CAPÍTULO IV
No domingo à tarde, depois do cinema no Casino do Estoril, onde viram Star Wars, um magnífico filme de G. Lucas, Pat e Cris decidiram ir beber um Baileys, ao Fantasy Bar e devolver o jornal ao servente.
Apercebendo-os do interior, Jorge sorriu e, obedecendo à mímica do advogado, foi encomendar-lhes o pedido. Um raio de sol iluminava a juventude que, ainda excitada pelos efeitos especiais do filme, corria euforicamente para o Tamariz, perturbando o trânsito da Marginal.
― Boa tarde! ― saudou o garçon, pousando os licores.
― Boa tarde, Jorge! Aqui tem o seu jornal e muito obrigado.
― Ora essa, eu tinha-lho dado, Dr. Aguiar.
― Eu percebi, Jorge, mas aqui fica a fazer-me publicidade, não acha?
― Certamente, senhor doutor, certamente, mas...
― Mas?
― Pois, mas tem razão, fica a fazer publicidade a toda a gente! ― respondeu o servente, perturbado, desenrascando-se atabalhoadamente.
― O Jorge queria dizer outra coisa ― interferiu a médica, fitando-o intensamente.
― Mas não devia, sobretudo, na sua presença, Sra. Doutora! ― respondeu cabisbaixo, corando como um pimento.
― Ora essa! Não devia?! Porquê? ― insistiu a donzela.
Vendo o moço asfixiar-se de medo, o advogado lançou-lhe uma bóia de salvação, dizendo:
― À Sra. Doutora, o Jorge pode dizer tudo, porque nós não temos segredos! Por isso, diga lá a quem é que o jornal me faz publicidade...
― A umas doidivanas do Jet Set que vêm para aqui encher-me a cabeça!
― Ah bom?! E que lhe dizem essas...; essas doidivanas? ― interferiu divertida.
― Que o Rui, desculpe, ― rectificou confuso ― que o Sr. Dr. Rui de Aguiar é muito..., ai, qual era o nome? Ai..., muito, muito charmoso e que..., que, pronto, que gostariam de ir com ele para a cama! ― confessou cabisbaixo.
― Só isso, Jorge?
― Que me lembre, só, Sra. Doutora! ― respondeu nervoso.
― Oh! Que pena! ― lamentou o Don Juan do Jet Set.
― O Jorge não se lembra de mais nada, mas se calhar até tem fotos delas? ― precisou a médica, empiscando-lhe.
― Não, por acaso não tenho, Sra. Doutora, mas descanse nenhuma delas lhe chega aos calcanhares.
― Obrigada! É tudo, Jorge!
― Com licença e desculpem por tudo! ― disse aliviado.
― Jorge!
― Sr. Doutor!
― Porque me escondeu esse segredo, durante tudo este tempo?
― Porque sempre o soube homem de uma mulher!
― Só?!
― Pelo menos aqui e que eu saiba! ― ironizou o servente.
― E não se enganou! Vá, beba lá um whisky que eu pago.
― Obrigado, não posso! Com licença! ― agradeceu sensibilizado, retirando-se com uma vénia.
Pouco depois, aproveitando uma distracção do empregado, os namorados colocaram uma nota de quinhentos escudos debaixo do cinzeiro e saíram discretamente. Ao passar diante do Hotel Palácio, a médica olhou para as escadarias, sorriu e apertou fortemente os dedos do seu conquistador que, sentindo-lhe a libido ebuliente, lhe retribuiu com um mordedela na orelha.
Caminhando distraídos para o carro, nem se aperceberam que a Paula não parava de os mirar descaradamente, encostada ao Austin de cigarro na boca.
― Ei! Ei!! ― bradou risonha, gesticulando espalhafatosamente.
― Olá! Por aqui Paula? ― perguntou surpreendido, apertando-lhe a mão chocolate donde sobressaíam as longas unhas vermelhas.
― A sua caixinha de fósforos anda para caramba, doutora Cristina!
― Não me diga que se apaixonou por ela?
― Por ela não, por ele! O gajo é pequenino, mas faz tudo como os grandes e consegue entrar onde muitos não cabem. A sério, quer vendê-lo
― Se o seu patrão for o seu fiador...
― E quanto me vai custar este brinquedo, Dra. Cristina?
― A si, deixo-lho por duzentos e vinte contos.
― Negócio feito, se o Dr. Aguiar aceitar ficar como meu fiador, evidentemente.
― Acertem lá o negócio que eu cauciono este sorriso da Paula.
― Podes fazer-nos uma declaração de venda, Pat?
― Em dois minutos, se me arranjarem papel
― E quanto devo dar-lhe de sinal e primeira prestação, Dra. Cristina?
― O que puder sem complicar a sua vida.
― Então sinalizo com metade e o restante, se o patrão fizer o favor, vai-mo descontando em prestações mensais de dez contos.
― Com certeza, Paula.
― Obrigada!
― Bom, aqui têm a declaração, mas leiam-na e pensem duas vezes antes de a assinarem ― aconselhou o advogado, entregando a folha à secretária.
― Está bom, Sr. Doutor! ― bradou a angolana, assinando-a sem hesitar.
A médica colocou também a sua rubrica na declaração, que o advogado, utilizando um papel químico, fizera em duplicado, e devolveu o original à Paula.
Eufórica, a secretária retomou o volante e arrancou cautelosamente. Pat e Cris entraram no Mercedes, beijaram-se e retornaram ao solar. Quando chegaram, o Toyota Celica do Júlio esperava-os diante do portão. No salão, o Major Contreiras e a D. Elvira conversavam com o Dr. Edgar e a esposa.
― Chegam mesmo a horas! ― exclamou a professora.
― Boa tarde a todos! ― bradaram os namorados.
― Boa tarde! ― responderam os hóspedes, pousando as chávenas de porcelana e levantando-se para os saudarem.
― O Júlio e a Sílvia também vieram, papá? ― perguntou a médica.
― Sim, devem andar a passear pelo jardim ou pelo pinhal.
― Então, D. Elvira, que nos conta de bom desde sexta-feira?
― O Dr. Rui nem imagina como trago o coração! Parece novo! ― confidenciou timidamente, olhando o marido.
― Até o meu, doutor Aguiar ― acrescentou o militar.
― Ainda bem, senhor major, porque ai de quem deixar de o sentir!
― O Júlio ― disse a mãe ― ainda regressa esta noite à base, mas estará de volta para a Consoada, na sexta-feira. Aliás, eu acabo de dizer à D. Elvira que esta será a nossa mais bela consoada dos últimos anos. Pois além de nós todos, contaremos com o senhor arquitecto e a Celina. Por isso, Sr. Major, não arranjem programa para essa noite.
― Esteja tranquila, Dra. Susana, que não faltaremos, nem chegaremos atrasados, sobretudo agora que temos o Dr. Rui de Aguiar para nos fazer sonhar!
― Pois, mas não se esqueça que os sonhos nem sempre são de cor-de-rosa. Eu, por exemplo, já sonhei a preto e branco!
― Engraçado, o meu colega é daquelas pessoas que quanto mais se abaixa, melhor se vê ― observou o célebre jurista.
― O senhor quer ver-se livre de mim, Dr. Sampaio?
― Aqui não, mas no tribunal dava-me jeito!
― Estou a ver que, afinal, o papá tem o gosto amargo da derrota...
― De maneira nenhuma, filha!
― Bom, então se querem irritá-lo, digam-lhe que o comunismo vai dominar o mundo! ― segredou Cristina.
― Ah, se viramos para aí, o Dr. Rui sabe que poderá contar sempre com a minha lealdade e a dos meus homens! ― interferiu prontamente o militar.
― E até eu, apesar da pouca utilidade, me colocaria de bom grado sob as suas ordens, Sr. Major Contreiras, nem que fosse para limpar canos das espingardas ― ironizou o jurista.
― Até eu! ― apoiou imediatamente a catedrática, empiscando ao genro.
― Bom, D. Elvira, vejo que só nos resta aderir a eles ou fugir para bem longe ― concluiu a médica.
― Vocês são muito patriotas, mas, graças a Deus e ao Papa, não será preciso, porque esse monstro entrou em putrefacção, muito antes de dar o último suspiro, o que deverá acontecer antes do fim do milénio ou ainda desta década, se o K.G.B não matar Sua Santidade antes. Aquilo é só fachada!
― Acha, Dr. Rui? ― perguntou a piosa D. Elvira um tanto incrédula.
― O comunismo foi o maior bluff intelectual, social e político do século. A D. Elvira pode ficar tranquila e ter a certeza de que um sistema assim, baseado na ditadura, na corrupção, no clientelismo apparatchik, na máfia de estado e, sobretudo na perseguição religiosa, não poderá sobreviver por muito mais tempo ― disse convicto.
― Eu também nunca como esses idiotas vermelhos podem ser tão cegos e manterem-se fiéis a tal demagogia! ― exclamou o militar.
― Posso fazer-lhes uma sugestão? ― interferiu a médica.
― Com certeza, menina Cristina ― apoiou D. Elvira.
― Na sexta-feira, os senhores vêm cedo, logo depois de almoço, jogam umas cartadas e discutem política, enquanto nós damos uma ajuda às criadas, porque nós temos um compromisso...
― Façam o favor! ― anuiu o Major.
― Então, com licença! Adeus!
― Sexta-feira cá estaremos para continuar a nossa discussão. D. Elvira, Sr. Major, foi um prazer vê-los com um coração novo! Com licença ― escusou-se o advogado, acenando jovial, arrastado pela sua musa.
― Não esperais pela Sílvia e pelo o Júlio, filha? ― perguntou o pai.
― Estamos com pressa. Adeus!
― Adeus! ― responderam todos.
E não perderam mais tempo, porque assim apaixonados, era crime de lesa felicidade fazer esperar o amor, sobretudo naquele lugar abençoado onde, entregando-se um ao outro pela primeira vez, Cris descobrira que Pat haveria de ser seu marido, nem que para isso tivesse que sofrer o calvário da ruptura e que esperar uma eternidade para o ter só para ela!
Na segunda-feira, 19 de Dezembro, tal como combinado na véspera com os sogros, o advogado decidiu ir fazer compras à capital com a Cély e a Cris, para evitar os crónicos apertões alfacinhas e o corre-corre dos últimos dias da quadra natalícia na baixa lisboeta. Depois de um copioso breakfeast no solar, onde pernoitara, os namorados passaram por Santo Amaro, onde Celina os aguardava impacientemente. Na Cruz Quebrada, abandonaram a Marginal, virando à esquerda, e seguiram, pela estrada de Linda-a-Velha, até Miraflores consultar o correio e agendar as tarefas do mês de Janeiro.
No escritório, a secretária era uma autêntica pilha de nervos.
― Olá! Bom dia! Ei, acalme-se, Paula, que Roma e Pavia não se fizeram num dia! ― exclamou o patrão, vendo correr desesperada.
― Olá! Ufa! Ai, ainda bem que vieram! ― retorquiu tresloucada.
― Então? Acalme-se, Paula, que eu conheço todos os dossiês de cor!
― Não é por isso, patrão ― esclareceu ainda tonta, apagando o cigarro.
― Explique-se!
― É por causa do seu carro ― disse aflita, virando-se para a médica.
― Se bateu, não se preocupe: ele está assegurado contra todos os ricos.
― Não, não é isso, Dra. Cristina.
― Roubaram-lho! ― exclamou o advogado.
― Não, vocês nem imaginam o que me aconteceu ontem à tarde.
― Fale logo, Paula, que me assusta ― ordenou a proprietária do carro.
― O gajo viu-me com o seu Austin no Campo Pequeno e quer, a toda a força, comprar-mo! ― exclamou embaraçada.
― Mas que gajo, Paula?! ― indagou a médica, sobressaltada.
― O mijadinho do hospital, a quem o Júlio apertou os tomates!
― Não me diga?! ― retorquiu estupefacta.
― Então, se lhe der lucro, venda-o, Paula! ― arguiu o advogado.
― E vocês não se chateiam?
― Por amor de Deus, de modo nenhum! Olhe, se ficou de lhe dar uma resposta, ligue-lhe já e diga-lhe que só lho vende se ele lhe trouxer os contos bem contadinhos na palma da mão e ainda hoje para evitar a dupla tributação de uma revenda ― aconselhou o jurista.
― O gajo disse que mo paga como se fosse novo, Dra. Cristina.
― Lérias, Paula!
― É verdade, o tipo é marado! Veja lá que o chanfrado saiu do carro dele, por sinal é uma bomba, e começou a beijar o Austin... O gajo sofre mioleira.
― O seu patrão tem toda a razão: venda-o já!
― Até parece que o maluco gosta mais de carros do que de mulheres! ― murmurou a secretária, discando o número que o doutor Santos lhe dera.
Entretanto, curiosa e disciplinada, a Celina revistara as prateleiras da sala e ordenara os arquivos, ajustando bem os ficheiros dos clientes mais recentes e bufando o pó dos antigos. Debaixo do vidro que protegia a escrivaninha do pai, descobriu uma foto sua, aos beijos à mamã, na sala do aeroporto, quando se despediu dela pela última vez, e as lágrimas saltaram-lhe como flechas das órbitas. Controlando a emoção, abeirou-se matreira da Cris e pediu-lhe uma foto. Compenetrada a escutar com a conversa da Paula e com o colega, tirou-a instintivamente da carteira e deu-lha, sorrindo distraída.
Apercebendo-se da excitação do maníaco, Paula empiscou às testemunhas e cravou no psicopata uma última flecha, concluindo:
― Pois é, Sr. Dr...
― Santos!
― Pois é, Dr. Santos, a sua conversa é bem bonita, mas quem tem que se pôr a milho daqui para fora sou! Ontem, dei com os pés no meu chulo e cabrão diz que me estripa. Ou o senhor me traz as patacas que diz que me dá bem contadinhas, e em notas de cinco mil para não me inchar muito a bolsa, ou o Austin foge comigo para o estrangeiro!
― Ei! Você não pode fazer isso! Ei! Espere...
― Até às onze, porque depois tenho que fazer a mala e pirar-me... Ei, o meu chulo já estripou...
― Pronto, faça as malas que, se quiser, às onze eu dou-lhe boleia no Austin até Santa Apolónia!
― Você nem as pensa! A estas horas, o Mané já lá pôs os capangas de sentinela! Ou me piro no vermelhinho ou num taxi! Tem uma hora, Sr. Dr. Santos, nem mais um minuto! Por isso, corra e encontre-me no endereço que lhe dei! Adeus! ― disse convicta, desligando bruscamente.
― Parabéns, você foi ... fantástica! ― aplaudiu o advogado, orgulhoso.
― Que imaginação, Paula! ― exclamou a médica, estupefacta.
― Oh! Não é nada, ontem fui ao cinema... ― disse envergonhada.
― Sim senhora..., a menina vai longe! Qualquer dia ainda a vamos ver a Hollywood! ― acrescentou carinhoso, empiscando à namorada.
― Hum! Vocês os dois... ― desconfiou a médica, enciumada.
― Por amor de Deus, Dra. Cristina! Não me diga que tem ciúmes de uma preta?! Ei, vaidosa sou, mas não tanto para não saber até onde posso ir com a minha vaidade! ― retorquiu a insolente, rindo maliciosa.
― Eu só queria traquiná-la um pouco, para pôr à prova os seus reflexos e o seu talento cénico! ― desculpou-se Cristina, embaraçada.
― E então?!
― Aprovada com distinção! Parabéns!
― Se passei no casting, quer dizer que posso fazer cinema, Dra. Cristina?
― Imediatamente! Não, daqui a quarenta minutos, no terreiro!
― Com aquele tarado sexual?
― Nem mais nem menos!
― E se ele me viola no capot do Austin?
― Desenrasque-se, consulte o guião... que ainda tem tempo ― sugeriu a médica, juntando-se aos seus amores no escritório.
Afinal, enquanto elas se picavam, o advogado aproveitara para escrever uma nova declaração de venda e rasgar a da véspera. Indiferente aos adultos, Celina fazia-se despercebida, pesquisando à esquerda e à direita no gabinete do papá. Espiando-o pelo espelho, retirou-se, apenas o viu entrar. Mal se instalou no cadeirão, Rui bradou entusiasmado:
― Cris!!! Por favor, chegue aqui, meu amor!
― Para quê, meu senhor? ― perguntou a médica, empiscando à Celina.
― Vá, assenta-te no meu cadeirão, fecha os olhos e diz-me se sentes...
― Oh! Que hei-de eu sentir, Pat? ― indagou a lourinha, ajustando-se cadeirão almofadado.
― Assim, Cris! Isso! ― indicou o advogado, obrigando-a a apoiar-se bem nos encostos laterais e deixar descair a cabeça para trás.
― Não digas que me queres fazer uma psicanálise, meu amor?
― Fecha os olhos! Respira profundamente... Não sentes nada?
― Não! Perdão, sinto uma sensação de conforto, de relaxe...
― Então continua de pálpebras bem cerradas e debruça-te sobre a escrivaninha. Isso; apoia as mãos no vidro.
― Ui! Está frio, mas..., sim... o cadeirão é gostoso e..., espera, não sei explicar, mas tenho uma sensação de..., sei lá, é como se fosse advogada, como se estivesse aqui sentada há uma eternidade. Não, pensando bem, não me é estranha esta cadeira! É como se este fosse o meu lugar de trabalho, sei lá, como se estivesse aqui!
― Podes abrir os olhas e retirar-te; Obrigado!
― Mas que consulta mais rápida! Qual é o seu diagnóstico, doutor! ― adiantou irónica, ajustando a camisola.
― Lamento muito, mas a senhora é um caso perdido ― retorquiu o psicanalista.
― Devias ter feito medicina ― disse a médica, apalpando o cadeirão.
― Cuidado, que eu não gosto de marcas! Já viu as que deixou no vidro?
― Lá por isso limpam-se. Ah!.. Eu sabia! ― exclamou atónica, deparando com a foto dela ao lado da Celina e da Dina.
― Sabia ou sentia?
― Sentia! Mas... onde conseguiste esta foto, meu amor?
― Essa é a foto que te pedi há pouco, Cris! ― respondeu Celina, atirando-lhes um beijinho da soleira da porta.
E aquela súbita emoção uniu-os num demorado e soluçante abraço. Enquanto o comprador não chegou, a secretária revistou o Austin, para não se esquecer de nada e, de pé, com o documento e uma esferográfica na mão, esperou que ele aparecesse, protegida pelo olhar do patrão, que a mirava lá do alto do quinto andar.
Às dez e cinquenta, um táxi imobilizou-se à sua frente, mantendo motor em marcha. Depois de inspeccionar minuciosamente o carro, o comprador conferiu maço do dinheiro e, contados os quatrocentos e cinquenta contos, fechou o negócio, assinando euforicamente a declaração de venda. Histérico e enfeitiçado pelo Austin, o cínico despachou o taxista com um aceno e apertou a mão à mulata. Dobrando o original da declaração de venda à pressa, Dr. Santos entrou no carro e arrancou a toda a brida, fazendo rodopiar o Austin e dando largas à sua loucura. Fitando o molho das notas, ela entrou em pânico e correu a entregá-las à proprietária.
Impressionada com tanto dinheiro, a angolana tremia como varas verdes. O patrão separou o maço e, dando-lhe uma palmadinha nas costas, disse:
― Aqui tem os seus duzentos e trinta contos, Paula! Agora, deposite-os no banco e analise bem as prioridades da sua vida, porque um carro é bom, mas acarreta muitas despesas e Lisboa dispõe de óptimos meios de transporte.
― Por amor de Deus, Dr. Rui, eu não posso aceitar este dinheiro todo! Não, isto não é meu! ― recusou confusa, devolvendo o dinheiro à proprietária.
― Olhe, Paula, o que vai acima de duzentos e cinquenta contos é fruto da loucura. Por isso, acalme-se, porque realmente o dinheiro faz perder a cabeça. Não se enerve e faça como o senhor doutor diz. Passe primeiro um Natal muito feliz com a família, mas não lhes diga nada, nem mude os seus hábitos e, sobretudo, não ceda à tentação. Depois de resfriar, a sua cabeça funcionará muito melhor e você saberá onde aplicar este dinheiro, senão peça conselho ao seu patrão!
― Será melhor ― anuiu humildemente, segurando a fortuna.
― Vá, Paula, para começar e, sobretudo, para prevenir, venha depositá-lo no banco. O B.P.A. de Algés ainda está aberto! ― sugeriu o advogado.
Vestindo o casaco de malha, a secretária guardou o dinheiro na bolsa e aproveitou a boleia. No banco de trás, Celina não parava de a beliscar e de lhe fazer cócegas para a descontrair e lhe arrancar aquela máscara sisuda. Em Algés, enquanto o patrão e a empregada foram fazer o depósito, Cris e Cély não pararam de brincar uma com a outra. Guardada a fortuna, Paula respirou de alívio e agarrou-se a eles aos beijos e aos abraços.
― Agora, aproveite para almoçar tranquilamente e, se não tiver cabeça para trabalhar, vá dormir um pouco ― sugeriu o patrão, sossegando-a.
― Que Deus lhe pague, Dra. Cristina ― disse cheia de gratidão.
― Deus começou a pagar-me, e com juros, no dia 2 de Novembro. Olhe, se não nos virmos mais, Feliz Natal e que o Ano de 1983 lhe traga o que mais deseja para si para a sua família ― acrescentou a médica.
Sorrindo à Celina, Paula acenou e encaminhou-se para a sua rua. Dali, o Mercedes entrou na estrada do parque de campismo de Monsanto e tomou a direcção de Lisboa. Na descida para o Aqueduto das Águas-Livres, o sonhador voltou a arrepiar-se com uma estranha sensação e confessou-o à médica. Incrédula, Cris beijou afavelmente a Celina e retorquiu-lhe que, com a caixinha de fósforos nas mãos do tarado, bem podia esquecer as visões e os sonhos premonitórios. Ele encolheu os ombros e sorriu. Mais tarde, depois de terem comido uns hambúrgueres no Mac Donalds, quando se dirigiam para os Armazéns do Chiado, passando por Santa Justa, o teimoso ainda pensou tocar-lhe novamente no sonho do Austin vermelho, mas, temendo ser ridicularizado, acabou por desistir e preferiu matutar sozinho.
À tardinha, de retorno a Santo Amaro, onde Cris tencionava dormir pela primeira vez, Celina não cabia em si de contente, abraçada a uma boneca que lhe dava pela cintura e até sabia chamar papá e mamã. A mala da viatura, essa, estava cheia de presentes para toda a gente, porque Cris e Pat haviam decidido festejar requintadamente o primeiro Natal juntos e, sobretudo, anunciar, finalmente, o noivado.
Depois da ceia, como o vento arisco não os deixasse escutar o mar encrespado do terraço, eles subiram e trancaram-se nos aposentos conjugais a reler as poesias dos vinte anos e a esfolhar os numerosos álbuns de família, ora sentados na borda da cama, ora deitados de barriga, trauteando os refrães que guardavam no coração.
No silêncio da noite e no calor da sedução, Rui, deu vida a uma ideia que germinara na sua cabeça, sugerindo-lhe que deixasse o hospital o mais rápido possível, pois, sob a alçada daquele maníaco, a vida deles estaria irremediavelmente contaminada. Sentindo-o verdadeiramente aflito, Cristina acalmou-o e jurou-lhe que não retornaria ao serviço, enquanto o Ministério da Saúde não tomasse a decisão que se impunha. E a sinuosa nudez, divinizada pela luz difusa do candeeiro da mesinha de cabeceira, espreitando pela túnica de musselina rósea, acabou por interromper as apreensões masculinas, submersas por um torrencial fluxo libidinoso. O jogo felino que se seguiu, atiçado pelo desejo, fê-los delirar e atingir os píncaros do prazer em menos de uma hora de carícias, murmúrios e gemidos langorosos, que os arremessou para as garras de um sono apaziguador, às portas da madrugada.
Terça-feira, graças às diligências de um alto funcionário público, grande admirador do ex-Conselheiro Sampaio, saneado em Abril, mas entretanto, readmitido nos quadros da função pública, a Dra. M. C. Galvão foi chamada ao Ministério da Saúde e aí pôde denunciar o ignóbil comportamento do director do hospital. A presença namorado, que adiantou a hipótese de denunciar publicamente o execrando e de lhe mover um processo-crime, se, entretanto, ele não fosse sancionado pela sua hierarquia, incitou a médica a defender energicamente a condição feminina, deixando o funcionário abismado com a sua personalidade.
Antes de abandonar o escritório do alto funcionário do Ministério, a quem agradeceu a amabilidade e a frontalidade, a doutora, que acabara por lhe revelar que o Dr. Rui de Aguiar era seu noivo, afirmou que, por razões de segurança pessoal e, sobretudo, de coerência, não voltaria ao hospital, enquanto o director lá se mantivesse. Foi então que, recuperando a memória, o Sr. Sérgio Afonso reconheceu o advogado e exclamou:
― Ah! É você! Depois do 25 de Abril, quando o Sr. Dr. Aguiar ainda era estudante, cheguei a chorar de alegria. A sua Love Story com a Sra. Directora do Diário fez-me sentir orgulhoso de si. A D. Dina, além de fascinante, era uma mulher muito corajosa.
― Se era, Sr. Sérgio Afonso! Mas o destino decidiu... enfim!
― Já que tiveram a amabilidade de confiaram um segredo tão importante, deixem-me desejar-lhes o melhor do mundo e uma longa vida a dois. Parabéns! ― bradou maravilhado, apertando-lhes entusiasticamente a mão.
― Muito obrigada, senhor Afonso ― agradeceu a noiva.
― Fique tranquila e diga ao senhor Conselheiro, seu pai, que o problema ficará resolvido antes do fim do ano ― garantiu o chefe de gabinete.
― O papá apreciará a sua intervenção, mas as mulheres do hospital, quando souberem, ficar-lhe-ão eternamente gratas, Sr. Sérgio Afonso.
― Quanto a si, Dr. Aguiar, vá sossegado que eu, ainda hoje, tratarei pessoalmente deste assunto e, mais uma vez, muito obrigado. A função pública teria outra eficácia, se os cidadãos não pactuassem com tais abusos.
― Por amor de Deus, Sr. Afonso, nós não queremos nem injustiça, nem vingança. O que nos move é apenas a dignidade humana. Quanto a eventuais sanções tampouco lhes damos importância, porque, afinal, o Dr. Santos até pode estar seriamente doente e, se assim for, só podemos lamentar o seu estado clínico.
― Compreendo a sua grandeza de alma e, se existirem atenuantes, pensaremos nisso, porque eu também sou avesso a processos expeditivos.
― Sr. Sérgio Afonso, muito obrigada e permita-me que lhe deseje um Feliz Natal e um Ano Novo muito próspero. Adeus!
― Igualmente e, por favor, transmita ao Sr. Conselheiro as minhas amistosas e cordiais saudações ― insistiu respeitosamente.
― Serão entregues! Com licença! ― concluiu sorridente, apertando a mão trémula do velho amigo do seu pai.
No carro, antes de arrancarem, sentindo-se mais apaziguados, Pat e Cris ainda equacionaram a hipótese de almoçarem em Lisboa e irem ao cinema, porém a alegria que sentiam encaminhou-os para Santo Amaro.
Depois do almoço, acompanharam a Celina até ao seu quarto, para o cochilo da sesta e contaram-lhe mais uma história da vida real, metamorfoseando-a em contos de fada, imitando a saudosa Dina. A voz suave e as carícias que ambos lhe davam fizeram-na adormecer rapidamente. Retirando-se para os aposentos conjugais, Cris continuou esfolhar os arquivos do estudante, enquanto o sonhador se esteirou sobre o leito e fechou os olhos. Além das poesias, que tivera a oportunidade de reler, a médica encontrou alguns gritos de revolta que ele nunca publicara. Um panfleto inédito, escrito em 1977, reteve a sua atenção. Sob o título, Aqui Portugal, ele escrevia:
“ Aqui, o homem permaneceu eternamente escravo dos caprichos do tempo e do egoísmo exacerbado de déspotas sanguinários que o poder divinizou pela força da baioneta; aqui, cada rosto crestado, pela fúria do contratempo, não é mais que o reflexo aterrorizante de um pedaço de inferno arduamente amassado pelo suor salgado de um quotidiano hilota; aqui, o pão amargo de cada dia é a imagem fiel da vida rude e austera do homem de um só querer e de uma só fé que os pios arautos dos senhores feudais venderam por um punhado de cátedras ao soalheiro; aqui, a força da razão foi substituída pela razão da força; aqui, o povo sofre em silêncio para não se ouvir; aqui, terra de meu país possível, o homem já nasce cadáver; aqui, o pequeno mundo jaze tiranicamente submergido pelas tenebrosas ideias deste poder, ávido de tudo possuir e nada repartir; aqui, por terras onde não passou Deus, porque até Ele teve nojo de nós, preferindo os palácios faustosos da capital às paupérrimas cabanas dos povoados, os lautos banquetes aos nacos de broa azeda e dura, fermentados pela solidão; sim, o Omnipotente trocou as bolsas douradas pelos farrapos suados dos andrajosos farroupilhas de mãos sem nada. Aqui, os hipócritas mensageiros de Deus são o retrato da exploração, eles, os traidores e os algozes das gentes humildes, que piamente os amamentaram e cegamente seguiram a ladainha servil. Aqui, os caçadores de recompensas, ignominiosamente denunciadas... Ai, como os detesto, os odeio..., porque, para cúmulo e depois de tudo, eles incluíram no escandaloso mercado negro, que dirigem do altar, um produto pago a preço de ouro e sangue: a LIBERDADE!
Sim, meu amigo, aqui, nestas paragens, o povo não contesta, não grita, não vive porque, pouco a pouco, os senhores das maxi-saias negras, tais vampiros do mal, lhes sugaram o sangue das veias, projectando-o, à força de muita água benta, num sono infernal. Por isso te digo que, enquanto a caridade rimar com abade, nós seremos, pura e simplesmente, os eternos escravos da sagrada impunidade, aqui, terra do meu país possível...”
Suspirando sensualmente, Cris dobrou panfleto e sorriu para o seu revolucionário, adormecido debaixo do edredão. Largando o arquivo, trancou a porta e, despindo-se, foi colar-se ao sonhador em platónica contemplação. Depois, naturalmente, os trejeitos ousados da irreverente acabaram por ressuscitar a virilidade, atraindo-a para mais um corpo a corpo que culminou com uma explosão transcendental, o que os obrigou a um duche em água tépida.
Antes do lanche, ainda telefonaram ao Dr. Edgar para os vir buscar, dado que não tencionavam sair mais do solar até ao dia de Natal, deixando assim o Mercedes com o arquitecto. Quando o BMW do advogado chegou, a Celina já tinha três mudas de roupa junto das caixas dos presentes, diante da porta. Depois de beber um carioca, o Dr. Sampaio saudou a velhota, a quem desejou um Feliz Natal e, despedindo-se do colega, pediu-lhe que não se esquecesse de ir tomar o pequeno almoço com eles, no dia 24 de Dezembro, dispensando a governanta de mais cedo. De braços no ar, a netinha não parou de lhe acenar e de lhe lançar beijos até à curva do pinheiro manso, deixando o avozinho a sorrir com os anjos.
Naqueles três dias de arrumações e preparativos para a noite da Consoada as criadas da D. Susana não pararam de receber ordens da irrequieta Cély que, colada à vovó, não se enchia de dizer isto é bonito, aquilo está mal, obrigando-as a executar tudo a preceito.
Quinta-feira à noite, antes de se deitarem, o Dr. Edgar e a esposa, contemplando o pinheiro iluminado e a decoração do salão, onde serviriam a ceia da Consoada, não conseguiam esconder o regozijo que sentiam. Maravilhado, o advogado exclamou:
― Que encantadora simplicidade, Susana!
― Até parece que passou por aqui um anjo ― disse a professora.
― Será que a Cristina conseguirá dar-nos uma netinha assim?
― Que pergunta, Edgar?! Claro que vai e, feliz como anda, não me admirava nada se ela já estivesse a caminho!
― Que bom, se o Júlio e a Sílvia se decidissem também!
― Se esses ainda não fizeram, nunca mais o farão!
― Achas?
― Aí, o nosso netinho ... já está seguramente ao quentinho!
― Que Deus te ouça, avozinha! ― disse confiante, beijando a esposa.
E, fitando-se enamorados, apagaram as luzes, retirando-se para o quarto.
Na manhã deste 24 de Dezembro, sexta-feira, quando a madrugadora Celina foi bater à porta do quarto do papá, o astro rei cercava o solar, no salão, a Maria punha a mesa e a Ana, a prima que vinha ajudá-la regularmente sempre que o trabalho apertava, fazia o café e cuidava dos biscoitos. Vendo que os casais ainda não davam sinais de vida, a pequenina voltou a deitar-se, mas os bichos formigueiros fizeram-na erguer-se e vestir-se. Lavando-se penteando-se à pressa, assentou a boneca na sua cama, cobriu-a e desceu a dar ordens às criadas, que, avistando-a tão catita, bradaram brincalhonas:
― Bom dia, D. Celina!
― Bom dia, meninas! ― exclamou altiva, inspeccionando a mesa.
― Está tudo como deseja? ― perguntou Maria, reinadia.
― Sim senhora, a menina aprendeu muito! ― acrescentou orgulhosa.
― Espero que no fim do mês, a senhora se lembre das nossas horas extraordinárias ― disse a criada, compondo os talheres.
― Fiquem descansadas que eu, apesar de ter boa memória, aponto tudo, tintim por tintim ― adiantou compenetrada, fazendo da mão um bloco.
― Olá, Cély! ― gritou a Ana pelo postigo da cozinha.
― A menina veja lá se não lhe ensinaram as boas maneiras. Faça o favor de se dirigir à nossa patroa como deve ser ― repreendeu a prima.
― Ah, desculpe! A Sra. D. Celina dormiu bem? ― rectificou a Ana.
― Como um anjinho, minha filha ― acrescentou Cély, empespinada.
― Logo à noite como é que vai ser? ― insistiu a empregada.
― Logo à noite, Maria, olho fino e pé ligeiro, senão adeus gorjeta!
― A senhora fique descansada que nós acordámos mais afinadas que o Big-Ben de Londres! ― assegurou a responsável, espalhafatosa.
― Então, já sabem, que nada desafine porque hoje só teremos cá gente fina: virão o Sr. Brigadeiro Júlio Galvão e a Dra. Sílvia; o Sr. Major Manuel Contreiras e a D. Elvira; o Sr. Arquitecto Félix Fontoura e a menina Celina Maria Sepúlveda de Aguiar Fontoura; o Sr. Dr. Edgar Sampaio e a Sra. Dra. Professora Susana, que assistirão ao noivado da princesa Sirc, nascida neste solar, com sua majestade o rei Iur. Por isso vejam lá como se apresentam, suas monas! ― zombou altiva.
― Isso mesmo, Cély, meta-as na linha! ― exclamou a dona do solar, admirando a encenação da netinha.
― Os vovôs dormiram muito! Deitaram-se tarde? ― perguntou curiosa, saltando das nuvens.
― Já passava da meia-noite, filha.
― Credo, D. Susana! ― exclamou a Maria, pegando no cesto fumegante que a Ana trazia da cozinha.
― Eu vou ver se a nossa princesa precisa de alguma coisa, sim? ― murmurou Celina, largando a mão carinhosa da vovó.
O perfume do café e o cheiro dos biscoitos faziam crescer água na boca. Pouco depois, apareceu o Dr. Edgar, airoso e rejuvenescido, que beijou afectuosamente a esposa na testa, logo seguido da netinha, a saltitar de contente, anunciando a chegada iminente dos noivos e acolhendo-os com uma estridente salva de palmas. Surpreendidos, eles só entenderam, quando a Celina, piscando, se dobrou para uma vénia real, sorrindo feliz. Adiantando-se, a princesa Sirc baixou-se para que ela a abraçasse e a beijasse antes do pai.
À mesa, o Dr. Edgar chamou-a para junto dele e serviu-lhe o café com leite, enquanto a esposa lhe passou a compota na torrada. Mimada, Celina falou-lhes das criadas, dizendo-lhes que elas andavam tão afinadas e ajuizadas que a gorjeta devia ser consequente. Os adultos sorriram e encarregaram-na de decidir se as criadas, no fim do dia, mereciam mesmo um prémio especial e uma folga na noite de S. Silvestre.
Pelas onze da manhã, o telefone tocou impaciente no solar. Cély, que, para poupar correrias cansativas às criadas, ficara por ali a esfolhar as revistas, atendeu-o.
― Alô! É da casa do senhor Dr. Sampaio! Quem tenho o prazer...
― Mas que recepcionista mais gentil! ― exclamou o interlocutor.
― Olá, tio Júlio! Quer falar com o seu papá ou a sua mamã? ― perguntou esperta.
― Com o que estiver mais perto, se fizer o favor, Celina.
― Espere um pouquinho, por favor, tio Júlio ― implorou meiga.
E, pousando cuidadosamente o auscultador na pedra de mármore, espreitou para o corredor, gritando:
― Vovô! Vovó!!! Depressa ao telefone que o Júlio está à espera.
A professora, que estava a compor o vaso de flores da sala de televisão, largou tudo e acorreu imediatamente, empiscando à netinha na passagem.
― Sim, filho. Onde estás?
― Mamã, posso convidar os meus sogros para virem almoçar connosco?
― Certamente, Júlio. O Dr. Félix também deve estar a chegar.
― E a que horas serve o almoço?
― Pelas treze horas, mas não se incomodem que, se for preciso, esperamos, por vós. Venham, sobretudo, devagar.
― Até daqui a pouco, mamã.
― Até já, filho!
Depois de pedir à Maria que colocasse dez talheres na mesa, porque, afinal, os convidados da ceia viriam todos para almoçar, D. Susana acabou de arranjar o vaso e passou rapidamente em revista o salão, ajeitando a mesa onde tencionava servir-lhes o aperitivo.
Ao meio-dia e vinte, os convivas começaram chegaram em fila indiana, cabendo ao Mercedes do arquitecto a honra de abrir o caminho, logo seguido pelo Toyota Celica do brigadeiro, cuja retaguarda era protegida pelo Opel do Major.
Avistando-os, a dona do solar correu a acolhê-los à entrada, enquanto que, mais atrasado, o marido preferiu aguardá-los no patamar. Perspicaz, Celina correra a avisar o papá e a Cris que os convidados tinham chegado. E a saudação geral ocorreu debaixo do pórtico que, tal abóbada de uma catedral românica, abrigava os visitantes. Terminado o caloroso skake-hands, os homens foram tomar um aperitivo, servido pelo anfitrião, enquanto as damas, depois dos beijinhos da praxe, de confidência em confidência, libertaram os seus corações do peso dos segredos.
Durante o almoço, cada um falou um pouco das suas raízes, recordando usos e costumes de outros tempos. O Major, ribatejano de gema, lembrou as largadas e as touradas à portuguesa, menos sangrentas, criticando-se, inevitavelmente, a crueldade das praças espanholas, onde o touro acabava por ser assassinado em plena arena, sob os olés dos aficcionados, como os cristãos dos primeiros séculos, a quem um dedo curvado do imperador marcava a hora; o Arquitecto, esse, apesar do meu misticismo, preferiu recordar as tradições da aridez transmontana, enquanto o Dr. Edgar, apoiado pelo filho e pelo genro, constatou que a sociedade cosmopolita, estava a ficar desarreigada, se exceptuassem as festas dos santos populares, no mês de Junho, que continuavam a recolher o entusiasmo da mesclada população alfacinha. As senhoras, pela voz da primeira delas, preferiram refrescar a memória com as reminiscências familiares, lembrando as noites de Consoada à volta da lareira com os pais, os avós, os bisavós, os tios e os primos, com quem jogavam ao rapa, com amêndoas, figos, nozes e até castanhas picadas secas no caniço. A D. Elvira, ainda lhes falou da mania que a filha, pequenina como a Celina, tinha de ir beijar várias vezes o menino Jesus, disfarçada com o xaile da mãe. Aí, o Júlio rompeu o silêncio e comentou que nunca imaginara a Sílvia assim devota, o que fez sorrir os homens. O Rui, que se mantivera muito calado, atendendo aos mimos da filhinha, confirmou que também tinha a sensação que, mesmo em Trás-os-Montes, a bússola perdera a agulha que norteava a vida para lá do Marão e, parafraseando Camões, disse que se mudavam os tempos e as vontades. Foi então que o Major lhe falou do ilustre colega de armas, Jaime Neves, transmontano como o Dr. Aguiar, que fora um dos baluartes da revolução, sobretudo quando se opôs à intentona da corja comunista. A Cristina, quase muda, como o mano, sentindo a política avançar sorrateiramente, aproveitou uma deixa do noivo para o fazer falar da Comunidade Económica Europeia, a C.E.E, a que Portugal aderiria em 1986, se tudo corresse bem. Depois de todos referirem as vantagens de tal adesão, como as ajudas ao desenvolvimento do país, através dos fundos de coesão e os programas de apoio ao desenvolvimento regional e a consequente modernização das vias de comunicação, assim como a consolidação da democracia parlamentar e do modelo social democrata, pois há muito que os partidos socialistas europeus se haviam divorciado do marxismo e metido, por assim dizer, o socialismo puro e duro na gaveta, o advogado focou o problema da perda da identidade nacional e a consequente sujeição ao dictat tecnocrata de Bruxelas; disse ainda que a Europa poderia adormecer ainda mais os portugueses que, à sombra das lecas da C.E.E, perderiam a noção da responsabilidade individual e colectiva, pois viver de esmolas nunca dignificou ninguém; lamentou também que a união das nações europeias tivesse sido, até ali, um casamento de interesse, à imagem dos das monarquias que tantas guerras havia provocado e tantos tarados havia dado ao mundo, e que essa união, de cifrão e não de coração, poderia provocar, a termo, quando os verdadeiros problemas económicos surgissem, divórcios em cadeia, destruindo o magnífico ideal dos pais da União Europeia, Jean Monet e Robert Schuman.
E, apreciado o digestivo, decidiram dar uma passeata pelos jardins e pelo pinhal do solar. Aos poucos, porém, as famílias foram-se desmembrando e reagrupando por afinidades. Preocupada com uma eventual gravidez, a gestora voltou para dentro com a médica, que tentou fazer-lhe um diagnóstico, analisando os sintomas; feliz, Rui Patrício atrasou-se perto da piscina com o Júlio e, depois de recordar aquele aparatoso mergulho da Cris, no Verão de 1973, falou-lhe da entrevista com o Sr. Afonso no Ministério da Saúde, mostrando-se confiante no afastamento do diabólico Dr. Santos; D. Susana, que não parara de olhar a nora durante o almoço, quis saber se a D. Elvira era depositária da boa-nova que todos tanto ansiavam, enquanto Dr. Edgar, o colega e o senhor Contreiras falavam das subtilezas de certos jogos, como o Bridge e o Poker. Celina, essa, ficara a reinar com as criadas, que faziam os últimos fritos do Natal, lavavam a loiça e preparavam a mesa para a ceia mais longa e mais requintada do ano.
Depois de uma caminhada soalheira pelos extremos da quinta, eles regressaram para uma cartada, fazendo horas para o café. As mães e as filhas entretiveram-se a jogar uma Suecada, enquanto os militares e os amicíssimos Edgar e Félix iam aplicando os seus conhecimentos de bridge, observados pelo Rui Patrício que, deitando um olho à esquerda e à direita, ora espiava o jogo da Sílvia e da Cris contra as mães, ora assimilava as regras do bridge com os homens, a quem ia servindo de garçon.
No fim da jogatana, antes da Maria lhes servir o cafezinho do lanche, a médica deu a mão ao noivo e chamou discretamente os pais para o salão da televisão. Nervoso, Rui Patrício apertou os dedos à Cris e, sorrindo timidamente, disse:
― Como os senhores sabem, a Cris e eu há muito que nos amamos e nunca vo-lo escondemos. Apesar de já o ter feito no aventurado Dia de Finados no restaurante do Mar do Inferno diante de quem quis ouvir, hoje decidimos oficializar a nossa relação e declararmo-nos oficialmente. Por isso, é com muito emoção que lhes peço, senhora professora e senhor doutor, me permitam unir eternamente a minha vida à da Cristina.
― Saiba, caríssimo Rui Patrício, que este pedido nos honra muito e nos enche de alegria, porém é a Cristina quem nos deve dizer se é a você que ela está disposta entregar todas as horas da vida dela, as boas e as menos boas, e se é a você que ela jura fidelidade ad vitam eternam ― disse o advogado, olhando insistentemente a esposa.
― Certamente, Edgar. Há muito que a Cristina se decidiu e aguardou estoicamente esta bendita hora.
― Vá, filha...
― Paizinhos, o Rui foi o jovem com quem descobri o amor, a quem jurei fidelidade no dia 5 de Agosto de 1973, por quem vivi a sonhar todo este tempo, com quem conheci a loucura do amor e com quero viver eternamente para lhes dar muitos netinhos bonitos e traquinas.
― Seja feita a sua vontade, princesa, e que Deus vos abençoe e cubra de graças ― sentenciou o patriarca, emocionado, beijando-os e abraçando-os de lágrimas nos olhos.
― Possa Deus acordar-lhes, D. Susana e Dr. Edgar, o privilégio de comungar da nossa felicidade por muitos e ditosos anos. Por ti, princesa, darei tudo! Me farei mendigo e morrerei se preciso for.
― Morra eu primeiro, se o destino... ― balbuciou soluçante, beijando-o apaixonadamente na boca.
― Eh, e para quando é o casamento? ― perguntou a mãe, curiosa.
― Para o 6 de Agosto de 1983, se Deus quiser, porque foi nesse dia que o destino nos separou e nos impôs nove anos de sofrimento.
― A avó Vilhelmina está seguramente a sorrir por ver que nesta hora se cumpre a profecia que ela fez quando o pai nasceu: “ num dia de Inverno, neste mesmo solar, uma mulher da nossa família, linda e corajosa, verá o destino devolver-lhe o homem por quem terá que sofrer e esperar muitas primaveras e a quem dareis este medalhão, onde guardei durante os sete anos do meu calvário, a fotografia do teu pai....” ― recordou o advogado, solenemente, saindo apressadamente e acenando-lhes que esperassem.
Pouco depois, hei-lo que surge com um precioso medalhão em filigrana.
― Como foi sobre ti que recaiu a profecia da avó Vilhelmina, toma lá este coração de oiro, reflexo do teu, e que o espírito dessa intrépida e apaixonada mulher te proteja durante toda a vida, para que este medalhão perpetue eternamente a memória do seu amor pelo avô Teotónio! ― lembrou o patriarca, pendurando o cordão com a filigrana dourada no pescoço da filha.
― Fiquem tranquilos que a memória e o desejo da avó Vilhelmina serão respeitados e perpetuados para que a felicidade e o sofrimento de um grande amor jamais sejam vãos ― jurou altiva, beijando de novo os pais.
― Ela já era linda, mas com tão preciosa jóia, a sua princesinha tornou-se, sem ofensa para as demais, a rainha mais bela do solar. Que Deus abençoe quem lhe deu o ser! ― bradou enamorado, piscando aos sogros.
― E se fôssemos anunciar o vosso noivado aos nossos amigos? ― sugeriu o advogado.
Eles menearam a cabeça e seguiram-no silenciosamente. Na entrada do salão, o senhor do solar bateu as palmas e exclamou radiante:
― Atenção! O Rui Patrício e Cristina acabam de me jurar solenemente que acabaram definitivamente com as poucas vergonhas no dia 6 de Agosto próximo, se de nenhum de vós faltar!
― Vivam os noivos!!! ― berrou o Júlio, entusiasmado.
― Vivam!!! ― gritaram todos em uníssono.
E uma delirante salva de palmas festejou entusiasticamente a feliz novidade. Felicitados calorosamente por todos e muito especialmente pela Celina, que foi quem, primeiro, se lhes lançou nos braços e os beijou demoradamente, os nubentes não resistiram ao fascínio das lágrimas da felicidade. O brilho dos seus olhos quase que fundiu, de vergonha, as lâmpadas de todos os lustres do salão que a D. Susana acendera apressadamente, antes do marido iniciar a proclamação. E o champanhe jorrou a rodos, enchendo de alegria as taças de cristal.
Depois, até à ceia, os homens ainda acabaram a partida de Bridge, enquanto que as senhoras, vestindo um avental, não resistiram à tentação de meter as mãos na massa, ajudando as criadas a fritar as tradicionais filhós. Quando a Maria, olhando o relógio da cozinha, lhes disse que estava na hora de ir buscar o peixe à dispensa, elas retiraram-se para que os seus cabelos não ficassem impregnados pelo odor do polvo e da raia que iriam saborear mais tarde.
Antes de se assentarem à mesa, os noivos ofereceram os presentes aos convidados, entregando-lhes juntamente um convite de casamento manuscrito, que muito os sensibilizou. Enquanto os homens guardavam as garrafas de whisky Chivas Regal e os charutos cubanos, as mulheres experimentavam a essência dos inebriantes frascos de Chanel, o perfume preferido das damas do tout Paris. A Celina, essa, não parava de assentar a sua Barbie na bicicleta e de percorrer mentalmente os carreiros dos pinhais contíguos ao solar, por onde se estendiam os campos de golfe do Estoril.
Durante a ceia, como a D. Elvira, intrigada, fitasse insistentemente o valorosíssimo medalhão da noiva, o Júlio pediu ao pai que lhes contasse a história passional da avó, o que o Dr. Edgar fez com a maior naturalidade, aproveitando para lhes falar da sua ilustre árvore genealógica, que remontava aos séculos áureos da nossa epopeia marítima. E as suas reminiscências familiares fizeram-nos recuar longe, muito longe, no tempo e na memória, acabando cada um deles por relatar, finalmente, as primeiras imagens de que os seus cérebros tinham registo. Com a nostálgica e saudosa recordação dos antepassados, até aquela noite festiva, que se prolongou em jovial cavaqueira até à madrugada do dia de Natal, teve outro encanto.
Depois da ceia, só regressaram a casa o arquitecto Félix e os sogros do Júlio, que fez questão de dormir no solar. Depois dos pais se deitarem, os casalinhos ficaram, em amena confidência até ao romper da aurora, momento em que o sono os convidou a irem saborear um justo descanso.
Continua em: A Força do destino - Capítulo V
LMP, LUXEMBURGO - FEVEREIRO DE 1997 / Lud MacMartinson
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