Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

sábado, 1 de março de 2008

Caprichos do Amor: Quinta, 26 de Julho ( 10º Dia )


Quinta, 26 de Julho 
( 10º DIA )



A cena da véspera no Guincho deixara-os mais pobres, muito mais pobres de dignidade, de decência, deles mesmos e, sobretudo, do temor àquele Deus que tudo lhes proibia e os haveria de castigar no outro mundo, se não se arrependessem e confessassem os seus pecados. Assim ainda se poderiam livrar provavelmente do Inferno, mas do Purgatório não escapariam certamente.
Aquela quinta-feira fizera-o acordar com a cabeça em brasa. Quando desceu para tomar o café na cozinha, como era hábito, a senhora Noémia pediu-lhe que fosse fazer companhia aos padrinhos, que já tomavam o pequeno almoço, na sala de jantar.
― Bom dia! Bom dia! ― saudou jovial, beijando-lhes alternadamente o rosto.
― Então, dormiu bem?
― Demais, padrinho.
― A musa não o traquinou? ― perguntou o arquitecto sorridente, entre duas mordeduras na geleia de cereja que revestia a torrada.
― Ai as musas, padrinho, ai musas! ― bradou altivo, empiscando-lhe malicioso.
― Ah bom, musas?! ― exclamou a jornalista admirada.
― É normal, Dina, você anda sempre atarefada! ― acrescentou o marido.
― O padrinho ainda acredita nas mulheres?
― Porquê? Você não?
― Eu acredito sempre ao contrário: quando elas dizem sim, pensam não e então eu faço vice-versa ― explicou irónico, bebendo o primeiro golo de café.
― Engraçadinhos! ― barafustou ela, esticando-lhes a língua.

― Nós estamos a brincar, Dina! ― esclareceu o marido, dominando o riso.
― Desculpe, madrinha.
― Desta vez estão desculpados, mas para a próxima levam que contar - advertiu séria, lambendo a geleia que se escapava da torrada.

E aquela humorística desavença pô-los bem-dispostos para o resto do dia. Rui Patrício esqueceu-se mesmo que tinha acordado com uma dor de cabeça e foi com a mais natural bonomia que assistiu aos trabalhos do padrinho e ajudou a jornalista a ordenar os apontamentos que trouxera de Londres.
Depois de almoço, o arquitecto convidou-o a visitar a Cristina, mas ele, zangado como estava, preferiu ficar a dormir a sesta e a traquinar as musas, declinando o honroso convite. Dina, que decidira acompanhar o marido, sugeriu-lhe na soleira da porta que, logo que pudesse, desse uma olhadela nos papéis que ela deixara no escritório. Ainda pensou dormir a sesta, mas, não conseguindo, foi ver as folhas que a intrigante Dina largara sobre a escrivaninha. A curiosidade fê-lo passar uma vista de olhos nos gatafunhos e qual não foi o seu espanto quando descobriu um bilhetinho com o slogan hippy make love not war ― faz o amor e não a guerra ― dentro de um coração trespassado por uma seta. Pensativo, respirou fundo e passou para uma folha virgem as ideias mais interessantes que dissecara nos gatafunhos da congressista.

Pelas hora da merenda, a avozinha chamou-o para lanchar, oferecendo-lhe uns biscoitos quentinhos que acabava de tirar do forno. Esgotadas as ideias e esmorecidas as malícias, o adolescente seguiu-a gentilmente, provou os doces e, deliciosos como estavam, comeu meia-dúzia para que o café não lhe chocalhasse no estômago.
Entretanto, o telefone tocara, porém, amuado com a Cristina como estava, ele mandara a velhota dizer-lhe que tinha saído para a praia. Fechado no escritório, quis escrever uma poesia, mas por mais que tentasse, as palavras não lhe saíam e desistiu, estatelando-se no sofá. Apalpando a cabeça, viu que estava com febre, foi pedir um optalidon à senhora Noémia e tomou-o com um golo de água da torneira da banca de lavar a louça. Enfunado, deixou-se despertar pelas gaivotas, seguindo-lhes o bailado lancinante, debruçado sobre o banzo do terraço. Tentando interpretar aqueles gritos lancinantes, sentiu a inspiração formigar-lhe a retina e o córtex. E, mirando-as, monologou baixinho:

No mar deixei sepultado o meu segredo 
que a cada momento vai e vem na água:
flor de um desejo que não vi, amor não nego
que seja o grito do meu coração em mágoa...


Escutando mais atentivamente o queixume das gaivotas carpideiras disse:

No meio da maré que desmaia na areia
vislumbro a paixão de uma vida triste.
Mais além desenha-se o corpo de uma sereia
vomitando de dor, dizendo que ainda existe...


Sorrindo para o enigmático Além e repetindo mentalmente as rimas, assentou-se no cadeirão e anotou os versos que conservava na ponta da língua. Relendo as quadras, decidiu a poesia em soneto, escrevendo o primeiro dos últimos seis verso:
Uma esperança renasce no meu peito...

O ruído súbito do motor a diesel fê-lo precipitar-se à janela, curioso.
Por detrás das cortinas transparentes, que adornavam a vidraça, deu com os olhos na Dina de vestido florido e de chapeuzinho turquesa a combinar com a cor das sandálias e da sua íris felina. Uma inoportuna brisa suave, levantando a túnica, avivou-lhe os contornos esbeltos, deificando a silhueta voluptuosa. Que tara, meu Deus!

Redescobrindo-lhe o charme tentador, Rui Patrício arrependeu-se de não os ter seguido, dizendo-se que tinha perdido milhares de miradelas sorrateiras e concupiscentes durante a viagem ou mesmo nos jardins do solar, onde, certamente não se teria cansado de confrontar as duas belíssimas criaturas que naquelas férias estavam a fazer-lhe sentir-se homem.
Escondendo as quadras na gaveta da escrivaninha, assentou-se e, pegando nos papéis, fingiu-se compenetrado e exausto a decifrar-lhe os sarrabiscos. Entrando sorrateiros pé ante pé, os padrinhos, suspendendo por segundos a respiração, iam-lhe imitando os gestos. Sentindo-se vigiado, ele redobrou o fingimento e desabafou:
― Mas que porcaria de caligrafia! Ela bem pode ressuscitar o Champallion se quiser decifrar esta trapalhada. Ai, que dor de costas! ― bradou cansado, deitando as mãos aos quadris e esticando-se todo.
Tossindo e escondendo um ataque de riso, o arquitecto perguntou curioso:
― Conseguiu espremer algum sumo dessa cebolada ou não?
― Olá, padrinho! A madrinha só me sabe enervar.
― Ah, sim!? ― volveu ameaçadora, surgindo por detrás do marido.
― Não sei se vocês ouviram o que eu acabei de dizer ou pensar, enfim, já nem sei às quantos ando. Francamente, é preciso paciência de chinês!
― Não, eu não ouvi nada de especial e você, Dina?
― Eu também não, Félix, mas, se o menino é o homem que pensa que é, deve assumi-lo e repeti-lo alto e bom som.
― Olhe, Dina, eu estou furioso porque passei aqui a tarde a tentar decifrar esta..., esta sarrabiscada de galinha e...
― Foi mesmo em sarrabiscada que pensou, foi? ― retorquiu maliciosa.
― Perdão, furioso como estava, acho que disse porcaria de caligrafia. É, foi isso ― confirmou ele envergonhado, baixando os olhos.
― Pronto, Rui Patrício, quem não mente não merece castigo e, sobretudo quando se tem a frontalidade e a coragem de assumir o que se diz ou o que se faz, olhos nos olhos, assim como você o fez. Sim senhor! Você é Homem, Rui!
― É, Félix, dê-lhe os améns! ― ironizou corada.
― A Dina fala sempre antes do tempo, sabia? Tome lá a sua belíssima caligrafia, madame Fontoura e não agradeça nada porque o que eu sou, digo ou faço é sempre sem importância para si, não é? ― disse revoltado, atirando-lhe o molho de papéis.
― Rui Patrício!!! ― gritou o arquitecto autoritário, chamando-o à ordem.
― O senhor, desculpe, mas eu... ― murmurou corado e nervoso.
― Faça o favor de pegar nos papéis e devolvê-los novamente à sua madrinha como deve ser ― volveu mais apaziguado, devolvendo ao afilhado a papelada da esposa perplexa.
Obedecendo humildemente, o adolescente segurou os papéis da discórdia e, olhando timidamente a madrinha, rectificou nervoso:
― Desculpe, madrinha, aqui tem os apontamentos.
― Muito obrigado, Rui Patrício ― agradeceu a jornalista patética, segurando a papelada que o adolescente, num esforço titânico para não chorar, lhe devolveu cabisbaixo.
― Com licença, padrinho ― acrescentou o moço, retirando-se muito triste.
Arrependidos, Félix e Dina abraçaram-se mudos. E, apaziguada a emoção, assentaram-se no sofá e foram olhar novamente os malditos gatafunhos. Pouco a pouco, o júbilo reapareceu nos seus olhos e nos seus corações. Afinal, o insolente que acabava de sair humilhado deixara à jornalista dicas preciosíssimas para futuros artigos. Incapaz de conter por mais tempo as lágrimas que lhe resvalavam pela face e pingavam na página que o adolescente escrevera, manchando-lhe o trabalho todo, Dina abraçou o marido e desabafou revoltada:
― Sou bem ingrata!
― Vá, não pense mais nisso - implorou o marido, estendendo-lhe um lenço por usar.
― Realmente sou muito estúpida, Félix! ― bradou lacrimosa, assoando-se.
― Deixe isso comigo, Dina.
― Não sei o que me passou pela cabeça.
― Vá, não se aflija. Ele não vai...
― Vai, Félix, e com razão... ― assegurou frustrada, soluçando amargamente.
― Venha dai lavar o rosto. Cuidado, a senhora Noémia pode ver-nos!
― Como pude ser tão grosseira, meu Deus!? Como?! ― repetiu desnorteada.
― Eu vou falar com ele e desfazer o mal-entendido ― disse o arquitecto, beijando-a respeitosamente na testa.
Subindo as escadas, ele lá foi bater-lhe à porta do quarto, mas não o viu. Depois de ir ver ao banheiro, subiu à mansarda, mas em vão. Inquieto, falou com a esposa e desceu ao jardim e nada. Aflito, gritou-lhe e atravessou a estrada, correndo até à praia. Do alto da falésia, avistou-o assentado num rochedo, acalmou-se e, respirando fundo, foi ao seu encontro.
― Rui Patrício! ― exclamou sorridente, acenando-lhe meigo.
― Cuidado, padrinho! A água salgada estraga-lhe os sapatos! ― avisou o solitário, sorrindo inocentemente.
― Não faz mal. Venha!
Saltando de rocha em rocha, o órfão abeirou-se do padrinho e escutou-o humildemente. Envergonhado e arrependido de o ter molestado injustamente, o arquitecto pediu-lhe desculpas e até casa não parou de o elogiar e de lhe pedir que fizesse as pazes com a Dina. Mal transpôs a porta de entrada, Rui Patrício foi abraçado pela madrinha que o beijou e se desculpou pela forma grosseira e, sobretudo, injusta com que lhe agradecera a paciência que ele tivera para ler e interpretar aquelas maluquices que a solidão londrina lhe inspirara. A sinceridade carinhosa da jornalista deixou-o sem argumentos para manter, no seu coração, aquele rancor furioso que o fizera explodir de raiva no escritório, apesar de continuar ressentido com a reprimenda do padrinho, em quem nunca imaginara tanta violência. Mesmo assim, ao jantar, ele comeu muito pouco e pediu à velhota mais um optalidon para a dor de cabeça. A senhora trouxe-lho e recordou-lhe, diante dos patrões, que já era o segundo que ele tomava naquele dia.

Depois de tomar o remédio, o moço pediu licença à mesa e foi deitar-se gemebundo. Trancado no quarto, começou a pensar e a cismar em tudo o que lhe acontecera naqueles primeiros dias de férias; o seu espírito atribulado, ora se roía de remorsos, ora jubilava pelo prazer inolvidável que sentira quando tentara seduzir a Cris e, sobretudo no dia anterior, no inóspito Guincho, com a Dina. Agora, reflectindo bem, só tinha pena de não ter chegado a consumar o primeiro coito da sua vida. E no meio daqueles turbulentos pensamentos, a cegueira da paixão não o deixava raciocinar friamente. Ilógicos e irreverentes, os sentimentos, ora puros e sinceros, ora perversos, viviam e morriam ao sabor dos caprichos imaturos e da sua consciência mística.
Às vinte e uma horas, com o Sol fenecente, Dina bateu-lhe à porta, forçou a mãozeira, mas sentindo-o trancado, implorou baixinho:
― É para si, Rui, venha ao telefone!
― Já durmo.
― É a Cristina! Venha lá ― insistiu meiga, batendo timidamente na porta.
― Já durmo, ouviu? ― gritou furiosamente choramingueiro.
E ela não insistiu mais, correndo a dar a resposta à moça. Depois, pensativa, foi ter com o marido ao terraço, mas demorou pouco, preferindo ir analisar a papelada da discórdia na cama.

Diante da porta do afilhado, parou e pensou bater novamente, mas, temendo uma má repostada, desistiu e deitou-se taciturna. Desejava tanto mostrar-lhe como estava arrependida!

Mal assentara a cabeça e já o marido surgia na soleira na porta para a reconfortar e rever toda a informação jornalística que ela trouxera para cima. Ainda ajustava a travesseira e já o marido surgia de surpresa à sua frente.


continua em: Sexta, 27 de Julho ( 11º Dia )

Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson

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