Quarta, 18 de Julho
2º DIA )
Às dez da manhã, como ele tardasse, o padrinho bateu-lhe à porta. Enrolado nos lençóis, o desacautelado sonhador mastigava um monólogo incônscio, resmungando queixoso. O ténue rangido da dobradiça bastou para lhe quebrar o fio do sonho e o acordar. Cego pelo brilho ofuscante do sol, que as persianas filtravam apenas, não chegou a aperceber-se da presença do padrinho. De pé, imperturbável, o Dr. Fontoura, talvez acometido por um impulso paternal, não se cansava de o contemplar misticamente. O seu cérebro cansado fê-lo viajar pelos trópicos da saudosa nostalgia. A frustração da deficiente paternidade era sublimada pela simplicidade dos bocejos do filho que o seu coração adoptara instintivamente no dia em que recebera o maldito telegrama de Angola com a terrível notícia da morte da Celina e do Artur, os pais do afilhado.
― Bom dia, Rui Patrício! Então dormiu bem? Não estranhou o colchão, não? ― indagou sorridente, depois de trepar e tossir ruidosamente.
― Olá! Que horas são? O padrinho perguntou... ― balbuciou timidamente o jovem, cobrindo atrapalhadamente as partes genitais.
― São dez horas bem batidas. Ah! eu perguntei-lhe se esta noite não estranhou muito o colchão.
― Claro que estranhei, mas para melhor, padrinho. Então este travesseiro florido. O senhor já tomou o café?
― Não, hoje não tenho pressa.
― Desculpe, se o transtornei, padrinho, mas da próxima vez não espere por mim que eu costumo ter os meus sonhos mais bonitos pela manhãzinha e é tão bom sonhar quase acordado! Mas desça e comece a comer que eu arrumar-me-ei mais depressa que o diabo esfrega os olhos.
― Não se aflija, Rui Patrício, eu espero por si ― aconselhou o arquitecto, retirando-se depois de lhe retribuir o beijo matinal.
Decorridos escassos cinco minutos, já o dorminhoco mastigava as torradas que a senhora lhe guardara no forno e escutava os conselhos do padrinho. Na agenda do arquitecto, que o jovem lera num golpe de lince, estava marcada a visita, in loco, de uma aldeia SOS. para os lados de Alcabideche, onde era esperado pelo doutor Edgar Sampaio, o célebre advogado e Conselheiro de Estado.
Desde os seus quinze anos, Rui Patrício fora habituado não só a despachar a correspondência e a contabilizar os honorários do padrinho, o que fazia sempre com alegria, mas também a corrigir os artigos que a madrinha ia gatafunhando nos cálidos serões do Verão. No tempo das férias, ele queria sentir-se útil e retribuir, naquilo que podia, a generosidade dos benfeitores que o sustentavam generosamente e o amavam como filho.
Durante quase duas horas, ele fechou-se no escritório e executou primorosamente a sua tarefa, estimulado pelo olhar daquela mulher que, secretamente, lhe consumia noites a fio e fazia vibrar o coração ingénuo. O objecto dessa adoração continuava, porém, platonicamente insensível aos seus tímidos desejos viris. Por enquanto, bastava olhá-la para que um néctar virtual lhe narcotizasse a alma e, oh quantas vezes, o agraciasse com a indomável tumescência.
Assim, perdido nos deliciosos meandros da paixão, nem viu o tempo passar. Cumprida a sua missão, ergueu-se e, assegurando-se que a porta estava trancada, foi macular a vítrea feiticeira. Pegando docemente no quadro dourado, beijou-o demoradamente e colou-o contra o peito arquejante. De pé e com os olhos cravados na brancura do tecto, vítima de um fulgurante assédio passional, Rui Patrício deixou-se invadir e devorar pelos súbitos impulsos obscenos, mas no fim surgiu a voz implacável da sua consciência, culpabilizando-o por essa atitude pecadora, que fê-lo arrepender-se e pedir perdão ao Juiz Supremo.
Perto do meio-dia, quando o padrinho chegou, estava nas barras metálicas.
― Você também é adepto do body-bulding, Rui Patrício?
― Não, padrinho! Eu só quero desenvolver estes músculos raquíticos.
― Ah, já não são assim tão raquíticos! Até que, para a sua idade, essas espáduas me fazem antever uma óptima compleição física. Há Misters Univers que começaram por bem menos!
― O padrinho também...
― É verdade, Rui Patrício!
― Está bem, pronto. E a sua visita?
― Assim-assim! O projecto ainda está a germinar, sabe? Preciso averiguar um pouco melhor a estrutura do solo, ver o trajecto solar e redimensioná-lo. Em arquitectura, os sonhos não são assim tão lineares como se pensa.
― Gostaria de o acompanhar da próxima vez. O padrinho leva-me?
― Claro, Rui Patrício! E quem sabe se inspiração me virá de algum reparo seu! ― lançou humildemente o arquitecto, pondo o estojo a tiracolo.
O jovem encostou o portão, foi buscar a t-shirt que estava pendurada nas argolas, enxugou o rosto com ela e lavou as mãos na torneira do jardim. Entretanto, no escritório, o arquitecto sorria e murmurava orgulhoso: mas porque hei-de arranjar-lhe um filho na minha idade e correr o risco de enviuvar novamente, se o destino nos deu um assim tão brioso e carinhoso? No íntimo, a sua decisão tornara-se irreversível: o seu herdeiro seria ele, o filho da mulher que o ajudara a conquistar o coração da Alice, a sua bem-amada esposa, morta com o filho na hora do parto. Agora só pedia a Deus que convencesse a Dina a renunciar à maternidade. Ouvindo os passos estridentes do afilhado, que corria apressado, o arquitecto abeirou-se do corredor e clamou:
― Rui Patrício, Rui Patrício, chegue aqui por favor.
― Então não dei conta do recado, padrinho? ― questionou-se duvidoso.
― Se deu! Bravo! Estou muito contente com todo este brio: bela caligrafia, dossiês impecáveis e arrumadinhos... Sim senhor!
― Isso não é nada. Os senhores gastam tanto comigo, padrinho!
― Vá, não seja assim tão modesto. Aceite os meus parabéns e venha almoçar ― concluiu orgulhoso e felicíssimo, batendo-lhe no ombro desnudado.
Depois da sesta, o arquitecto insistiu para que ele o acompanhasse. Assentado no banco da frente, o moço ainda perguntou ao padrinho onde iam, mas ele, atento a conduzir a manobra de saída, nem o ouviu. A velhota, que estava à sombra do choupo, veio fechar o portão e acenar-lhes, mas eles, encobertos por um camião, desapareceram mais rápido que de costume.
Decorridos alguns quilómetros, a viatura largou a marginal, virou à direita, rolando cerca de uma légua por uma estrada secundária, e só parou diante de um portão de ferro. O arquitecto escancarou a porta do Mercedes e foi carregar numa campainha escondida entre as heras. Permanecendo assentado, o jovem aguardava calmamente a diligência do padrinho, admirando o pinhal circundante. A sua pacata contemplação sentiu-se perturbada por uma voz feminina que ecoou por um interfone invisível e perguntou graciosa:
― Por favor, quem fala?
― O doutor Félix, menina Cristina.
― Ah, desculpe, senhor arquitecto, entre! ― exclamou ela confusa, accionando o portão automático que se abriu lentamente.
Entretanto, Rui Patrício, acedendo aos gestos do padrinho, saltou do banco e correu lesto para entrarem juntos. Uma alameda, de aproximadamente vinte metros, ladeada de flores e abrigada por uma ramada ancestral a dobrar sob o peso dos cachos, surgia majestosa à sua frente. Mal apercebeu os senhores daquele sítio paradisíaco, o moço corou. Amáveis, eles acolheram os visitantes no patamar de granito com um delicioso sorriso, espiados pela beleza altiva de uma fotogénica donzela de cabelos alourados.
― Boa tarde, Félix! ― bradou um senhor de cabelo penteado para trás.
― Boa tarde, Edgar! Boa tarde, Susana! ― saudou o arquitecto, olhando-os e perguntando-lhes orgulhoso: ― Vocês já conheciam o meu afilhado, menina Cristina?
― Sim, Félix, aqui em casa fala-se muito nele, sobretudo quando queremos citar um bom exemplo aos nossos filhos. Muito prazer em vê-lo, Rui ! ― disse a meiga senhora, beijando-o filialmente no rosto corado.
― Obrigado pelo elogio, D. Susana. A senhora é muito gentil ― respondeu Rui Patrício, beijando timidamente a professora, antes de se virar para o marido dela e acrescentar: ― Muito prazer em conhecê-lo! Já que estamos em confidências, deixe que lhe diga que, lá em casa, o meu padrinho também não se cansa de tecer as mais elogiosas considerações à sua família, senhor doutor.
― Sim senhor, você é muito simpático, Rui Patrício ― retorquiu o advogado, apertando-lhe a mão com firmeza.
― O Rui Patrício já conhece a Cristina? ― perguntou a professora, apresentando-lhe a filha, enquanto os homens se afastavam discretamente.
― Certamente que ela não me é estranha, mas parece-me que é a primeira vez que a vejo de tão perto. Muito prazer em conhecê-la, Cristina ― disse corado, estendendo-lhe a suada e trémula mão depois de a limpar nos jeans azuis.
― Igualmente ― murmurou a donzela indecisa, hesitando entre o beijo e o aperto de mão.
As suas retinas mal se cruzaram, mas, mesmo hesitantes e atrapalhadas, lá optaram pelo beijo. Impressionado pelo perfume, o rosto macio e, sobretudo os olhos esverdeados da donzela, o rapaz desviou-se e recuou um pouco.
Entretanto, acarinhado pela professora, Rui entreabriu-lhes as portas do seu coração numa conversa em que lhes contou o seu dia a dia no colégio. Altiva, a donzela fingia-se indiferente e mal interferia no diálogo, mas as suas mãos nervosas começavam a atraiçoá-la. Apercebendo-se disso, a mãe desculpou-se e deixou-os assentados no canapé da entrada. Rui Patrício, porém, levantou-se para tentar aliviar a pressão. Sentindo-o confuso, a moça ergueu-se também e fugiu para o interior.
Abandonado, mas feliz, o órfão pode ouvir melhor a voz do seu coração, deambulando pensativo pelos carreiros do jardim. A beleza das rosas, cujo aroma ia sentindo aqui e ali, inspirou-lhe esta rima:
Fui ao jardim colher flores
e encontrei uma tão linda
Lembrei-me doutros amores
onde a paixão não floriu ainda
E aquela súbita inspiração revestiu-lhe o olhar de um brilho contagiante. Lá do seu esconderijo no sótão, onde se refugiara para melhor o admirar, Cristina não se cansava de o olhar por detrás das cortinas, arrependida pela frieza com que o tratara.
Entretanto, a D. Susana viera fazer companhia ao poeta. Com a professora, Rui sentia-se tão à vontade que até pareciam mãe e filho. Aquela inexplicável cumplicidade, surgida instantaneamente entre ambos, parecia um sonho admirável. Bastara um sorriso tímido do órfão para que um beijo maternal viesse logo sossegar-lhe o coração imberbe, encorajando-o a bater ao seu ritmo.
A merenda, com que a D. Susana fizera questão de celebrar tal apresentação, foi servida no salão. Perto do padrinho, o moço sentia-se mais confiante, contudo falava pouco, limitando-se a responder apenas às solicitações dos adultos. Receando cometer algum deslize que o envergonhasse, Rui bebeu parcimoniosamente um sumol e comeu, de tempos a tempos, uns salgadinhos. Cristina, essa, ainda apareceu, mas não se demorou muito.
O astro rei estava no ocaso quando se despediram.
― Muito obrigado pela visita e por nos teres trazido o teu afilhado, Félix.
― O prazer foi todo meu, Edgar ― confessou orgulhosamente o arquitecto.
― Gostei muito de o conhecer, Rui Patrício. O seu padrinho pode realmente orgulhar-se de si ― disse o advogado, cumprimentando-o calorosamente.
― Muito obrigado pela vossa amabilidade, senhor doutor. Tive muito prazer em conhecê-los um pouco melhor ― confessou o jovem, apertando-lhe a calorosa mão peluda.
― Félix, pelo que me apercebi, o Rui Patrício é um excelente aluno. Agora que descobrimos o gosto comum pelo francês, não te acanhes de no-lo trazeres mais amiúde. O nosso francês só lucraria com um conversa mais regular. Vá, dá cá um beijinho, filho ― disse carinhosa, oferecendo-lhe o rosto.
― Está descansada, Susana, que eu não me esquecerei ― concluiu o arquitecto, pousando orgulhosamente a sua mão protectora no ombro do afilhado.
Um último aceno e hei-los que o Mercedes se perde no fulcro do horizonte.
Durante a viagem, Rui Patrício falou ao padrinho da estranha e contraditória antipatia da Cristina, mas ele confessou-se incompetente para o ajudar a resolver tal enigma, até porque nunca notara, anteriormente, qualquer atitude hostil ou menos cortês à donzela, mesmo quando a Dina o acompanhava. E se por detrás dessa antipatia se escondesse um sentimento diferente?
Perplexo, o rapaz não teve tempo para equacionar o rosário de suposições que o seu espírito ia forjando em silêncio. De vez em quando ele fechava os olhos e, forçando a memória, instalava na retina as imagens coloridas que trazia da irreverente Cristina. A reconstituição mental do complicado puzzle feminino revelava-lhe outros pormenores que a presença dos adultos e a maldita timidez não lhe haviam permitido observar e analisar friamente. Agora, na solidão do pensamento, reconhecia que a donzela possuía um encanto discreto e o seu coração começou a deixar-se embalar e a enredar nas malhas da paixão.
― Eh, chegámos! ― alertou arquitecto, cortando-lhe o fio quimérico.
― Desculpe, padrinho, mas deu-me cá uma soneira! ― acrescentou ele atrapalhado, erguendo a cabeça e esfregando os olhos para disfarçar a endofasia.
― Pronto, Rui Patrício, pode descer. Estamos em casa.
― O padrinho não leva a mal se eu não jantar?
― Então? Você quase nem merendou!...
― Eu não tenho fome, padrinho.
― Bom, passe na cozinha e diga à senhora Noémia que lhe faça um chazinho ou beba um sumol se quiser.
― Está bem, eu tomarei qualquer coisa. Boa noite, padrinho!
― Boa noite, Rui Patrício! ― respondeu o arquitecto pensativo.
A noite caía docemente sobre o oceano. Entretanto, as luzes da marginal haviam-se acendido e os gritos pipilantes das gaivotas, apesar de atenuados pelos sussurros do mar, continuavam a violar a quietude do silêncio, enquanto que os ruidosos motores explodiam e aqueciam o asfalto que a maresia nocturna ia resfriando.
Trancado no quarto, o moço tentou atar novamente o fio da meada do sonho, mas todas as habituais artimanhas se revelaram infrutíferas. No íntimo, surgia de repente um dilema sentimental que o seu coração minimizava inadvertidamente.
A sua consciência, porém, começava a inundar-lhe o cérebro ebuliente de vozes recriminatórias. Ainda bem que o sono o arrebatou à realidade em plena contradição.
continua em : Quinta, 19 de Julho ( 3º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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