na canja fumegante. Mudos, os homens pegaram na colher e desejaram-se bom apetite, ignorando a inocente que protestou resmungona:
― Pronto, enquanto ela não vier, eu não como!
― Estou aqui, minha linda! ― bradou Cris, beijando-a comovida.
― Boa noite, menina! ― exclamou o arquitecto, oferecendo-lhe o rosto.
― Boa noite, padrinho! Puxa! Vocês não sabem guardar segredos!
― Segredos?! A Cristina pensa que nós a conseguimos enganar?
― Estes homens são muito tolos! Então não vêem que só se põem pratos para quem vem comer! ― acrescentou perspicaz, comendo a sopinha.
― À Cély não escapa nada, pois não, padrinho? ― retorquiu a médica.
― Gostaria que Deus me ajudasse para ver o que daqui vai sair.
― Claro que vai ajudar, padrinho! ― bradou o advogado, confiante.
― Não foi pelo prato que eu vi que estavas cá ― revelou a criança, acariciando a mão da médica.
― Ah, sim?! Então pelo que foi?
― Eu sei, Cris, eu sei! ― interferiu o pai, todo baboso.
― Espera, não digas. Se a Cély adivinhar, compro-lhe uma boneca.
― Então escreve num papel e mostra à Cris depois de eu lhe ter dito a resposta.
― Espera, que eu vou buscar uma caneta, filha.
― Mostra lá se é verdade ― ordenou a médica, depois de ouvir a Celina.
― São os meus olhos, Cris! ― exclamou resignado, mostrando a frase escrita no pedaço de papel.
― É impressionante! ― observou o arquitecto, acariciando a netinha.
― Você desculpe, mas eu tenho que dar um beijo ao Rui ― disse embaraçada, levantando-se e indo afagar o seu anjo da guarda.
E até a refeição, depois daquele beijo apaixonado, teve outro sabor. Apesar de o seu corpo lho reclamar e da insistência do olhar langoroso do namorado lho implorar, Cristina sentiu relutância em passar a noite em Santo Amaro, preferindo a tranquilidade da caminha que lhe embalara os sonhos e lhe aparara as lágrimas de desespero e solidão. Respeitando tal desiderato, Rui Patrício não insistiu e avisou o padrinho que a ia levar ao Monte Estoril, mas que estaria de volta, em princípio, antes da meia-noite.
Na viatura, bastante inibido, ligou o aquecimento dos pés e aumentou o volume do rádio para trautear os vinte anos do José Cid, mas inibiu-se.
― Porque choras, meu amor? Eu estou aqui! ― balbuciou meiga.
― Nem sei, Cris, mas deixa-me chorar...
― Hoje tivemos um dia tão bonito! Resolvemos tantas coisas...
― Será que o doutor do diabo ganhou juízo ou estará a tramar-nos?
― Não te preocupes que ele não se meterá mais comigo.
― Sei lá, Cris, sei lá!
― Diz, querias dormir comigo esta noite, não querias, meu amor?
― Por favor, Cris....
― Desculpa, meu amor! Eu bem quero resistir-te, mas esse teu olhar, sempre tão faminto, põe-me fora de mim. Se soubesses como me enfurece as entranhas. Até ardem! ― confessou voluptuosa, contorcendo-se toda.
― Ao amor, Cris, nunca se deve resistir, nem tampouco guardá-lo para outra vez. Essa fonte mágica enche-se despejando-se!
― Pat, encosta o carro naquele canto escuro e acaricia-me sob as luzes do néon como se eu fosse uma estranha. Please, love like a stranger, please!!!
― Uma estranha? Se fosses sueca ou francesa, era para o Hotel Palácio que eu te levaria.
― Ah, no carro é tão excitante, Pat!
― Na suite do hotel, com champanhe e...
― Espera, pára o carro aí à frente ― ordenou desnorteada.
― Para onde vais, Cris? ― perguntou o advogado inquieto, retendo-a.
― Sossegar os meus pais.
― Acalma-te, meu amor, que ainda só são onze horas. E se fôssemos tomar um licor ao Butterfly, perto do Tamariz?
― Eu preferia bebê-lo no bar do hotel, Pat.
― Os seus desejos são ordens, princesa! ― bradou galanteador, beijando-lhe a mão antes de virar para a alameda das palmeiras que ladeava o Palácio.
Sorrindo meiga, ajeitou a saia desalinhada e pintou os lábios. Estacionando sob a luz difusa do néon publicitário, Pat perguntou eufórico.
― E se bebêssemos um Baileys naquele café? ― sugeriu o cupido.
― Baileys, Pat?!
― Nunca experimentaste, Cris? Ai, é tão gostoso!
― Tem muito álcool?
― Apenas o suficiente para deleitar os lábios e a língua e...
― Psch, que já me fizeste água na boca! ― murmurou sensual.
Com o arisco, a esplanada estava vazia e, no interior, a média luz avermelhada iluminava parcialmente as cadeiras e os sofás de veludo. Na entrada, o servente acolheu-os com um sorriso, fazendo tilintar a magra gorjeta do dia. Rui Patrício, que conhecia o interior como as suas mãos, foi sentar-se no canapé de canto onde, nove anos antes, numa cálida noite de Agosto, conquistara definitivamente o coração daquela que seria a mãe da sua filha. Cris, seguindo-o submissa, colou-se a seu lado e aguardou que o garçon lhes servisse os dois Baileys que Pat encomendara discretamente na passagem. Olhando à sua volta, a médica comentou baixinho:
― Estranho, parece que não há mais namorados no Estoril!
― Não, os outros devem andar mais esfomeados...
― Do que eu, duvido, Pat!
― Se a menina está assim tão faminta, deixe-se de fitas e avise lá a mamã para dormir tranquila com o Edgar, porque hoje nós vamos festejar a derrota do papá ― cochichou langoroso, chamando: ― Garçon, o telefone, por favor!
― Com certeza, Sr. Dr. Aguiar ― respondeu o servente.
― Mas..., o garçon conhece-te, Pat!
― Ele deve conhecer sobretudo a minha gorjeta. Não, a sério, eu sou cliente da casa há mais de dez anos e venho aqui regularmente.
― E hoje calhou-me a mim, não é? ― indagou a enciumada.
― Psch! Ele pode ouvir-nos! ― murmurou o envergonhado.
E um silêncio forçado fê-los pensar duas vezes antes de abrirem a boca novamente, não fossem os ciúmes azedar. Olhando-se mudos, esperaram que o servente lhes trouxesse os Baileys secos para lhes adoçar o coração. Empunhando radiosamente a bandeja e o telefone portátil, o servente disse:
― Ainda bem que o vi hoje no jornal, senhor doutor!
― No jornal?! Eu agora já escrevo para os jornais!
― Eu vi-o... e tenho-o ali. Um momento, por favor, que depois eu trago-lho. Caramba, até pensei que o senhor doutor também tinha morrido!
― Então porquê?
― Se a memória não me falha, há mais de um ano que não nos fazia uma visita, senhor doutor. Acredite, nós sentimos muito pelo que aconteceu.
― De vez em quando, o destino prega-nos cada partida, mas felizmente que nem são sempre más. Desculpa por nunca te ter perguntado como te chamavas. Tu és o...
― O Jorge, senhor doutor ― respondeu orgulhoso.
― Obrigado por te teres lembrado de mim. Uma vez que sabes o que me aconteceu de mal, quero apresentar-te o que me podia ter acontecido de melhor, a Sra. Dra. Cristina.
― Muito prazer em conhecê-la, senhora doutora!
― Igualmente, Jorge ― respondeu a médica, estendendo-lhe a mão.
― Eu vou trazer-lhe o jornal, senhor doutor.
― Obrigado, Jorge ― agradeceu o advogado, ligando para casa.
E, depois de uma breve espera, murmurou baixinho:
― Alô! O padrinho durma tranquilo que eu vou ficar fora esta noite. Vá, dê um beijinho por mim à Celina. Boa noite!
― Boa noite, filho! ― respondeu o arquitecto.
Sorrindo, entregou o portátil à doutora que, imitando-o, tranquilizou os pais. Lá no fundo, o garçon esperava que eles acabassem as confidências para lhes trazer o jornal, mas a donzela demorou muito mais tempo ao telefone. A mãe estava curiosa para saber o que é que eles tinham feito ao Júlio para ele ter vindo expressamente da Amadora dar-lhes um beijo e voltar novamente para casa. A filha, sorrindo pelo auscultador, disse-lhe que talvez fosse obra do rei Tapiur que, por curiosidade, iria amar loucamente até ser dia.
― Não chores, meu amor! ― implorou afável, vendo-a tão emocionada.
― Hum! Realmente este licor é bem gostoso! ― balbuciou deliciada.
― No Verão, com uma pedra de gelo...
― Deixas-me provar o teu?
― A menina quer saber os meus segredos!
― Todos! Todinhos!
― Então bebe o meu que eu bebo o teu.
― Ai o que eu estou a ver no Baileys! ― exclamou maliciosa, mergulhando a língua e os olhos esverdeados no licor irlandês.
― Eu, grande Marabu, ― respondeu irónico ― vejo tudo nu!
E um riso súbito fê-la engasgar-se e espirrar pela mesa. Oferecendo-lhe instantaneamente o lenço, ele pousou o copo e, beijando-a na boca, cochichou-lhe ao ouvido:
― Daqui a pouco, como-te toda...
― Com esta a fome, não sei se o fofinho vai chegar ― arguiu arrepiada.
― O fofinho não, o durinho ― retorquiu descarado.
― O Baileys é realmente muito bom, mas não é este licor que me vai matar a sede. Anda, Pat, vamos ― rogou impaciente, ondeando e bebendo o copo de um trago.
Fazendo o mesmo, o advogado pegou no jornal, que entretanto o rapaz lhe trouxera, e entregou-lho sem o ler, deixando quinhentos escudos sobre a mesa para pagar a despesa.
― Senhor doutor! Senhor doutor! Leve-o consigo! ― gritou o servente, calculando a gorjeta.
― Obrigado, Jorge. Boa noite! ― bradou jovial.
E, dando o braço, dirigiram-se para o luxuoso Hotel Palácio, que ficava mesmo a dois passos, largando o carro no mesmo sítio. Na entrada, vendo que não trazia bagagem, o porteiro sorriu e, obrigando o seu uniforme a uma reverência, deu-lhes as boas-noites. Na recepção, o advogado puxou pelo bilhete de identidade e, entregando-o à empregada de serviço, disse:
― Boa noite! Uma suite por favor.
― Por uma noite, Dr. Aguiar? ― perguntou a moça, lendo o documento.
― Sim, mas a melhor...
― De manhã, tomam o pequeno almoço?
― Na cama, se fizer o favor.
― E a que horas, senhor doutor? ― inquiriu a recepcionista, olhando para o artigo que acabava de ler no jornal.
― Às onze, pode ser, menina?
― É um pouquinho tarde, mas eu vou arranjar-lhe isso, Dr. Rui de Aguiar. Muito obrigada e parabéns! ― exclamou atenciosa, entregando-lhe a chave da suite 202 depois de anotar V.I.P! BREAKFAST AT 11hs. ONLY!
― Desculpe, obrigado e parabéns porquê, menina?
― Muito obrigada por ter conseguido salvar o José Manuel da cadeia e parabéns pela magnífica dama, senhor doutor ― esclareceu corada.
― Ah, você conhece o José Manuel!
― Sim, sou de Caxias como ele. E lá só se fala no milagre que o senhor doutor fez.
― Milagre?! Deus não podia deixar condenar um inocente pois não, menina. Boa noite! ― respondeu descontraído, sorrindo e dando a mão à Cris que o aguardava discretamente perto de uma ânfora romana.
E, refugiando-se no elevador, voaram aos beijos para a suite 202. No interior, os muros cor-de-rosa, iluminados timidamente por uns candelabros dourados, incitaram a médica a descalçar os sapatos e a despir-se rapidamente, mas, batendo a porta com o pé, o cupido agarrou-a e implorou-lhe suavemente num francês sem sotaque:
― Devagar, meu amor, devagar!
― Eu amo-te! Eu amo-te!!! ― bradou langorosa, consumida pelo vulcão que lhe explodia nas entranhas.
― Eu também te amo loucamente, meu amor, mas quero possuir-te até de manhã! Calma, deixa o prazer aquecer...
― Se soubesses como me é penoso reter esta fogueira dentro de mim ― murmurou voluptuosa, erguendo a saia para mostrar a libido lacrimejante.
Hipnotizado pela púbis macia, o Cupido apagou as lâmpadas da suite, que o néon, infiltrando-se pelas amplas janelas de cortinados presos, transformara em pub, para que o strip-tease tivesse outra magia. Depois, mordendo-lhe e beijando-lhe o corpo à medida que a despia, sussurrou-lhe mil e uma palavras em francês, em inglês, em português e no que calhava, inventando onomatopeias que quase sempre rimavam com os gestos e as deliciosas carícias. E a meia-noite passou sorrateiramente pelos dígitos verdes do relógio sem que o gigolô, despido à força pela fera, ousasse desferir o golpe que ela, depois de várias explosões transcendentais, tanto lhe suplicava. Finalmente, depois de um gostoso vaivém missionário, ele escutou as preces gemebundas e fez desaguar impetuosamente a torrente seminal no abismo genital. Suados e exaustos, os seus corpos colaram-se e imobilizaram-se nus sobre o leito, permanecendo apenas cobertos por um lençol róseo e a madeixa loura da Vénus. Por volta das duas da madrugada, passado o platónico descanso, o guerreiro foi buscar duas garrafas de águas das Pedras e ofereceu uma à sua prisioneira para se hidratarem e irem tomar um duche e tudo recomeçar pacientemente. E o cansaço só conseguiu domá-los e adormecê-los pelas três da manhã. Naquela noite, até o sonho, envergonhado com tanta ousadia, se esqueceu de os ludibriar com as suas miríficas fantasias, abandonando-os abraçados na cama a regenerar as forças do amor.
Nesse sábado, 18 de Dezembro, entrando timidamente pela janela, o Sol veio espelhar-se na nudez resplandecente, que um lençol tapava apenas, e antecipou-lhes o despertar. Cobrindo-lhe os pés e as costas, o conquistador ergueu-se e beijou-lhe os mamilos esmorecidos. Depois, deitando-se à frente dela em mística contemplação, afagou-lhe docemente as zonas erógenas. Entretanto, excitada pelos lábios varonis, em viagem sensual de amor pelas margens da inefável fecundidade, a médica, que nunca conhecera clímax tão intenso e prolongado, espreguiçou-se, bocejou e, sorrindo feliz, beijou o seu anjo na boca, antes de se refugiar no W.C, tal Eva depois do pecado.
O relógio digital assinalava as dez horas e dezanove. Esperando-a pacientemente, o varão abriu os braços e as pernas e escondeu a renascente tumescência matinal, fingindo recolar no sono todo coberto. Surgindo levemente como uma fada, ela levantou-lhe o lençol nos pés e começou a beijá-lo pelo corpo acima até à cintura, obrigando-o a contorcer-se e a gemer sensualmente irritado pelas cócegas. Depois, virando-se para lhe apalpar os lábios, descobriu a erecção em rígida continência. Surpreendido pela voluptuosidade felina da amazona, o guerreiro perdeu o controlo da virilidade que explodiu demencialmente pelo leito sob o olhar desvairado da sedutora.
― Oh, não! - bradou frustrado.
― Não, deixa-me ver esses jactos moribundos, Pat.
― Desculpa, meu amor, mas esses seios, essa boca e esses lábios fizeram atingir o sétimo céu, quando menos contava.
Mesmo? ― perguntou vaidosa, limpando o sémen à toalha branca que trouxera do banheiro.
― A tua maestria confunde-me, Cris. És tão deliciosa, tão...
― Como médica, garanto-te que deve haver poucas mulheres que se sintam tão realizadas sexualmente como eu. Então esta noite mataste-me...
― Ah, mas foi tão bom! ― confessou feliz, beijando-lhe os mamilos.
― Calma, Pat, calma, que senão eu volto a molhar isto tudo!
― Não faz mal, Cris! Isso, isso, explode, meu amor, explode!
― Assim, assim, Pat, continua, continua, meu amor. Ai! Ui que bom!
― Queres mais, queres? Ui que boa! Ai que gostosa! Oh! ― sussurrou estonteado, vendo-a contorcer-se toda, friccionada pelo Cupido que, mordendo-lhe simultaneamente os mamilos e excitando-a, mal sentia os dedos esguios da fera delirante cravarem-se-lhe na pele.
E, às onze menos nove, sentindo o membro viril ressuscitar, ele, que não parara de a esquentar lentamente, como um missionário em prece, abriu-lhe as coxas irrigadas e, enfiando a adaga na fenda vaginal, desferiu-lhe um golpe fatal que, dando brado, ecoou demencialmente pelo quarto. Quando o garçon lhes bateu à porta com o pequeno almoço à inglesa, eles, que ainda saboreavam as delícias da cópula matinal, pediram-lhe que largasse o tabuleiro diante da porta. Depois, abrindo-a cautelosamente, Rui arrastou-o para o interior. Esfomeados, comeram tudo: presunto alourado, ovos, bolos, compota, sumos e café. Até parecia que não comiam há uma semana.
Depois tomaram um duche bem perfumado, pentearam-se, vestiram a mesma roupa e, pegando no jornal, partiram discretamente para fazer os dois quilómetros que faltavam para chegar ao solar, onde a D. Susana já começava a se impacientar-se.
― Que felicidade, mamã! ― bradou maravilhada, aninhando-se-lhe nos braços, sob o olhar inocente do seu anjo envergonhado.
― Não precisas de ficar assim. Vá, dá cá um beijo, meu filho ― rogou a professora, abrindo bem os braços para os agarrar a ambos.
― Agora, por nada deste mundo renunciaria a esta fada ― confessou apaixonado, beijando a catedrática no rosto.
― Posso pedir-lhe uma coisa, Dr. Aguiar?
― Não me chame assim, D. Susana. Diga Pat, Rui, filho, mas, por amor de Deus, doutor não, pelo menos entre nós.
― Está bem, filho! ― exclamou maternalmente.
― Assim é melhor, não é Cris?
― Ah, sem dúvida!
― Por favor, fique aqui todo o dia e toda a noite que eu estou ansiosa por desabafar consigo e desfazermos de vez o equívoco do passado.
― Para mim nunca houve equívoco, D. Susana! Aliás, graças a si, só conheci mulheres excepcionais! A Cris é...
― Vê lá o que vais dizer?
― A Cris é simplesmente divina!
― Acha?!
― Só os cabelos louros ....
― Não, não são de nenhum sueco, se é isso que quer saber. São da bisavó paterna. A mulher apaixonada que construiu tudo isto ― revelou orgulhosa, apontando os limites do solar.
― Era justamente dela que a Cris me falava quando, nesse longínquo 5 de Agosto de 1973, a senhora lhe telefonou por volta do meio-dia. Ainda me recordo que fora a criada, a Maria, que já cá estava, quem atendera a chamada que lhe fizera de Tróia, avisando-a que deveriam chegar ao fim da tarde.
― Mas que memória, Pat!
― Se nós não somos capazes de guardar no coração os bons momentos da nossa vida onde é que vamos colher a felicidade e, sobretudo, arranjar forças para vencer os maus?
― Você gostava de filosofia, Rui? ― questionou a catedrática.
― Modéstia à parte, D. Susana, é verdade que eu era um bom aluno. Aliás sempre quis ser o primeiro em tudo, ― frisou malicioso ― mas reconheço que houve quem fosse melhor do que eu nos momentos em que andei à deriva. Primeiro com a morte dos meus pais e depois com as decisões dolorosas que tive que tomar mais tarde, nesse Verão de 1973. Enfim...
― Eu sempre confiei em si.
― Eu sei, D. Susana, eu sei, porque também nunca me esqueci de como me recebeu a primeira vez, quando o meu padrinho e o senhor doutor tinham em mãos o projecto da aldeia S.O.S.
― E ainda recordo o dia em que lhe passei o creme nas costas e lhe li um poema ao mesmo tempo para o enganar...
― Pois, a Dina, para me provocar, dizia que eu tinha medo das mulheres!
― E ainda se lembra da resposta que me deu?
― No fundo, que só alguém que conhecera a maternidade me podia transmitir tanta felicidade, o que as excluía a ambas, e tanto a Dina como a Cris não apreciaram mesmo o meu desprezo por elas...
― Pois, mas foi nesse dia, que este menino me arrancou o primeiro beijo!
― Com esta pequena nuance, D. Susana, não lho arranquei, ganhei-o a desfolhar o malmequer. Aliás, pensando bem, nessa mesma tarde, esta menina quis desforrar-se e ganhou-me uma aposta debaixo da água...
― Exactamente. Onde e como me beijaste nem vale a pena dizer...
― Claro que não, Cris! Mas..., faz-se tarde! ― bradou impaciente.
― Por favor, Rui, não se vá! Eu preciso muito de falar consigo.
― Ainda não vi a Cély, D. Susana.
― O senhor doutor e eu iremos buscá-la depois do almoço.
― Será que o meu padrinho quererá vir, D. Susana?
― Ele também anda morto por falar consigo e diz que lá, em Santo Amaro, você está mais preocupado e atarefado do que aqui.
― Já viu esta barba, D. Susana?
― E os meus arranhões, mamã?
― Os de amor são mimos...
E um sorriso confirmou plenamente a certeza daquele coração maternal. Antes do almoço, marcado para a uma por causa do Júlio e da Sílvia, os namorados foram tratar do visual e mudar de roupa, enquanto a professora alinhou os talheres dourados e adornou caprichosamente a mesa oval.
Às treze menos cinco, o Toyota Celica do militar fez uma aparição estridente, imobilizando-se na calçada diante do portão que, por causa do vaivém do fim-de-semana, ficara com o automático desligado. Amorosamente abraçado à esposa, Júlio sorria como um menino, a quem haviam dado o brinquedo dos seus sonhos, vigiado pela mãe que, ouvindo os roncos do cano de escape, se apercebera da chegada do transfigurado desde a véspera.
― Olá, bom dia, mamã! ― bradou Júlio mimalheiro, beijando-a na testa.
― Vocês vêm tão radiantes, Sílvia! ― constatou a professora, contagiada pela felicidade da nora.
― É verdade, até parece que a nossa lua-de-mel começou ontem ― murmurou Sílvia, emocionada, beijando-a carinhosamente.
― Oxalá que não termine jamais, filha!
― Se os outros conseguem viver em lua-de-mel permanente, nós também conseguiremos! ― acrescentou o brigadeiro, orgulhoso, deitando o braço por cima do pescoço da esposa.
― Conseguireis, se vires sempre o lado bom da vida e, sobretudo, te lembrares um pouquinho mais de Deus, mesmo que seja para duvidar ou lhe pedir ajuda nas horas de desentendimento conjugal, que todo o mundo tem, porque depois do amor zangado vem sempre o amor redobrado.
― O Rui e a Cristina demoraram muito, D. Susana?
― Demoraram muito, Sílvia?! Se tivésseis vindo cinco minutos mais cedo, teríeis visto em que estado!
― Depois o Rui conta-me tudo, mãe... ― adiantou o filho, curioso.
― Não faças isso, filho! Não é bom penetrar no jardim secreto dos outros, por mais amigos que sejamos, porque há coisas que, para que a nossa felicidade possa crescer e durar, jamais deverão ser ditas. Os segredos íntimos são o refúgio e a fonte onde damos de beber ao amor que a cimenta.
― Nem aos nossos pais, D. Susana? ― perguntou a nora, inocentemente.
― A ninguém, Sílvia, porque cada um de nós é único e deve permanecê-lo eternamente. Deus fez-nos muito bem. A felicidade e o amor, tal como a Fé, pressupõem uma procura individual e permanente da verdade pois, nesta unicidade do ser humano, não há mérito, culpa ou responsabilidade colectiva, embora a realização da Humanidade nos obrigue a dar o máximo em prol do progresso material e espiritual da Raça Humana.
― As raças humanas, D. Susana ― rectificou Sílvia, baralhada.
― Não filha, a Raça Humana é única. Deixa que te explique. Ora bem, que exemplo te hei-de dar? ― indagou pensativa, procurando transmitir à nora o fundamento do seu pensamento.
― Bom dia, pombinhos! ― bradaram Pat e Cris de mão dada.
― Bom dia, rolinhos! ― retorquiu Júlio, abraçando demoradamente o advogado, sob o olhar embaraçado da esposa que beijava distraidamente a cunhada.
― Por acaso, o Rui ouviu o que acabei de dizer à Sílvia?
― Que a Raça Humana é única? ― perguntou sorridente, oferecendo o rosto à gestora.
― Perfeitamente. Será que me engano? Como é que você explicaria isso a um céptico ou a um incrédulo?
― Bom..., deixe-me ver!... Ei, ajuda-me, Cris ― rogou pensativo.
― Eu, Pat?! Desculpa, mas eu estou na lua ― confessou a médica.
― Ah, encontrei, D. Susana! ― exclamou radiante, prosseguindo convicto: ― A Raça Humana é como um jardim, sim, um jardim cuja beleza e o encanto dependem da coexistência harmoniosa de flores das mais variadas espécies. Senão vejam: imaginemos que aqui, nesta propriedade e nas outras que se debruçam até ao mar, e mesmo por toda a parte, só havia flores brancas, avermelhadas ou azuis. O orgulho e o encanto inicial rapidamente se transformaria frustração e em monotonia e, um belo dia, chateado e farto de ver sempre as flores da mesma cor, o proprietário mandaria arrancar tudo... É, creio, na singularidade e na diversidade que reside a força da Humanidade.
― Exactamente! Isso mesmo, Rui! Sendo Único, Deus à sua imagem e semelhança: únicos! Exactamente! ― acrescentou maravilhada, beijando-o orgulhosamente.
― Já viste sogra mais carinhosa que a nossa, Sílvia?
― E generosa, e... Não, não vi e, Deus me livre!, nem quero ver!
― A mamã é muito linda, não é Júlio?!
― A mamã é..., é... única!
― Obrigada, meu filho! Ah, e eu que sempre ouvi dizer que os militares não tinham coração!
― Aí é que a D. Susana se enganada ― replicou Pat, provocador.
― Me engano?!
― Mas eles têm mesmo coração, D. Susana?! ― volveu zombador.
― Ei, não se aleijem! ― gritou a professora, vendo-os simular um combate de boxe e agarrarem-se às gargalhadas.
― É, ― acrescentou Cris ― o mano encontrou com quem brigar!
― Oh! Isto é briga de irmãos, Cristina!
― Ainda bem, quanto mais brigarem entre eles, menos sobrará para nós!
― Os senhores podem entrar que o almoço está na mesa ― informou Maria, sorrindo por ver o brigadeiro dar boleia ao advogado às cavalitas.
E aquela jocosa altercação varonil até serviu para afoitar o apetite. Dr. Edgar, que passara a manhã a rever alguns processos, estava maravilhado com a felicidade dos seus herdeiros. A Cristina conhecia, finalmente, a inefável demência do amor e o Júlio, a ver pela aura que jorrava do seu olhar, começava a colher os benefícios do estágio americano e a pôr em prática a filosofia keep cool, dos G.I’s.
Depois do digestivo, aproveitando a moleza do Rui e da Cristina que, exaustos, preferiram ir tirar um cochilo para o canapé da sala da televisão, enquanto o Dr. Edgar foi a Santo Amaro arrancar o amigo Félix à mística solidão, trazendo com ele a Cély, a quem queria como se tivesse sido gerada pela sua Maria Cristina, a princesinha da profecia.
Entrando de surpresa na sala, a mocinha, que viera prevenida com mais duas mudas de roupa para juntar às que tinha no quarto das relíquias no sótão, onde dormia quando pernoitava no solar, abeirou-se cautelosamente dos namorados, beijou-os no rosto e aninhou-se ao lado deles. Pouco depois, D. Susana foi visitá-los e descobriu-os adormecidos.
Enquanto eles dormiram a sesta, a professora aproveitou para conversar com o Félix e abriu-lhe o seu coração maternal, tão feliz por ver e sentir a felicidade dos filhos, da nora e do Rui, o órfão que ela sempre adorara; o arquitecto também lhe falou da alegria que sentia desde aquele ditoso dia 2 de Novembro, em que, desmaiando diante da Cris, que passara a tratá-lo carinhosamente por padrinho, o afilhado deixara de ser triste e enredado na maldita solidão que ele sobejamente conhecia; o Júlio e a Sílvia, que haviam saído de Toyota para saciar a febre que a libido insolente lhe suscitara no fim da sobremesa ao descobrir a tímida sensualidade da esposa, regressavam para o café, quando os velhotes terminavam as suas confidências.
― Que paciência, Dr. Félix! ― adiantou o militar, sorrindo ao arquitecto.
― Paciência?! O Júlio de deveria exclamar que sorte! E que privilégio, ter por confidente e amiga uma mulher tão atenciosa como a sua mamã. Sabe, com esta idade, já não tenho nem ambições nem ilusões.
― E para quê, Félix? Foram as correrias desenfreadas da nossa juventude que nos impediram de saborear a vida... como ela merecia. Mas é assim, geralmente, a velocidade e a impaciência conduzem-nos à futilidade e, desviando-nos da própria essência da realidade, impendem-nos, pura e simplesmente, de gozar a própria vida e, nesse caso, a felicidade não passa de uma miragem da futilidade...
― Que filosofia, mamã?! Ui que murro! ― confessou Júlio, passando a mão pela face corada.
― Eu adorava ter recebido um milhão de murros deste quilate, mas, infelizmente, foram de outro calibre os que o meu padrasto me deu ― acrescentou o místico, fitando-os com o seu olhar cansado.
Sentindo-se completamente baralhado, o aviador refugiou-se no seu mundo etéreo e, habituado a guinar em pleno céu, mudou habilmente de direcção, concluindo:
― Entre outras, hoje aprendi que a filosofia faz fome! O café está pronto mãe? A Sílvia está com uma fome!...
― Um pouquinho, é verdade! ― anuiu a gestora, corando fortemente.
― Pronto, Félix, vamos merendar, senão o comilão não nos deixa nada.
― O Rui e a Cristina ainda dormem, D. Susana?
― Sim, com a Celina.
― Ai ela é tão querida! ― bradou a nora, empiscando ao marido.
― Olha, filho, eu acho que a Sílvia está a sentir o apelo da maternidade...
― Tem graça, mamã, nós passámos a tarde toda a falar disso.
― Estão ver como o meu sexto sentido se afina com a idade!
― Por falar em sexto sentido, ainda ontem, ao jantar, com o Rui e a Cristina pude constatar isso com a Celina, que sabe ler os estados de alma e estabelecer deduções. É extraordinário, Susana! Ontem, bem quisemos esconder-lhe a presença da tua filha, mas não conseguimos. Imagem como é que ela descobriu que a Cristina estava lá em casa?
― Pelo perfume da Cris! ― opinou a catedrática.
― Viu uma peça dela e deduziu que... ― sugeriu a gestora.
― Como? ― perguntou Júlio, vendo o meneio negativo do velhote.
― Imaginem que a pequenita descobriu que a Cris devia estar por perto pela simples observação dos olhos do pai, que por sinal até se mantinha mudo, cabisbaixo e com o ar aborrecido.
― Realmente as crianças têm um instinto e uma capacidade de análise invulgares ― disse Sílvia, passando discretamente a mão pelo ventre.
― O olhar da inocência, minha filha, é mais penetrante e eficaz que o raio X ― opinou a catedrática.
― Pois, talvez, Dr. Félix, mas como é que os olhos do pai lhe podiam dizer que a Cris estava lá? Estou curioso por saber como é que a Celina chegou a essa conclusão ― adiantou Júlio, servindo o café ao arquitecto.
― Pergunte-lhe, Júlio! ― respondeu o místico.
Deixando-os a tomar o lanche, a professora foi acordar o marido, que gozava a sacrossanta hora da sesta. De volta, passou diante da sala da televisão, bateu ruidosamente na porta para alertar os dorminhocos e prosseguiu a sua caminhada.
Sobressaltado com o barulho, Rui descobriu a filha adormecida ao seu lado, sorriu e pousou-lhe afectuosamente os lábios no rosto, cochichando:
― Dorme, mon amour, dorme!
― Enganei um tolo! ― gritou safada, agarrando-se-lhe ao pescoço.
― Oh, o meu petit mon amour está aqui! ― exclamou a médica, espreguiçando-se e bocejando graciosamente a sonolência aguda.
― Também queres um beijinho, Cris? ― perguntou a mimalheira.
― Muitos, muitos, Cély! ― bradou a dorminhoca, arranjando o cabelo.
― Hum, apressem-se que o lunch está na mesa! ― murmurou impaciente, cheirando o aroma do café.
― Corre, que eu e Cély ainda nos vamos pentear.
― Ei, não façam esperar os outros ― disse baixinho, penteando-se com os dedos e coçando os olhos para espantar o resto do sono.
Pouco depois, vendo-as abeirarem-se radiantes da mesa, a professora fitou-as demoradamente e, aproveitando o silêncio beato, perguntou:
― Sempre é verdade que vais comprar uma boneca à Cély, filha?
― Que remédio, ela ganhou-a!
― Tu escolhe uma boneca bem bonita que a senhora doutora paga. Mas..., explica-nos uma coisa.
― O quê, vovó Susana?
― Como é que tu vês nos olhos do papá? Tu...
― A vovó não duvida de mim, pois não? ― volveu séria, enervada pelo riso espontâneo do Júlio.
― Não, Cély, claro que não! ― disse afectuosa.
― Eu não adivinho, porque não sou bruxa, mas o meu papá é tão maluquinho pela Cris que, e nem é preciso ser bruxa, basta olhá-lo bem nos olhos para perceber que, quando ela não está, ele fica tão aflito que até parece que nem quer viver. Sabe, ele fica sisudo, franze a testa, morde as unhas... Enfim, uma autêntica pilha de nervos! ― concluiu meiga, fazendo uma careta ao papá.
― Essas coisas não se dizem a toda a gente, filha!
― Mas... os vovôs e os tios não são estranhos! Depois, que adianta querer esconder dos outros, se nós próprios sabemos que não estamos bem?
― Nós próprios?! Que história é essa, filha? ― retorquiu confuso.
― Eu não lhes digo que a Cris lhe deu volta à cabeça? Tu não andas muito escorreito, papá! A senhora doutora dá cabo de ti!
― Celina Maria! ― interferiu zangado.
― Isso mesmo, Cély! Isso mesmo, dá-lhe outro! ― apoiou o militar, empiscando à criança e simulando dois murros.
― Quem diz a verdade não merece castigo, Rui! ― sentenciou o patriarca, do fundo do corredor.
― Olá, vovô Edgar!
― Olá, princesinha! Mas... continua, acho que querias dizer...
― Sim, mas só se o papá tapar os ouvidos.
― Tapa os ouvidos! ― ordenou prontamente o brigadeiro.
― Sabem, ― cochichou segredeira ― aquilo que o enerva mais o meu papá, neste momento, é o carro vermelho da Cris! Quando o olha, até parece que está a ver o diabo!
― Ah!! ― bradou Júlio, atónito.
― A mentirosa já acabou? ― perguntou o pai.
― Já..., estás condenado! Condena-se, papá? ― hesitou o militar, consultado o juiz.
― Não! Absolve-se!
― Que mal que eu fiz? Tu..., ainda te corto essa língua! ― protestou o advogado, invectivando teatralmente a filha.
― Mas...
― Psch! Comi e cala, menina! ― ordenou autoritário.
― Ah! Então é o Austin?! ― desabafou o arquitecto, fitando enigmaticamente o afilhado e empiscando orgulhosamente à netinha.
― Não é nada, padrinho!
― Sosseguem, ― apaziguou a médica ― que o vermelhinho só será meu por mais uma semana: vou vendê-lo!
― E de qualquer maneira, diz a história, a Bela Adormecida, casou-se com o Príncipe Valente e teve muitos filhos bonitos e engraçados para encher os quartos do Castelo! ― concluiu altiva, atirando ao seu progenitor um beijo reconciliador.
Seduzidos por tão sábia sentença, aqueles corações fizeram ecoar pelo salão uma salva de palmas triunfante. No fim do lanche, ainda quiseram traquiná-la um pouco mais para lhe arrancar respostas do arco-da-velha, mas ela não foi em fitas nem em promessas. E, durante o resto da tarde, enquanto os adultos discutiam de coisas demasiado complicadas para a sua idade, Cély preferiu deitar-se de barriga em cima de uma esteira e pôs diante da televisão, rindo com os palhaços do programa infantil.
Entretanto, como naquela noite o Júlio devia jantar com os sogros na Amadora, Rui aproveitou para antecipar o regresso a Santo Amaro com a filha e o padrinho. Indecisa até ao último minuto, Cris optou, finalmente, por dormir no solar para, trancada no seu refúgio predilecto, reviver as inesquecíveis e transcendentais horas passadas na suite 202 do Hotel Palácio.
Enquanto rolavam pela Marginal, o arquitecto não parava de cismar com a ideia da revelação progressiva que o afilhado lançara apenas para o ar no meio da palestra, com o intuito de o fazer reflectir, sobretudo a ele, tão impregnado de misticismo desde que retornara da Terra Santa. Embalada pelo vovozinho, a Celina dormia.
― Há uma coisa, em que venho a matutar e, confesso, me faz alguma confusão, filho ― disse o velhote, pensativo.
― Que coisa?
― Essa teoria da Revelação Progressiva até parece plausível, mas vem contrariar e revolucionar tudo o que nos ensinaram sobre Deus ao longo dos séculos e isso preocupa-me, particularmente, agora que sinto chegada a hora de me apresentar diante do Criador.
― Mas que ideia! O senhor, que nunca fez mal a ninguém, não deve apreender essa hora, porque ela será fabulosa para si. O padrinho vai tornar-se imortal e rever a madrinha Alice!
― Quando te ouço, fico tranquilo, mas depois, sozinho, começo a duvidar de tudo. Isto é muito confuso, filho. Se não te aborreço, gostaria que me falasses disso. Tu leste isso nalgum livro? Não será essa teoria uma lavagem cerebral de uma dessas seitas que proliferam por esse mundo fora e começam a contaminar a alma do nosso povo? Tu vê lá, filho!
― Não seria melhor falarmos disso ao serão, padrinho?
― Quanto mais depressa melhor! Eu queria dormir sossegado!
― Bom, já que insiste. Como sabe, ― principiou ― na antiguidade, quando os homens, constatando a sua ignorância e a sua impotência, sentiram a necessidade de recorrer ao Sobrenatural para os ajudar a resolver os problemas da sociedade e a desvendar os fenómenos da natureza e inventaram os deuses...
― Certo.
― E essa demagógica mistificação colectiva durou muitos séculos até que um dia um homem, Abraão, ousou escutar e obedecer à voz da sua consciência e descobriu o Deus Único: Javé! E foi, Javé, ser invisível e inacessível ao comum dos mortais, que proibiu os sacrifícios humanos por o corpo ser o relicário de algo muito mais importante: a alma! E a ideia da Vida Eterna surgiu logicamente. Mas... O padrinho...
― Sim, continua!
― E aqui começa a Teoria da Revelação Progressiva, porque, desde logo, os Patriarcas sentiram a necessidade de instruir o povo, de mudar as mentalidades e os comportamentos e de explicar novas descobertas, o que pressupunha a existência de Educadores e de Profetas que guiassem o povo, saciassem a sede suscitada pela curiosidade do saber e, sobretudo, lhe desse o remédios que curasse os males que, entretanto, foram aparecendo, mas a ideia do Deus Único nunca agradou aos poderosos.
― E o que é que os profetas têm a ver com a Revelação Progressiva?
― Bom, há religiões que não admitem a ideia de mudança e de aperfeiçoamento contínuo, como Deus exige. Explico-me: o padrinho imagine que a Humanidade é uma criança, que as Eras são as classes e que os Profetas representam os professores. Ora bem, na escola, a criança tem um mestre para a primeira classe porque a sua capacidade está limitada; depois cresce, desenvolve-se e vêm outros educadores para lhe ensinar coisas novas, porque ela assimilou e digeriu o conhecimento anterior...
― Só que, na escola, os professores complementam-se e as crianças respeitam os diversos mestres que tiveram ao longo da vida, ao passo que as religiões e os seus seguidores se combatem!
― Bom, esse é o comportamento dos fanáticos e dos falsos profetas: não respeitam nada nem ninguém, mas nas religiões verdadeiras os profetas vindouros eram mesmo anunciados pelos seus predecessores! Repare que o próprio Jesus Cristo no-lo confirma, na Bíblia, quando disse que muitas coisas teria para nos revelar, mas não o faria porque nós não as entenderíamos. É que a Mensagem de Jesus Cristo, a sua mezinha para os males da sua Era, tal como a de outros profetas antes dele, veio curar males de um tempo bem determinada. Cristo avisou-nos ainda que, depois dele, surgiriam outros Profetas, outros Mensageiros, uns bons e outros maus, como infelizmente os destes tempos. Além disso, hoje sabemos que a Religião e a Ciência são os dois motores da Humanidade e nenhum deles funciona sem o outro, porque o espírito é denominador comum de ambos. Mais, toda a sociedade que se baseie só num desses pilares, está condenada ao fracasso. A queda de impérios e de civilizações tão diversas quanto antagónicas, no-lo confirma. O Império Comunista está a asfixiar-se e morrerá ingloriamente, porque quis voar só com a asa da Ciência, representada pelo Materialismo, rejeitando impiedosamente a da Religião. O comunismo cairá, seguramente, antes de ver a terceira geração, antes do 3º milénio, depois de ter contaminado o mundo...
― Valeu a pena ter passado pelos Salesianos, não valeu?
― Se valeu! Com eles aprendi a ser homem e a criar o meu próprio espaço de liberdade no meio da ditadura, a escutar o meu espírito. Os Salesianos eram exímios pedagogos que procuravam desenvolver, sobretudo, os nossos pontos positivos e estimulavam, pela liberdade e pela alegria, as nossas capacidades, em suma, ensinavam-nos a sermos homens, enquanto que os outros impunham e atrofiavam a nossa personalidade. Os diocesanos de Vila Real, pelo menos no meu tempo, eram perfeitos ditadores. É, uns formavam homens, outros abades.
― Porque não quiseste ser padre?
― Sinceramente, nunca soube porque saí do seminário, quando tudo fazia crer que seria esse o meu destino. Eles gostavam muito de mim e eu deles, mas um dia ouvi a voz da minha consciência e parti. Talvez que..., não, não deve ter sido por isso... ― balbuciou hesitante.
― Não deve ter sido pelo quê, filho? ― insistiu paternalista.
― Nos últimos meses de seminário eu só já pensava na Dina. É, troquei Deus por uma mulher... e talvez foi por isso que Ele se vingou e ma levou.
― Vingou?!
― Desculpe, não, não foi Ele, deve ter sido o destino!
― Ai o destino! ― bradou enigmático, beijando a Cély que, entretanto, acordara e ficara quietinha a escutá-los.
― Vá, padrinho, não se atormente que, no íntimo, eu sei que Deus é bom, e que nos ama verdadeiramente, senão não me tinha guardado a Cris.
― A Cristina é um diamante, como a madrinha Alice e a Dina, à sua maneira, o eram! Se Deus se lembrasse de mim...
― Sossegue, porque enquanto o senhor não atingir o seu estado de perfeição terrena, para não ter que voltar uma segunda vez, Deus não o chamará. Os homens justos só precisam de passar uma vez pela Terra...
― É, lá está outra coisa que gostaria de abordar contigo, mas..., como estamos a chegar, ficará para depois.
― Certamente, padrinho, quando me vir sem fazer nada, toque-me no assunto, porque eu nem à quarta passagem pela Terra estarei purificado. Por isso, antes que me esqueça, não vá o demónio ou destino pregar-me alguma, e se eu não for à sua frente, quando estiver junto de Deus, peça-lhe que me faça um desconto ― concluiu irónico.
Ao entrar na cerca da vivenda, apercebeu a Sra. Noémia, que gesticulava no terraço. E nem o ruído ronronante da Mercedes o empidiu de ouvir o apelo esganiçado da velhota:
― Ruizinho! Venha depressa ao telefone! É a menina Cristina!
Largando tudo, o advogado correu a pegar no auscultador.
― Alô! ― bradou ofegante.
― Demoraste tanto, meu amor!
― Oh, vim nas calmas a conversar com o padrinho!
― Tu não te chateias por eu não ter ido dormir contigo, pois não?
― Claro que não, meu amor!
― Se soubesses como te amo, Pat.
― Ó fofinha, eu também te amo e desejo imensamente...
― O que vais fazer esta noite?
― Vou ler, escrever, meditar, pensar em ti e, se calhar...
― Se calhar, o quê? Não me digas que ainda vais sair? Tu vê lá!
― Ah, se calhar, ainda vou telefonar à Vera, a jornalista que..., conheces?
― Aquela com quem a Dina te pôs à prova?
― Sim, essa mesma... Ei, apesar da hora tardia, não penses que...
― Sei lá, se ela precisar... ainda és capaz de te armar em bom samaritano.
― Eu jurei ser-te fiel, mas há horas para tudo..., mesmo para a fraqueza!
― Se desconfio que entre ti e ela há mais que uma simples amizade... eu mato-te! ― ameaçou arreliada.
― Não se afogue num copo de água, senhora doutora! ― ironizou provocador, ouvindo-a ranger os dentes.
― Por favor, não me gozes!
― Ai tu é que passaste a tarde a dar-me baile e agora... queixas-te?
― Como? Se nem eu me apercebi?!
― Pois é, durante o cochilo da sesta, coladinho como estava, quase que perdi as estribeiras, mas aguentei e lá me resignei, pensando que tínhamos a noite por nossa conta... Porém, quando me apercebi que... Catrapus!
― Que aconteceu? Caíste? ― indagou curiosa, rindo-se dele.
― Caíram-me redondos ao chão. Se calhar ficaram por aí! Olha, se precisa deles, vai procurá-los que... aqui não sinto nada. Boa noite! ― exclamou brincalhão.
― Não, Pat, por favor ― rogou lacrimosa.
― A menina merecia mesmo que tivesse desligado e a mandasse à fava sem um beijinho, ouviu?
― Desculpa, meu amor, não foi por não querer! Eu estou toda...
― Vá, então dorme tranquila e descansa..., que amanhã...
― Sim...
― Nada, só queria dizer que amanhã me contentarei em te beijar os pés!
― Oh! Só os pés? ― retorquiu frustrada.
― Os pés, as mãos, a boca..., tudo!
― Mesmo?
― Mesmo tudo... o que a menina deixar!
― Então beije à vontade, que eu sou toda sua, majestade!
― Não me excite, por favor, que senão ainda perco as estribeiras e...
― E...
― Ai, que crueldade! Por favor, não prometa nem diga mais nada que...
― Hum! Adeus! Pensa em mim, meu amor! Hum! ― rogou voluptuosa, cobrindo de beijos e auscultador.
― Adeus, sibarita, cabrita, ratita, por favor, não gaste a dita cuja... fonte dá de beber à dor quando se atinge a apoteose do amor! Adeus, meu amor, que não beijo para não incendiar este desejo imenso que me deixa tenso... Ai, que crueldade... Ai! ― concluiu inspirado, queixoso e frustrado.
Com o amor no ar, aquela noite nunca mais quis acabar. No silêncio, o poeta recordou o dia da sua ressurreição no Mar do Inferno.
“ Oh, como te amo, Cris! ” ― balbuciou desvairado, colando docemente os lábios no insensível travesseiro até que o sono o arrebatou a tão lamuriosa realidade.
Continua em : Capítulo IV
LMP, LUXEMBURGO - FEVEREIRO DE 1997 / Lud MacMartinson
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