CAPÍTULO XIII
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EPÍLOGO
Neste sábado, 14 de Maio, foi o despertador quem desenlaçou os noivos. Consultando o relógio, beijaram-se e, sorrindo, mantiveram-se inertes em platónica contemplação durante cinco minutos. O brilho intenso das retinas enamoradas, aureolando-lhes o rosto plácido, e as suas mãos, firmemente entrelaçadas, davam ao eco da felicidade, que jorrava dos seus corações apaixonados, um encanto celestial. Antes de abandonar o leito conjugal, aproveitando o silêncio matinal, eles repetiram e selaram com um beijo na testa o juramento de fidelidade eterna.
Depois do duche, vestiram uns jeans e uma t-shirt e desceram para o restaurante, onde encontraram a família a tomar o pequeno almoço. Saudando-os jovialmente, assentaram-se e, respirando fundo, beberam um sumo de laranja. Deixando-os sós, D. Susana subiu para arranjar a Celina, antes de, com a ajuda da nora, vestir a filha que só voltaria a ver o noivo no patamar da igreja, quando o pai lha entregasse.
Às onze horas, quando a bordo do BMW, conduzido pelo arquitecto, a catedrática se dirigiu para a praça do santuário, as escadarias da basílica já estavam repletas de convidados, de repórteres, de curiosos e de visitantes que, não podendo vir no dia das aparições, haviam reservado este sábado para cumprirem as suas promessas. Alinhados face a face, numa ala gigante que se estendia das escadas de granito até à capelinha das aparições, onde surgiria a noiva, aquela mole ingente não cessou de aplaudir o noivo, que vestia um elegantíssimo smoking. A sogra arvorava orgulhosamente um chiquérrimo vestido azul escuro, sobre o qual brilhavam as suas jóias.
As câmaras contratadas pelo Diário obedeciam ao comando da Vera, que, tal realizadora de cinema, charmosa como nunca, não cessava de indicar os melhores ângulos para a filmagem?. À medida que se abeirava do Ximenes, postado em vigília no patamar, Rui ia descobrindo, com enorme regozijo, o olhar radiante dos amigos, entre os quais, a uns metros do primeiro degrau, apercebeu Sua Excelência o Sr. Embaixador de Portugal em Kinshasa, Dr. Crisóstomo de Almeida, e a esposa, que lhe lançaram um aceno discreto.
Subidas as escadas, o sacerdote timorense, que viera na quinta-feira para rezar um rosário pela sua martirizada pátria com os seus compatriotas peregrinos, beijou respeitosamente a mão da catedrática e, fixando o ex-colega com aquele seu olhar irreverente, disse:
― A multidão não tira os olhos de vocês, Sra. Professora. Será melhor virarem-se ― sugeriu o padre.
Obedecendo, deram meia volta e, encarando jovialmente a multidão, lançaram-lhe um beijo. Pouco depois, todos os olhares se voltaram para a capelinha, onde surgia Celina, de cabelo curto, num magnífico vestido cor-de-rosa. Ostentando os brincos e as jóias da mamã, que o astro rei fazia reluzir, ela era o espelho perfeito da Dina. Segurando cuidadosamente a cesta das alianças, ela não tirava os olhos do carro da noiva, um automóvel antigo florido a preceito, onde a médica e o papá aguardavam que os padrinhos, mais atrasados, se adiantassem e fossem postar-se no primeiro degrau das escadarias. De luvas brancas e atento ao aceno do pai da noiva, o condutor abriu as portas, para que o advogado, saindo, desse a mão à filha, que não parava de se mirar e ver se os olhos, lábios, os brincos, o penteado e o véu estavam como quando saiu do hotel.
Pousando, finalmente, o sapato branco no macadame negro, amparada pelo papá, que ostentava um chapéu de cartola alta e um casaco à grilo com uma gargantilha de ouro, a noiva desvendou toda a magnificência da brancura rendilhada, donde emergia a madeixa dourada. Lembrando-se do comprimento da cauda do vestido, Celina foi segurá-la até pisarem o solo da praça, deixando-a depois arrastar pelo chão e correndo a postar-se diante dela. Reabrindo e alinhando as alas, a multidão aplaudiu-a vigorosamente até às escadarias: centenas de flashes, disparados dos quatro pontos cardeais, faziam brilhar ainda mais no pescoço esbelto o medalhão da profecia e os brincos de rubis azuis; do patamar, o noivo não se cansava de a admirar, medindo mentalmente a distância que a separava do primeiro degrau para, oferecendo-lhe os dedos, subirem juntos as escadarias e entrarem de mão dada na basílica.
Finalmente, voltando ao seu mundo de sonho, o rei Tapiur foi colher a princesa Sirc e, esperando que o velho rei Rágde beijasse pela última vez a mão da filha, ofereceu-lhe a dele, principiando a caminhada até ao altar do mundo, atrás da princesinha Anilec, que lhes abria o caminho, e sob a escolta do cavaleiro Oilúj e a dama Aivlís, testemunhas do enlace real. O místico rei Xiléf, a leal servidora Aiméon e a rainha Anasus, a quem o marido dera o braço na passagem, seguiam-nos a uma respeitosa distância.
Entrando na Basílica guiados pelo sacerdote Senemix, os noivos foram recebidos por uma melodiosa nupcial e o sorriso dos meninos do coral, que, perto do altar, os aguardavam pacientemente.
Nos primeiros bancos, o nubente descobriu os tios e os primos transmontanos, a quem empiscou orgulhosamente e saudou com um aceno; a noiva sorriu-lhes e acenou-lhes discretamente, mas a Celina, essa, já nem se lembrava deles, tão distante e nublada na sua memória atribulada se encontrava a última viagem com a mamã à rude e árida terra transmontana.
No altar, os noivos, iluminados pela luz dos vitrais, escutaram de pé a introdução sacerdotal. Segurando o ramo de flores com ambas as mãos e concentrada na cerimónia, a noiva mal olhava os fotógrafos e as câmaras para desconsolo dos repórteres que, enfeitiçados, queriam colher o misterioso encanto daquele olhar esverdeado.
Durante a missa, a voz fina dos seminaristas, enfaticamente distinguida pelo silêncio geral, fez vibrar de alegria o misticismo no coração do arquitecto que, na primeira fila, não tirava os olhos do Santíssimo. Quando, depois de uma brilhante homilia sobre a força do Amor, o sacerdote desceu para ouvir da boca dos noivos o sim que todos ansiavam, a quietude da basílica, por vezes quebrada pela tosse, apurou-se, impondo-lhes um silêncio sagrado. Esboçando um sorriso, o padre encarou o casal e, chamando a Celina para o seu lado, disse jovial:
― Finalmente, depois de eu ter estado para aqui a pregar e a querer ensinar o pai-nosso ao vigário, chegou a vez dos noivos nos dizerem o que importa.
― E o que é que o Sr. Padre quer ouvir? Que nos amamos e que queremos Deus nos una eternamente? ― perguntou corajosamente a noiva, consultando os pais e os padrinhos.
― Pergunte, que nós respondemos! ― sugeriu o noivo.
― Normalmente, quando os noivos são muito tímidos e envergonhados até sou eu quem tenho que lhes fazer uma pergunta antes, mas como vocês tiveram muito tempo para pensar, imaginem que ficaram prisioneiros lá na selva e não têm nenhum padre para vos casar...
― Ui, assim, não sei como começar, Rui! ― disse a noiva, atrapalhada.
― Está bem, eu começo! ― adiantou o noivo tranquilo.
― Pois, então façam o favor de se virarem para os homens, porque Deus, esse já viu e sabe tudo ― sugeriu o celebrante, empiscando à assistência, embasbacada com o ritual.
― Bom, Cris, porque tu e Deus sabeis que te amo e é com o mais firme propósito de fazer-te feliz e ser-te fiel na Terra e no Céu, quero diante de todos perguntar-te se ainda tens dúvidas da minha sinceridade e...
― Não! ― bradou comovida, fitando-o amorosamente.
― Oh! Oh!! Oh!!! ― exclamaram os distraídos, desconsolados.
― Eh, que ninguém desmaie, porque a pergunta ficou a meio! ― clarificou o noivo, bem-humorado, antes de prosseguir: ― Então, se já não te restam dúvidas, pensa bem e diz-me lá se estás disposta a honrar-me e a ser-me eternamente fiel e...
― Sim! Sim, meu amor!!! ― gritou lacrimejante, arrancando uma salva de palmas às testemunhas e emocionando os pais e os padrinhos com aquele contagioso pranto de felicidade.
― Ufa! Ainda bem que ela disse sim, Ximenes!
― Pois é, agora vamos ver se a senhora doutora conseguirá...
― Se calhar não! ― arguiu Rui, empiscando à Celina e ao padrinho.
― Se calhar o quê?!
― Nada, falava com Deus!
― Se falava com Deus, então diga-me: sente-se capaz de resistir às tentações da carne e jura ser o marido fiel por quem esperei estes anos todos? ― perguntou séria, perscrutando-lhe o olhar.
― Sim, juro, meu amor, juro!!! ― bradou convicto, beijando-a na boca, enquanto a igreja aplaudia entusiasticamente.
Deixando-os acabar de bater as palmas, o sacerdote ironizou:
― Realmente, estes desavergonhados nem na igreja de Nossa Senhora de Fátima pedem licença a Deus para...
― E o Sr. Padre acha que é mesmo preciso pedir licença a alguém para fazer o bem? ― observou baixinho Cély, encarando o celebrante.
― A Celina tem razão. Faz bem sem olhar a quem e nem pedir licença a ninguém! ― relembrou o sacerdote.
E, depois de beijarem as alianças, os noivos ofereceram-nas um ao outro, para que, usando-as e respeitando-as, a fidelidade fosse eternamente o cimento da felicidade. Depois, pousando-lhes a estola nas mãos, o celebrante concluiu solenemente:
― Abençoe-vos Deus, Todo-Poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo. Não separe o homem o que Deus uniu. Caríssimos noivos, agora, sim, estais unidos pelo indissolúvel sacramento do matrimónio. Parabéns e muitas felicidades! ― declarou o sacerdote, beijando graciosamente a mão da médica e abraçando demoradamente o amigo do seminário, a quem segredou ao ouvido: ― vê lá se consegues dominar a irascibilidade, Rui, porque a Cristina é merecedora de tudo o que em ti há de melhor!
Um coro de palmas, ecoando estridentemente pela Basílica, aplaudiu o beijo furtivo que eles se deram nos lábios como dois passarinhos, antes de receberem as felicitações da Celina, dos pais e dos padrinhos.
Postados discretamente nos seus lugares, os repórteres não perderam um só instante daquele juramento sagrado, para que a memória, mesmo apagada pelo tempo e o esquecimento, tivesse onde se avivar e recordar aquele momento de inesquecível felicidade. E a missa, de agradecimento à Virgem Mãe terminou com a consagração e a imploração da benção de Nossa Senhora de Fátima para os noivos e todos os casais do mundo.
Depois das assinaturas, os esposos posaram para as habituais fotos com a família no altar e, de mãos dadas, atravessaram a nave principal da igreja, parando apenas diante da entrada, onde, apesar das recomendações do sacristão, foram submersos por milhares de pétalas e grãos de arroz, antes de serem calorosamente felicitados pelos convidados, que não arredaram pé sem a tradicional foto do grupo nas escadarias da basílica, visto as individuais ficarem para os jardins e o pinhal do solar.
Lá no pico do firmamento, o Sol, envergonhado com tanto brilho, deu largas à sua ira infernal para ofuscar o encanto daqueles corações apaixonados, mas em vão. Conduzindo o cortejo até ao fundo da praça, Pat e Cris não se cansaram de distribuir beijos e sorrisos, numa simplicidade desconcertante, fazendo-os subir e crescer na simpatia e na estima populares. Ao passar junto da capelinha das aparições, Cristina deu a mão esposo e foi depor o seu ramo, que a Celina lhe devolvera depois de arrancar uma rosa branca, nos pés da imagem sagrada, a quem, numa atitude de fé e gratidão, rezou com o marido uma fervorosa Ave Maria.
E os duzentos e cinquenta convidados, aproveitando a sombra das azinheiras, dirigiram-se para os autocarros e sossegaram o estômago, antes de se meterem a caminho do Monte Estoril, num concerto de mais de cem quilómetros de constantes buzinadas e calorosos cânticos de júbilo, que fez acorrer às bermas da Estrada Nacional número 1 os habitantes das aldeias por onde passavam e estranhar os automobilistas, que iam cruzando.
Quando as dezasseis horas repicaram festivas no salão, toda aquela gente já se desalterava à sombra refrescante dos pinheiros do solar, onde foram recebidos pelos comandos do Sr. Major Contreiras, a quem uma síncope inoportuna da esposa impedira de se deslocar com os seus homens, como prometera, até Fátima. Vestidos a rigor, os soldados prestaram orgulhosamente as honras militares, que não os largaram enquanto os fotógrafos não imortalizaram aquele ápice de felicidade!
Entretanto, enquanto uns bebiam e petiscavam, servidos por uma dezena de serventes, outros aproveitavam para tirar uma fotografia com os noivos perto de um canteiro de flores, religiosamente protegido por três moços, que não cessavam de recomendar, sobretudo aos miúdos mais traquinas, que tivessem cuidado e não tocassem nas flores.
Depois foi a vez de os noivos posarem sozinhos para os repórteres, lançando-lhes dezenas de sorrisos, ora langorosamente apaixonados, ora seriamente enigmáticos.
Feitas as fotos com a família, os noivos dirigiram-se para junto do coral e do padre Ximenes, a quem a noiva quis agradecer com um generoso envelope, antes de beijar os seminaristas um a um. Foi então que o sacerdote clamou frustrado:
― Quem me dera ser menino!
― Se o Rui deixar...
― O quê?! Para ele ainda perder a vocação?! Não, nem pensar! Eu não quero que Deus passe a vida a chatear-me o juízo...
― Só um não faz mal, Pat! ― disse a noiva, contristada.
― Bom, como Ele, a estas horas deve estar a dormir a sesta, beija lá esse desavergonhado ― consentiu o noivo.
― Hum! Obrigado, Cristina! ― agradeceu o timorense, oferecendo timidamente o rosto moreno à noiva que, beijando-o dos dois lados, piscou ao marido que os mirava jocosamente por entre os dedos abertos.
E o copo de água campestre, em que cada convidado, numa ordem e numa calma invulgares, se serviu pessoalmente, veio saciar os mais esfomeados. Os garotos, esses, enchida a barriga com sumos e doces, aproveitaram o pinhal para jogar aos cow-boys e aos polícias e ladrões, esquivando-se a tão cerimoniosa recepção.
Ao pôr do sol, depois de terem visto as provas das fotografias e escolhido as que mais lhes interessavam, os soldados, o coral e muitos dos colegas da directora retiram-se, ficando apenas os amigos das tenebrosas horas africanas e os angolanos, com a Paula, para os divertir com o inconfundível e irreverente sotaque, a casar alegremente palavras contra natura.
Partido o bolo, os noivos ergueram as taças de champanhe e, brindando, aproveitaram a euforia geral para se esquivaram-se aos convivas e correr para a suite 202 do Hotel Palácio, onde se embriagaram de amor.
No Domingo, 15 de Maio, começando o dia com um copioso almoço, mal se falaram. No silêncio dos seus olhos morava uma incomensurável e indescritível felicidade, divinamente regenerada pela cibernética amorosa dos seus dedos. Cristina vestia o mesmo conjunto róseo do casamento civil, enquanto Rui, mais descontraído, preferia combinar as calças com um pólo e um casaco de malha, donde sobressaía o crocodilo da marca francesa.
Servidos discretamente, eles não paravam de se excitar, desejar e desnudar mentalmente, como se a longa noite de núpcias estivesse para culminar neste delicioso manjar. Depois de um delicioso Baileys, o licor preferido, voltaram ao solar, onde a família, repousando da azáfama da véspera nos bancos do jardim, os aguardava para um derradeiro lanche antes de partirem para a lua-de-mel.
A professora, que foi a primeira a avistá-los, ergueu-se e, sorrindo, foi beijá-los, a meio da alameda verdejante, mirando bem as íris amorosas da filha, que, num apertado abraço, lhe segredou:
― Que felicidade, mamã!
― Isso não é nada, comparado à alegria da maternidade, filha! ― assegurou a mãe, abraçando o genro.
Entretanto, Celina, acorrendo lesta, lançou-se ao pescoço do papá, que a levantou como quando era bebé e a beijou demoradamente no rosto macio, antes de a pousar novamente.
― Hoje ainda estás mais bonita! ― reparou a menina.
― Porque dizes isso, Cély, se até trago o mesmo fato?!
― Então não é verdade que os olhos dela estão mais lindos hoje, vovó Susana?!
― Claro que estão, filhinha, só quem não tem coração é que não vê!
― Não vê o quê, mamã?! ― perguntou Júlio, curioso, aproximando-se e abraçando o cunhado.
― Que a felicidade faz brilhar ainda mais os olhos da tua mana, filho!
― Mesmo?! Deixa ver, maninha. Ui, até queimam! ― gritou o irmão, beijando-a no rosto.
― A comadre veja lá, olhe que a menina vai nascer antes do tempo! ― ironizou Rui, reparando na barrigona da Sílvia.
― E eu até nem me importava nada, se tudo se passasse bem! Isto, ter que esperar nove meses, é uma chatice, compadre! ― acrescentou Júlio, impaciente.
― Ai estes homens! ― exclamou a professora, fitando o filho e o genro.
― Ontem, parecias o Conde de Monte Cristo, papá! ― opinou Cristina, oferecendo o rosto ao pai.
― Conde?! Então não foi sua majestade Rágde I quem levou a princesa ao altar?! ― retorquiu o advogado, desconsolado, beijando a mão da nova rainha do castelo.
― Claro que era! Onde tenho eu a cabeça!
― Estou a ver que o champanhe te deu a volta à cabeça, filha!
― O champanhe?! Foi o amor!
― Então o desavergonhado não podia esperar pela lua-de-mel?
― Por falar em lua-de-mel, onde...
― Psch! É segredo, comadre! ― cortou Sílvia imediatamente.
― Pronto! Mas..., o Dr. Félix não vai connosco? ― estranhou Cristina.
― O Félix está a descansar, filha. Logo à noite, quando formos para o aeroporto, passaremos por Santo Amaro.
― Pois, o vovô Félix está a ficar tolo.
― Porquê, filhinha? ― perguntou-lhe o pai.
― Porque diz que agora, que o papá e a Cris se casaram, Deus já o pode chamar para junto da vovó Alice ― explicou Celina, tristonha.
― Não, Cély, ele ainda há-de ir ao baptizado do Arturzinho!
― Do Artur e da Alice! É, se Deus vos der uma menina chamai-a Alice! Se isso acontecesse, o Félix ainda viveria mais de vinte anos! ― sugeriu prontamente a professora.
― Eu pensei em Susana ou Vilhelmina, mas se a mamã...
― Ah! Se tu tivesse conhecido a Alice, como eu!...
― A Alice era uma mulher encantadora, uma princesa, filha! ― confirmou o pai, nostálgico, acariciando a mão da esposa.
E, meneando a cabeça, recolheram ao salão, tomando parcimoniosamente o lanche. Para dissipar a compaixão que a evocação da Alice lhes suscitara, a família passou o resto da tarde a admirar as fotos que a Vera lhes deixara em quatro álbuns plásticos, que os noivos levariam com eles no avião.
Depois de uma derradeira chávena de chá e de um pedaço de torta de morango, que a Maria Cristina tanto adorava e, menina como a Celina, se regalava de comer às escondidas para que a mamã não lhe chamasse comilona, a sogra e a nora foram mudar de roupa, guardando religiosamente o segredo da lua-de-mel que Cris tentou desvendar, em vão, antes de arrancarem para o aeroporto.
Às vinte e uma horas, parando em Santo Amaro para se despedir da velhota que, por não gostar nada de aviões, não seguiria com o patrão até ao aeroporto, Cristina murmurou queixosa:
― Veja lá, Sra. Noémia, que os malandros ainda não nos revelaram para onde vamos. Diga lá, eu merecia-lhes isto, merecia?!
― Claro que não, filhinha! Você faça de conta que não sabe de nada, mas o senhor arquitecto diz que também gostava de ir convosco ver o Cristo Rei e comungar da mesma simplicidade e, sobretudo, da mesma fé do povo brasileiro ― revelou a governanta, beijando-a enternecida.
― A senhora era capaz de cuidar sozinha da Celina, era?
― Vocês podem partir tranquilos, que eu e a minha netinha somos como carne com osso! ― afiançou a velhota.
― Olhe, faça o favor de meter três ou quatro mudas de roupa do senhor arquitecto naquele saco do Rui, com meias e cuecas para quinze dias, enquanto eu ligo para o aeroporto, sim? Ah! Não se esqueça das calças de ganga e das sandálias e, sobretudo do passaporte! ― gritou apressada.
Adivinhando-lhe os intentos, a governanta sorriu e sem hesitar. Na estrada, os Bêémes negros começavam a achar as despedidas longas de mais, quando viram a Cristina surgir com mais um saco na mão.
― Porque não levas o guarda-roupa? ― ironizou Júlio, segurando o volante do carro do pai.
A mana limitou-se a esticar-lhe a língua e a sentar-se ao lado do marido.
No aeroporto, estacionados os carros, Júlio carregou a mala da irmã e o Rui a dele, enquanto o arquitecto, serviçal, não deixou que a médica pegasse no saco que metera ultimamente na mala, enquanto a Celina, toda catita, segurava jovialmente a bolsa dos documentos.
Na sala de embarque, Cris consultou o quadro das partidas e, agarrando o esposo pela mão foi cochichar para trás de uma planta artificial, antes de se dirigir ao balcão da TAP, onde falou com uma empregada muito gentil. Sílvia, que guardava religiosamente as passagens na bolsa, mal os viu murmurar demoradamente com a funcionária, sorriu e, apercebendo-se que, afinal, alguém traíra o segredo, chamou o marido, que se apressou a oferecer os bilhetes à mana, como prenda de casamento, recordando-lhes que, em princípio os queria ver de volta dentro de quinze dias, mas que a validade dos mesmos era de dois meses, o que fez torcer imediatamente o nariz à Celina. Depois de registarem as bagagens e obterem a carta de embarque, Cris e Pat voltaram para junto da família, que os espiava a uns metros. Vendo o arquitecto tristonho, a médica bradou comovida:
― Ai, padrinho, é tão fácil fazer o diagnóstico da sua doença!
― Vá, não me diga que o Rui já lhe transmitiu o dom da vidência? ― retorquiu o arquitecto, cansado.
― Eh, que ei saiba, não casei com um bruxo!
― Claro que não, meu amor! O padrinho é que sempre pensou que eu nasci com o sexto sentido! ― explicou Rui, empiscando ao velhote.
― Que sintomas apresento eu de anormal, para a Cristina ver a minha fraqueza? ― arguiu o arquitecto, desconfiado.
― Bom, eu não vou revelar-lhe os meus segredos profissionais, mas se adivinhar realmente o mal que o apoquenta, o padrinho tomará o remédio que lhe prescrever. Aceita? ― propôs a médica.
― Aceito, porque a menina não adivinhará ― disse confiante.
― O padrinho anda triste porque pensa que nunca chegará a realizar um dos seus sonhos!
― Que sonho?
― Aqui está o seu saco! O padrinho virá connosco para o Rio de Janeiro, para comungar da fé do povo brasileiro ― ordenou a médica, empiscando à família.
― A Cristina adivinhou, Félix! ― deduziu a professora, vendo-o corar.
― O senhor doutor jurou! ― relembrou a Sílvia, encantada.
― O vovô pode ir que eu e a vovó Noémia cá nos entendemos e depois, se for preciso, até vou quinze dias para o Monte Estoril e a vovó Susana poderá dar logo agora as férias à Maria ― sugeriu a netinha, perspicaz.
― Excelente ideia, Celina! ― apoiou Dr. Edgar, encorajando o amigo a servir de anjo guardião aos pombinhos.
― E o bilhete? E o passaporte? Além disso...
― Não arranje desculpas, padrinho. Se conseguirmos lugar neste voo, irá connosco! ― declarou o afilhado, exibindo o passaporte.
― Que pena que eu não possa ir também! ― exclamou Júlio, invejoso.
― Vocês arranjam-me cada uma, filhos! ― desabafou o arquitecto.
Erguendo-se lesta, Celina correu ao balcão da TAP e, depois de uns cochichos com a empregada, voltou a murmurar de dedos cruzados.
― Oh, não sabia que a Cély falava sozinha! ― notou Sílvia, reinadia.
― Então vás não vedes que eu estou a rezar para que alguém falte?!
― Lá por isso, eu rezo para que o voo esteja completo ― arguiu o arquitecto, provocador, pondo as mãos em oração.
― O que o vovô tem é taf-taf! ― exclamou Celina.
― Se preferir viajar incógnito, o padrinho não se incomode! Depois, no Rio de Janeiro, se nos cruzarmos ou achar que o nosso programa lhe interessa, acompanhe-nos! ― esclareceu a médica.
― Pois, mas já sei que vou sentir Saudades da minha netinha! ― choramingou o arquitecto.
― No Brasil também há telefone e papel, vovô! ― retorquiu Celina, mimalheira, beijando-o carinhosamente na face.
― Pronto, se eu não vos incomodo... ― disse resignado.
E, graças ao impedimento de um casal, o místico e tímido arquitecto pôde, finalmente, realizar o sonho que, com a sua querida Alice, fizera há vinte e cinco anos, pouco minutos antes do parto fatal que o enviuvara e lhe roubara a razão de viver, projectando-lhe a alma numa década de solidão e pesar.
Meia hora antes do embarque, vendo o bilhete na mão, Dr. Félix ofereceu um copo aos amigos. No bar, confessou-lhes que, agora, acreditava que o destino somos nós quem o fazemos, porque a força do espírito, que é de longe superior à do corpo, nos torna imortais e nada pode influenciar a imortalidade. Percebendo mal o misticismo do colega, o casal Sampaio escutou-o, porém, com aquela atenção que só a verdadeira amizade consegue suportar, mesmo quando a mais paradoxal incredibilidade possa surgir.
E nunca um adeus, sempre triste, deu tanta alegria a quem partia e aos que ficavam, porque não há maior alegria que deixar de viver na virtualidade de um sonho real e entrar, de corpo e alma, na realidade do sonho virtual, que é a felicidade terrena.
Quando a hospedeira de bordo lhes pediu que se despachassem, pois o avião devia partir, Celina, que quisera ser a última a beijá-los, gritou maliciosa:
― Cuidado com as Cariocas, papá!
― Psch! A Cris pode ouvir!
Acenando, os viajantes entraram no túnel e desapareceram na escuridão. Cristo, que saudaram à partida, em Almada, não dormiu naquela noite, porque, brincando com a ubiquidade, numa meteórica corrida pelo ainda desconhecido bloco tempo espaço, por onde transita o destino da humanidade, num ilusório conceito da realidade, acolheu-os, de braços abertos, à chegada, para lhes apresentar, orgulhosamente, o Rio de Janeiro, a paradisíaca Cidade Maravilhosa, onde o amor, com aquelas praias imensas e aquelas garotas esculturais, tem mais encanto e teria, seguramente, outra magia, se a violência também não rimasse com o dia a dia, e a opulência não atentasse a dignidade humana.
EPÍLOGO
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Daquela inesquecível e transcendental lua-de-mel, Pat e Cris trouxeram, além das numerosas recordações para a família e para os amigos, sobretudo, a certeza que o futuro da Humanidade dependerá da criação e adopção de uma Língua Auxiliar Universal que fará da Terra o País de todos os homens, mas que antes, porém, tornar-se-á imperioso que a Linguagem do Amor seja compreendida, falada e praticada pela Raça Humana, para o ódio, a guerra e as demais formas de preconceito, origem de todos os males corporais e espirituais, cessem.
No Brasil, coração do Paraíso tão maltratado pela opulência e a ganância de um punhado de ateus, descobriram que a alegria também podia rimar com a miséria do dia a dia e a felicidade ecoar pelas favelas da cidade. De lá, onde Deus ainda mora com os Seus e a crença na força do Espírito faz com que a Esperança seja a última a morrer, Pat e Cris trouxeram, ainda, a convicção de que nada vale ao homem tudo possuir, se perder o Amor, porque nele se esconde a chave da Vida Eterna.
Finalmente, apaziguado e exorcizado, o destino, o génio da lâmpada da vida, sentindo-se feliz à sombra daquele amor puro, esqueceu as diabruras do passado e colocou-se ao serviço dos seus adorados mestres, apadrinhando a felicidade de tão apaixonado lar.
Nas férias grandes, Celina, que ficava semanas inteiras no solar a ajudar e a divertir com as suas insolências a vovó Susana, lamentava ser tão nova, pois amaria imenso tê-la como professora na faculdade. Quando não se divertia na piscina, onde adorava chapiscar a água, Cély era a confidente e a companheira das horas livres da Cristina, cuja gestação começava a ganhar contornos assustadores.
Atarefados com a avalanche súbita de negócios, que os impedia de descansar mais que cinco horas por dia, os advogados começavam a dar sinais de fadiga e rogavam a Deus que a Suely e o 1º de Agosto chegassem para trancar as portas do escritório e gozar duas semanas de férias.
Neste sábado, dia 6 de Agosto, Cris reuniu a família no solar para celebrar o décimo aniversário da sua primeira vez. Depois da ceia, ofereceu-lhes um digestivo afrodisíaco e, pegando na Força do Destino, cujo sucesso de livraria esgotou a primeira edição numa semana, releu amorosamente o capítulo que ela mais adorava, porque o seu poeta soubera interpretar divinamente os seus desejos intrínsecos.
Mais tarde, ao serão, depois dos tios terem partido para a Amadora com a Suely e os vovôs Félix e Noémia terem regressado felizes a Santo Amaro, Celina, vendo que, cansados, os vovôs Susana e Edgar se retiravam também, foi sentar-se entre o pai e a mãe e começou a traquinar o mano.
De repente, vendo a barriga da gestante ondular; colou o ouvido perto do umbigo e murmurou baixinho:
― Psch! Silêncio! O bebé quer contar-me um segredo!
Pat e Cris calaram-se e, afagando-lhe os cabelos, deixaram-na beijar, acariciar e escutar o ventre durante mais de cinco minutos.
― Eles estão brigar, papá!
― Eles?! Não te iludas, filha! O bebé ainda não...
― Ai! Realmente... Ai! Puxa! Nunca senti pancadas como estas! ― confirmou gemebunda.
― Se é briga... quer dizer que vais ter gémeos...
― Gémeos, filha?! Oh! Deixa-te de ilusões, Celina!
― Porquê?! Não gostavas de ter gémeos, meu amor? ― interferiu a esposa, sorrindo orgulhosa.
― Gostar?! Adorava! Mas... já viste o esticão que essa barriga iria levar?
― Pois, mas teria a vantagem de só acontecer uma vez.
― Uma vez?!
― Se não quisesses mais filhos, claro!
― Se calhar o teu corpo...
― Não me digas que tens medo que eu perca a linha? Quer dizer que se eu perder a linha, já não gostas mais de mim?
― Não, não é isso, Cris!
― Tu vê lá o que fazes, papá, olha que o amor é muito frágil!
― Frágil, filha?! O meu é de titânio, é de...., de eternomium, percebes?
― De eternomium ?! ― indagou divertida.
― Deixa, filha, eternomium é nome de louco.
― Não é não, Cély! Eternomium deve ser a medida, a duração e a essência do Amor de quem aspira à verdadeira felicidade. O Eternomium só cresce nos corações puros, filha! ― esclareceu a médica, filosofal.
― Ah, agora compreendi! ― desabafou a inocente, cobrindo o ventre maternal.
E, empiscando-lhes com um ar de gozo, Celina beijou-os no rosto e correu para o quarto das relíquias do sótão para ver brilhar tão estranha qualidade nas fotos da mamã.
Aquelas férias passaram-se maravilhosamente, a maior parte do tempo no solar, para evitar os perigos da marginal e aproveitar a sabedoria da vovó Susana enquanto era tempo. A Força do Destino tornou-se o seu companheiro de piscina e de cabeceira. E, perspicaz, quantas vezes pediu ao pai e à Cris que lhe relessem e explicassem certas passagens da autobiografia da família, para que, falando-lhe, eles lhe devolvessem a voz e a vida da mamã, a rainha Anid, a quem fora dedicado o livro, que vivia aconchegada no seu coração.
No fim da tarde desta noite de S. Silvestre, sábado 31 de Dezembro, o solar encontrara, finalmente, a paz, depois de ter sido o palco de inúmeras festividades durante aquele memorável e ditoso ano que agora fenecia, e em que as lágrimas da dor e da felicidade tantas vezes se haviam confundido. Cris fora a única a resistir à tentação do espectáculo do Casino do Estoril, pois pressentia que era ali que Deus e a avó Vilhelmina queriam que ela conhecesse a alegria da maternidade.
Sentados no sofá da sala de televisão, onde esfolharam os álbuns do casamento e da lua-de-mel, Pat e Cris não cansavam de se beijar, enquanto Celina, atarefada com os petiscos, ia e vinha, num misterioso corrupio que perturbou a contemplação do pai, muito impressionado com as incessantes ondulações na barriga da esposa. Não resistindo à sua inquietação, Cély perguntou:
― Onde está o telefone do seu ginecologista, mamã?
― No anuário, mas..., a estas horas, o Dr. Serra deve estar no casino.
― No casino? Ai-ai, mamã!
― Não te preocupes, que o Artur não vai nascer esta noite, filha!
― E se os gémeos quisessem nascer no solar, no primeiro dia do ano?
― Gémeos?! Mas que coisa, Cély! O senhor doutor nunca me falou de tal coisa! ― bradou a médica incrédula.
― Pronto, se não é para hoje, não vale a pena afligires-te, mamã!
― Não te zangues, filha! Nós acreditamos em ti! ― adiantou o pai.
― Então é melhor irmos já para o hospital, papá!
― Gémeos até posso ter, mas fica tranquila que o parto não é para esta noite. Eu nem sinto dores! Vá, acalma-te e vem ver a televisão que 1983 ainda tem uma hora de vida! - disse a gestante, indicando-lhe o sofá.
― Está bem, só vou beber um copo de água e volto já! ― acatou Celina, virando as costas e rindo de soslaio.
Como prometido, a menina veio sentar-se ao lado da mamã e começou a acariciar-lhe a barriga. Perto da meia-noite, Cris franziu a testa e, sentindo uma dor aguda, suspendeu a respiração por segundos. Ocupado com os copos, o marido não se apercebeu de nada.
― Eu bem te avisei?! ― disse Celina, vendo-a contorcer-se e agarrar-se desesperadamente ao sofá.
― Cris! Cris!!! - gritou o advogado aflito.
― Ui, acho que a Cély tem razão. Por favor, liga para o hospital e diz-lhes que me mandem alguém.
― Vá, não te aflijas que... Escuta! Acho que estão a bater à porta! ― bradou inquieto, alertado por um ruidoso e insistente truz-truz.
― Ai! Vai ver, Pat, vai ver! ― clamou a médica, segurando a barriga.
― Mas que surpresa! Quem os avisou? ― inquiriu o advogado, perplexo.
― Quem havia de ser? A fada, Dr. Rui! ― respondeu o ginecologista.
― Também aqui, Dra. Celeste?!
― Ah! A mim, Dr. Rui?! A mim foi o dedo mendinho! ― respondeu a pediatra, corando ligeiramente.
― Venham que a Cris já começou a sentir dores! ― avisou no salão.
― Quem é, Pat? ― perguntou a médica, da sala de televisão.
― Ninguém, mamã! ― exclamou Celina, risonha.
― Ah!!!... A Celina é muito malandra, não é, Dra. Celeste?
― Malandra?! Previdente! Quem nos dera ter um anjo assim no hospital, Sra. Directora!
― Porque é que o senhor doutor não nos avisou que íamos ter gémeos?
― Gémeos, Sra. Directora?! Que eu...
― Escusa de fazer essa cara, porque não é por isso que lhe vou pagar a dobrar, Dr. Serra ― avisou a parturiente, fazendo-lhe uma cara de zangada.
― Não sabem o show que perderam no Casino! ― disse o ginecologista, auscultando-a.
― O que o Sr. Dr. Serra queria era ser o rei do espectáculo!
― Rei do espectáculo?! Desculpa, mas não entendo, Celina!
― Então já viu onde chegaria a sua fama, se a mamã tivesse o Artur e a Alice diante de todo o mundo, com as câmaras de televisão...
― Com tanta fantasia, a sua filha só pode ser mesmo uma Fada, Dr. Rui!
― Ainda duvida, Dr. Serra?
― Não, agora não! Mas... onde quer...
― No hospital como toda a gente! ― respondeu a parturiente.
― No hospital?! Foi neste solar que a senhora directora nasceu, não foi?
― Foi, Dra. Celeste! É, foi aqui, na manhã do dia 3 de Outubro de 1957.
― Pois, só uma balancinha podia fazer balançar o meu coração! ― arguiu o advogado, segurando e beijando carinhosamente a mão da esposa.
― É, e só um Sagitário sonhador, idealista e terrorista, podia trespassar o meu... Ai! Ai!.. ― gritou a médica, sustendo a barriga.
― O Dr. Rui e a Celina vão ter que nos ajudar ― avisou a pediatra.
― Ai! Por favor, leva-me para a cama da mamã... Ai! Oh... as águas...
― Agarra-te bem, meu amor! ― implorou o marido, solevando-a.
Abrindo as portas atrás dela, Celina nem teve tempo para se virar e admirar o prazer que o papá sentia em carregar a esposa e os filhos.
Eufórico, o pêndulo do salão não se cansava de bater e repicar as doze badaladas, anunciando a chegada de 1984, mas eles, preocupados com os gritos e suspiros maternais, nem se lembraram mais do Réveillon.
Entretanto, Celina telefonara ao vovô Félix que, deitado no seu quarto, lia calmamente A Força do Destino, cujo sucesso planetário, depois do filme dos americanos, viera garantir ainda mais o futuro do afilhado. Acorrendo prontamente com a governanta, como a netinha lhe pedira, pois temia não conseguir dar conta do recado, o arquitecto fez a viagem com o coração nas mãos, subitamente obcecado pelo trágico parto da sua amada Alice.
No quarto dos sogros, Rui Patrício era o mais feliz dos homens, contemplando orgulhosamente a sua progenitura, enquanto os doutores, orgulhosos pelo dever cumprido, lavavam as mãos no luxuoso quarto de banho do solar.
Entrando em pezinhos de lã, Félix surpreendeu o afilhado a beijar as mãozitas roxas de um bebé, enquanto a mãe segurava e embalava outro com os seios.
― Mas que surpresa, meu Deus! ― exclamou estupefacto.
― Quer pegar no Artur, padrinho?
― Não, filho, posso deixá-lo cair! ― balbuciou intimidado.
― Não tenha medo, padrinho! Vá, pegue então na Alice que é mais calma ― volveu Cristina, estendendo-lhe graciosamente a filha.
― O quê?! Esse é uma menina?! Oh, que gira! Por favor, Cris, vire-a bem para mim. Oh! Alice! Olá, Alice! Sorri para mim, Alice! ― implorou comovido, roçando-lhe o dedo nos lábios, como se as lágrimas cristalinas, que jorravam dos seus olhos cansados, lhe ressuscitassem o grande amor da sua vida.
― Porque chora, padrinho? - questionou o afilhado, comovido.
― Sabes, filho, com este epílogo, até A Força do Destino tem mais encanto, porque a vida é o verdadeiro destino da Humanidade!
― O destino da Humanidade é a Imortalidade, onde tudo é eternamente presente, por que a Verdadeira Felicidade que rima com generosidade e solidariedade...
Contemplando os recém-nascidos com a Fé no fundo da alma, eles deixaram que o Amor dos seus corações apaixonados comandasse para sempre o destino que Deus lhes deu. E foi assim que Artur e Alice, príncipes de Deus, iniciaram a aventura da existência neste Maravilhoso País que a Humanidade elegeu como Terra.
― Oh! Chegou ao Fim!
― Não, a Força do Sonho, como a do Amor, estará contigo para sempre, porque ela vive dentro de cada um de nós. Escuta, pois, a voz da tua consciência e segue-a porque será a ela que prestarás contas no Dia da Verdade e nunca te esqueças que a Verdadeira Felicidade rima infalivelmente com Solidariedade, Dignidade e Generosidade, porque a bem-aventurada Eternidade é o grande desígnio da Humanidade.
Luís Macedo Pereira - Luxemburgo Fevereiro de 1997
Barra da Tijuca, Julho de 1997
Lud MacMartinson
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