Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Caprichos do Amor: Quinta, 19 de Julho ( 3º DIA )


Quinta, 19 de Julho 
( 3ºDIA )




Quinta-feira despontara radiante e luminosa. O Dr. Félix Fontoura decidira ir sozinho a Lisboa, a pretexto de fazer umas compras. Antes de tomar o pequeno almoço, o dorminhoco quis ir dar umas corridas pela praia, mas a governanta dissuadiu-o por causa da hora tardia e dos afazeres daquele dia, véspera do regresso da patroa.
Mastigando as torradas à pressa e bebendo o café escaldante, Rui pegou no guardanapo, limpou os lábios e fechou-se no escritório. A foto da madrinha parecia saltar do quadro para o beijar e lhe dar os bons-dias. Mal tivera tempo para lhe retribuir o sorriso e já um rosto surgia queixoso nas suas retinas jubilosas: Cristina!... E se aquele desprezo de ontem tivesse sido, afinal, o negativo da realidade? Ah como lhe era difícil concentrar-se!

A correspondência dos padrinhos lá estava arrumadinha no canto da mesa à espera que ele lhe tocasse. Apesar da confusão sentimental que dividia o seu coração, cumpriu a missão que lhe fora confiada, animado pelo charme feminino que lhe enfeitiçava o olhar.

Dever cumprido, veio postar-se diante do portão e não parou de perscrutar o horizonte à espera do Mercedes do padrinho. Como desejava que o tempo se volatilizasse para tirar as dúvidas que lhe pairavam na alma! Falando com os seus botões, ele dizia-se que da próxima vez encher-se-ia de coragem e olhá-la-ia descaradamente sem se atemorizar. E se ela estivesse desejosa de se redimir? Mas o padrinho nunca mais chegava. Se agora a Cristina telefonasse e lhe pedisse que fosse ter com ela, não hesitaria um segundo e partiria veloz, mesmo pés calcantes, tal Sagitário enamorado que era.
Eis a negrinha que chega finalmente.
― Quantos embrulhos, padrinho! Por pouco não comprava a cidade.
― A Dina chega amanhã, mas..., dormiu bem?
― Se dormi!
― Esses jeans azuis e essa t-shirt branca vão matar o coração da menina.
― Não me diga que já esteve hoje com ela?! ― indagou curioso, segurando as caixas com o rótulo dos Armazéns do Chiado.
― A Cristina? Sim, cruzei-a por acaso no armazém onde fiz estas compras. Andava com a mãe a escolher uns cortinados novos para o quarto dela.
― Ela falou-lhe em mim, padrinho, falou? ― perguntou nervoso e inquieto.
― Acalme-se, Rui Patrício, acalme-se.
― Pronto, não precisa de dizer nada ― desabafou o jovem aparentemente convicto da resposta.
― Donde lhe vem essa certeza?!
― Sei lá! Um pressentimento...
― Como assim? Explique-se! ― ordenou estranhamente perplexo.
― Esta manhã no escritório, enquanto dava uma vista de olhos ao esboço que estava no seu cavalete, tive uma intuição, mas prefiro confirmá-la antes de emitir um juízo definitivo. Confesso-lhe que desta vez estou mortinho por ver.
― Não percebi nada, mas está bem, você lá sabe onde quer chegar, Rui.
― A D. Susana não lhe pediu nada, não?
― Ah, já me esquecia! Esta tarde, se quiser, pode ir ter com ela. O Dr. Edgar e eu precisamos de resolver uns problemas burocráticos, relacionados com a tal aldeia S.O.S. de que lhe falei e, se quiser, enquanto isso, você poderá ficar a aperfeiçoar o seu francês com a D. Susana.
― Os senhores demorarão muito ou não?
― Como é necessário ir a dois ou três ministérios, direi que será a lição mais longa que você, porventura, já teve desde que é estudante.
― Então irei ― respondeu feliz, abrindo bem os braços para abarcar os embrulhos todos.
O arquitecto, vendo-o tão contente, sorriu e não disse mais nada. Eufórico, o adolescente carregou as encomendas e foi pousá-las cuidadosamente na antecâmara matrimonial no primeiro andar, tacteando o papel lustroso onde se espelhava a sua curiosidade. O padrinho seguiu-lhe as pegadas, mas só já se cruzaram no corredor.

Lavadas as mãos, entraram na sala de jantar e saudaram a velhota, ocupada a acabar de arrumar os talheres e pôr os guardanapos no lugar. Como habitualmente, dava gosto ver aquela mesa. Eles olharam-se, sorriram e assentaram-se.

Pouco depois, olhando para a cozinha, viram a sopa fumegar na terrina de porcelana. Atarefada, a senhora Noémia dava mais uma olhadela aqui, tirava o paladar ali, com aquela genica tão invulgar para a sua idade. Nos cadeirões, eles iam enganando o estômago, esbotenando os nacos de pão.

A refeição, contudo, demorou apenas quinze minutos. A cozinheira passou-lhes um sermão que os fez corar e os deixou sem reacção. O amo apressou-se, então, a elogiar o almoço, explicando-lhe a razão de tanta pressa. Zangada, ela não se despediu deles, preferindo refugiar-se entre as panelas a mastigar os restos da travessa pois era pecado estragar as bênçãos de Deus.

No seu espírito continuava bem viva a lembrança da fome e da miséria que, felizmente para ela, acabou no abençoado dia em que a D. Alice, a primeira esposa do senhor doutor, lhe foi perguntar a S. Domingos de Rana, onde vivia, se queria vir para Santo Amaro de Oeiras. Ainda se lembrava como se fosse hoje: a D. Alice, que Deus tenha, ficara grávida e bastava qualquer cheiro para que logo lhe viessem os vómitos. Um sábado de Primavera, ela apareceu-lhe com a barriguinha já bem visível e convenceu-a a ir cuidar do marido, pelos menos até que o menino tivesse um aninho. Coitada, Deus levou-os a ambos na hora do parto, despedaçando o coração do então jovem arquitecto, seu amo! E, apesar da tragédia, nunca mais o abandonou, cuidando dele como se fosse seu filho. Enquanto ela recordava os anos de vida passados naquela casa, Rui Patrício ia contando as curvas que o separavam do magnífico solar da família Sampaio no Monte Estoril. O cálido aroma do pinhal inebriava-lhe os pulmões, insuflando-lhe nas veias aquele oxigénio vivificador que a sua alma bem precisava.

Apenas dobraram o muro da cerca da entrada, depararam com o Dr. Edgar, de pasta na mão, conversando com a filha. Rui Patrício cedeu-lhe o lugar no banco da frente, saudou-o e, desejando-lhes boa viagem, dirigiu-se à moça, estendendo-lhe timidamente a mão e mirando a viatura de soslaio.
Cristina apertou-lha levemente e, sorrindo acanhada, murmurou trémula:
― A minha mãe está à sua espera. Siga-me, por favor.
― Há muito que esperavam, menina? - perguntou ele, olhando-a corado.
― Não. Só descemos quando os vimos aparecer na curva do campo de futebol.
― O meu padrinho disse-me que tem um irmão mais velho, o Júlio.
― Sim, é verdade. O mano é oficial da Força Aérea na Ota, em Lisboa. Conhece-o? - inquiriu cabisbaixa, balançando as mãos apertadas.
― Só o vi uma vez e de fugida em frente da casa dos meus padrinhos. Trazia um embrulho, mas não chegou a entrar. Recordo-me que tinha uns óculos escuros, um boné azul e pareceu-me que usava o cabelo curto ― respondeu mais sereno, fixando-lhe os olhos esverdeados.
― Certamente que era ele ― confirmou incomodada pelo olhar persistente.
― Você... ― murmurou confuso, descobrindo-lhe os contornos do peito.
― O quê? ― inquiriu de soslaio, fitando os acenos da mãe.
― Nada. Desculpe, não é nada ― escusou-se ele, evitando-lhe a silhueta.
― Aqui o tem, mãe ― disse altiva, apresentando-o e retirando-se apressada.
― Obrigado, menina ― agradeceu o cavalheiro.
― Não tem de quê! ― retorquiu ela, sumindo-se no solar.
― Que calor, D. Susana! ― desabafou jovial, beijando a professora no rosto.
— É verdade, Rui Patrício. Nestes últimos dias, a Cristina e eu não temos saído da piscina. É começar às dez e terminar às dezanove ou às vinte horas.
― Mas valeu a pena D. Susana! Vocês têm um bronzeado muito bonito.
― Você acha? ― gracejou a professora, pondo-se debaixo do pára-sol.
― Eu cá não gosto nada de ir para a praia enquanto estou branco. Fico sem jeito diante das pessoas mais morenas e bronzeadas. É por isso que visto quase sempre estes pólos leves. São práticos e confortáveis.
― Nós também evitamos as praias da Costa do Estoril. Se não tivéssemos a piscina talvez as frequentássemos como toda a gente, mas assim...
― A madrinha também gostaria de construir uma, mas o jardim é pequeno.
― Para quem tem a praia mesmo à mão... ― insinuou ela, retomando a leitura de Mathias Sandorff, um dos inúmeros sucessos de Jules Verne.
― Eu preferiria esta privacidade, este sossego ― confidenciou ele, olhando curiosamente a capa do livro. ― Esse é em francês, D. Susana, mas eu li-o de uma assentada em português.
― Como, tudo de uma só vez?
― Sim. Comprei-o às quinze horas numa livraria do Estoril. Vim para casa, deitei-me de bruços e só descansei quando cheguei ao fim. Foram quase quatro horas sem parar.
― Era capaz de mo resumir em Francês, Rui Patrício?
― Se o tivesse lido na língua original seria mais fácil, mas, mesmo assim, poderei tentar. Por favor ajude-me quando me faltar um ou outro vocábulo.
― Com certeza, pode contar comigo ― anuiu a professora, fechando o livro.
― Il était une fois en Hongrie... — Era uma vez na Hungria...

Iniciando corajosamente o recital, ele impressionou logo de início a catedrática que o escutou em silêncio, à sombra do pára-sol. Mais além, na piscina, Cristina estancara as braçadas para o ouvir. À medida que a história avançava e a fluência do narrador se aperfeiçoava, o sorriso irónico das primeiras frases foi-se metamorfoseando. O jocoso tom do início acabou por virar ciúme. Visivelmente, ele exprimia-se bem melhor que ela na língua de Molière.

No fim, apercebendo-se da mudança da filha, a professora perguntou:
― Ouviu, Cristina?
― O quê, mamã? ― retorquiu em biquini, enxugando-se a uma toalha.
― Com que desenvoltura o Rui Patrício me resumiu este romance.
― Tenho que reconhecer que os seus professores são muito bons, Rui.
― Pois é, ― argumentou a mãe ― só os bons alunos fazem os bons professores.
― Confesso-lhe que o seu francês me impressionou ― acrescentou a donzela, mais dócil, enxugando os cabelos dourados.
― Obrigado, Cristina, você é muito gentil ― agradeceu confuso.
― Parabéns, Rui Patrício, continue sempre assim! ― exclamou a professora sincera, tocando-lhe na mão, ante a discreta vigilância da filha.
E separaram-se pouco depois, não fossem surgir divergências entre elas. A donzela acenou à mãe, que se retirava com o Rui, e voltou a estender-se na relva, expondo-se ao Sol.

Entretanto, no interior, a professora serviu um refrigerante ao visitante e encorajou-o a mergulhar na piscina, mas ele escusou-se com a falta do calção para não ir nadar. Aproveitando, porém, a gentileza da catedrática, manifestou o desejo de ver a piscina mais de perto. Quando lá chegaram, a donzela fingia preparar-se para saltar da prancha de três metros, espiando-os melhor, e aí se manteve até que a mãe lhe recomendou que tivesse cuidado com os saltos. Ao descobrir-lhe o magnífico corpo de manequim, Rui Patrício disfarçou o olhar concupiscente, tapando parcialmente as retinas com a palma da mão direita para fingir um encadeamento solar.

" Que fruto mais apetitoso, mas é verde e além disso..." ― disse para consigo, pensando na fábula de La Fontaine, antes de prosseguir, numa enamorada endofasia, o panegírico da inacessível exibicionista, endeusando-a. Impressionado com tanta beleza, o metabolismo libidinoso descontrolou-se; a íris dos seus olhos estupefactos inchou; a garganta apertou-se-lhe; os lábios morderam-se; as mãos suadas procuraram uma toalha entre os caracóis e a respiração, sufocada pelas golfadas do ardor que se libertava da fornalha do seu coração, tirou-lhe o discernimento.

Estes sintomas levaram-no a concluir que, como tantos outros, só podia ter sido contagiado pelo desconcertante vírus do amor. Abrasada, a cabeça pediu-lhe água, mas ele, já sem reflexos nem discernimento, não lha deu. As cambalhotas e as reviravoltas da sibarita na piscina cegaram-no tanto que, sentindo-se fraquejar, preferiu resfriar os ânimos debaixo do pára-sol, onde esfolhou o romance abandonado pela catedrática.

A leitura aliviou-lhe os pecados veniais, enquanto que a paixão entrava em incubação. Pouco a pouco, a tensão arterial foi voltando às margens da razão, devolvendo-lhe aquela peculiar tranquilidade, fruto de um controlo permanente que os adultos costumam confundir com a maturidade.

A solidão ajudou-o a recompor-se para resistir aos imprevisíveis assaltos libidinosos. Felizmente a D. Susana não o deixou só por muito tempo e a exibicionista, cansada de ser platonicamente cobiçada, preferiu ir-se embora e largar o seu cupido a desejá-la mentalmente. Assentados debaixo do pára-sol, o estudante e a professora falaram das aulas, das férias e dos passatempos preferidos. A D. Susana, que conhecia muito bem o brilhante percurso escolar do órfão, conseguiu arrancar-lhe a confidência da sua veia poética. Rui prometeu, no fim do Verão, mostrar à catedrática os versos que o demente calor estival entretanto lhe houvesse inspirado.
A bela Cristina só reapareceu perto das dezoito horas, arvorando um vestido branco que a brisa fazia ondular e por onde se adivinhavam e contrastavam os contornos lúgubres e bronzeados do seu corpo apetitoso. De madeixa alourada a encobrir-lhe parcialmente os seios firmes, ela parecia outra. Mais sorridente e natural, lá ia mordiscando uns morangos vermelhos que lhe avivavam os lábios, conferindo-lhes outro encanto. Perspicaz, a mãe adivinhou-lhe logo os propósitos sedutores, mas não se deu por achada. Afinal, no fundo, não era isso o que ela mais ansiava? Rui Patrício era inteligente, educado e de boa família.

Aquela cumplicidade maternal tirou-lhe, subitamente, os complexos mais incómodos. Às miradelas tímidas e superficiais sucederam-se olhares cada vez mais profundos e demorados; as frases curtas e incompletas, sinónimo de imaturidade e insegurança foram, progressivamente, substituídas por outras mais convincentes. Finalmente, Cristina rendia-se à instintiva evidência da mãe: o Rui Patrício parecia um rapaz excepcional!

Por detrás dos sorrisos e das pausas que a conversação lhe proporcionavam, ele dava-lhe ares de alguém muito conhecido, mas a memória, subjugada por esse pressentimento, bloqueou-se inexplicavelmente.

" Ah, finalmente achou! É realmente o George Harrisson! Será por isso que gosta tanto de colar o autocolante dos Beatles nos pólos e nas t-shirts? Deixa-me perguntar-lhe. Oh não! Posso envergonhá-lo... " ― dizia-se ela.

Involuntariamente, porém, trauteou o melodioso e apaziguador refrão do My Sweet Lord, o último sucesso do cantor. Olharam-se instintivamente, sorriram-se e, cada um bem ao seu jeito, cantaram a canção do saudoso Beatle.

Um clarão avermelhado fenecia exangue por detrás da verdejante serra de Sintra, quando surgiu a criada de avental branco e ofegante.

Dirigindo-se humildemente à patroa, a Maria pediu-lhe que fosse rapidamente ao telefone porque o senhor estava à espera. A professora levantou-se prontamente e partiu com a mensageira, deixando-os em jogos e olhares subtis.

Livre da sombra da mãe, Cristina pôde finalmente tê-lo só para si, mas, sem saber porquê, quando o coração lhe implorava que o beijasse, ficou sem jeito. Cabisbaixa, escondeu o rosto nas mãos trémulas. Os cabelos não conseguiam dissimular a intranquilidade que lhe ia na alma.

― A Cristina, sente-se bem? ― inquiriu nervoso, tocando-lhe tímida e levemente na madeixa emaranhada.
― Sim, não é nada ― murmurou ela docemente, afastando os cabelos.
― Se precisa de...
― Não é nada, Rui, não é nada ― acrescentou ela timidamente.
― Assim está bem! Isso... ― sussurrou ele, desviando-lhe a madeixa desalinhada que ainda lhe tapava parcialmente o rosto macio.
― Rui Patrício...
― Desculpe, mas... ― balbuciou confuso, retirando os dedos atrevidos.
― A sua madrinha quando chega? ― perguntou ela, sorrindo maliciosa.
― Amanhã! ― bradou ele aliviado, retribuindo-lhe o sorriso. Conhece-a?
― Sim, eu conheço-a e admiro-a muito. É uma mulher corajosa ― adiantou a donzela hesitante, traída pelo ar ciumento que pairava no seu olhar .
— A Dina é muito atenciosa ― cochichou baixinho, provocando-a.
— Os seus padrinhos são muito fixes, não são?
― Se são, Cristina, mas olhe que os seus pais não o são menos!
― O Rui passou para o sétimo, não foi?
― Sim. No próximo ano terei que fazer o exame de aptidão.
― Mera formalidade para si, claro!
― A Cristina pode tratar-me por tu.
― Quando você fizer o mesmo comigo...
― Está bem, Cristina, mas cada coisa a seu tempo. Acredite, será muito melhor se isso acontecer naturalmente. Sei lá, daqui a uns minutos, daqui a uns dias ou talvez daqui a uns anos, mas tenho a certeza que é isso que irá acontecer.
― Depois do liceu... — adiantou confusa e perturbada pela convicção do moço.
— Depois do liceu...
— Ah! Desculpe, é o calor! Depois do liceu que faculdade tenciona frequentar?
— A de Direito, se o padrinho resolver os problemas de sucessão a tempo.
― Que problemas? ― perguntou perplexa.
― Como sabe, os meus pais morreram em África e eu ainda sou menor. Além disso, o meu tutor é um tio meu e não o senhor arquitecto, como muita gente pensa. Coitado, esse meu tio nunca saiu da aldeia e para ele o mundo acaba em Trás-os-Montes.
― Não se preocupe, que o senhor arquitecto não deixará que lhe façam mal. Verá que daqui a um ano, a estas horas, estaremos aqui a brindar ao novo universitário.
― E a Cristina em que ano está?
― Concluí agora o quinto, Rui.
― Ai é?! Teria um prazer imenso cruzá-la nas praxes!
— Como carrasco?
— Claro!
― O Rui só pode estar a brincar comigo! Você não serias capaz de me magoar...
― Contra a tua vontade, não! ― assegurou envergonhado. ― Seria uma pena. Você é tão bela, Cristina! Tão... ― balbuciou enamorado.

Este galanteio sincero colheu-a de surpresa. Bem quis devolver-lhe a cortesia, mas não encontrou palavras. Apesar de leve, o vestido começava a sufocá-la e o seu peito ameaçava explodir dentro dela. Como batia, Santo Deus!

Adivinhando-lhe uma alegria transbordante, o moço pousou o livro que tinha nas mãos e ergueu-se taciturno, perscrutando nervosamente os arredores. Sem se aperceber, a sua inocência acabava de semear a felicidade no coração da donzela que, entretanto, se levantara e lhe lançara um beijo furtivo. Prisioneiros da timidez, eles olhavam-se circunscritos, esperando que o tempo ou alguém os ajudasse a resolver o imbróglio passional. Deus teve pena deles e soltou-lhes o cachorrinho da Maria para os descontrair. Agarraram-se instintivamente a ele com mimos e brincadeiras barulhentas que se misturavam com o bau-bau do adorável bichinho. Cristina apertou o cachorrinho contra os seios e perguntou:
― Ele é bonitinho, não é, Rui?
― Sim, Cristina, ele é muito giro.
― Passa-lhe, aqui a tua mão ― rogou enamorada.
― Cristina!... ― murmurou acanhado e surpreendido pelos carinhosos dedos femininos que deslizavam sobre a sua epiderme eriçada.
― Há pouco fiquei incomodada, mas gostei muito do teu galanteio, Rui!
― Desculpa se te incomodei, mas a verdade saiu-me sem querer do coração, Cristina. Se calhar não devia... ― confessou nervoso.
― Eu sei... Sim, ― prosseguiu meiga ― eu sei que tu gostas de mim. Quando me fixas, até parece que o brilho dos teus olhos ganha outra dimensão e dá-me a impressão que até já sou mulher... Enfim, eu penso que...
― Mesmo se os fitei como desejaria, Cristina, sei que os teus olhos enfeitiçam, fulminam, contaminam... Pelo menos o vírus do amor os teus já me transmitiram!
— Mesmo, Rui?!
— Mesmo, Cristina!
― Bom, hoje, quando te fores, irei pensar muito no que me dizes, Rui Patrício.
― Não sei se deva confessar-te, mas ontem, durante o retorno, fiquei muito perplexo e também não parei de pensar em ti. Pela primeira vez, senti um calafrio invadir-me a medula e subjugar-me, antes que dúvidas e medos tomassem conta de mim. Afinal não sabia se tu eras mais um daqueles sonhos impossíveis, um daqueles sonhos que nos passam pela mente só para nos iludir. Enfim, nem imaginas como ficaria infeliz se... Oh, até pode ser estúpido e ingénuo da minha parte confessar-te isto, mas quando te vi surgir no fundo da alameda, tive a impressão que estava a rever uma paixão antiga, um amor de uma outra vida!
— Outra vida?! Só os gatos têm sete vidas, Rui!
— Acredita, se quiseres, mas foi esta a minha sensação, Cristina!
― Outra vida não, porque eu, cá por mim, não tive essa percepção, mas que, mal te vi, também senti um coup de foudre, lá isso senti!
― A sério?!
― Duvidas de mim?
― Não ― afiançou o moço categoricamente.

E, fixando-a profundamente, ainda quis confessar-lhe que durante a noite não parara de pensar nela, de a desejar, de a beijar e a imaginar nua, mas não ousou revelar-lhe todos os fantasmas eróticos. Todavia o pudor recomendou-lhe prudência, não fosse ferir a sensibilidade dela. Cristina, mantendo-se séria, também pensou dizer-lhe que, sozinha no seu quarto, até pintara os lábios de vermelho para melhor o seduzir; que se levantara da cama e fora mirar-se ao espelho para saber como são os olhos de uma mulher apaixonada e que se despira, imaginando-o ali ao seu lado, para que ele a visse como Eva e a desejasse e a beijasse toda, todinha. Perdido a reviver mentalmente as fantasias nocturnas, Rui disse baixinho:
― Eu penso que esta noite Deus deve ter ficado escandalizado comigo.
― Deixa lá porque se Ele é Amor, como dizem, amar não pode ser pecado.
― Oxalá fosse verdade, Cristina!
E não se disseram mais nada.
Cansado de ser apertado, o cachorro saltara para o chão e voltara para a casota donde viera. Um vento arisco, soprando da serrania, arrepiou-os. Instintivamente, Cristina quis arrumar os pára-sóis e as cadeiras, mas o cavalheiro antepôs-se-lhe para que a princesa não se sujasse.

A professora apercebeu-se imediatamente da subtil afinidade entre ambos. Agora compreendia o porquê da descortesia manifestada bruscamente pela filha na véspera: as dúvidas e os ciúmes do amor. A secreta e electrizante simpatia que sentira apenas vira o jovem, de quem a família tanto falava, abalara terrivelmente o seu coração logo no primeiro olhar junto do portão. Porém tudo mudara quando se julgara subitamente superada pela carinhosa e persistente amabilidade com que a mãe o tratara. Imaginando-se destronada, a ingénua Cristina quisera repelir e destruir os seus sentimentos. A furiosa torrente passional suscitara-lhe tanta raiva que perdera as estribeiras e os odiara a ambos. Sim, agora a donzela sabia que o amor era realmente cego e louco.
Dando uma palmadinha nas nádegas da filha, a mãe bradou irónica:
― Você sabia que ainda há amazonas em Portugal, Rui Patrício!
― Mãe?! ― interferiu a moça arreliada.
― A Cristina quis arrumar as cadeiras, mas eu não deixei, D. Susana ― respondeu o moço prontamente, defendendo-a instintivamente.
― Eu estava a brincar! ― retorquiu-lhe risonha, beijando a filha caprichosa no ombro desnudado.
― O papá vai demorar? ― perguntou meiga, beijando a mãe.
― Olhe, escute, se mais depressa falava nele...
O barulho da viatura surgiu mesmo quando Rui Patrício empilhava a última cadeira e se dirigia para as mulheres. Entretanto, o advogado levantara o braço e acenava-lhes. Apressado, ele sorriu, beijou-as de fugida e desatou a correr na direcção do padrinho, saudando e despedindo-se do doutor na passagem.

No portão, ainda se virou e acenou feliz, antes de partir com um brilho nos olhos. Atento, o arquitecto viu tudo, mas não disse nada. No rádio de bordo, o José Cid cantava os vinte anos. Aumentou instintivamente o volume e sorriu, mirando a penumbra que se infiltrava no pinhal. Como jubilava! Assim enamorado nem viu o tempo passar. Hermeticamente trancado num mundo de sonho, ia viajando por um planeta paradisíaco e oh quão extraordinário! A incomensurável e indescritível magia da paixão obcecava-lhe a razão, alheando-o de tudo. Não restavam dúvidas: o amor contaminara-o!

À mesa, nem tocou nos alimentos. A adorável avozinha viu logo que ele estava doente. Pensando numa assolação, a velhota preparou-lhe um chá de tília que ele bebeu a ferver antes de se ir deitar. Transtornado, até se esqueceu de lhes dar as boas-noites e se despedir carinhosamente como era hábito.


Taciturno, o arquitecto preferiu ficar sozinho no terraço e fumar a sua cachimbada em paz, contando as horas que ainda o separavam da mulher. Mas que saudades! E como a desejava! Até parecia que a paixão do afilhado lhe fizera, subitamente, descobrir o charme da esposa. No fundo, ele sabia muito bem que o seu casamento era e seria sexualmente um fracasso e a Dina, tão generosa e sedutora, não lho merecia. É que, apesar de todo o carinho com que a jornalista o tratava, ele continuava a viver egoisticamente escravo de um amor imaculado e puro, o primeiro, a Alice, a única que fizera e fazia trepidar o seu coração. A nostalgia do passado mantinha-o em permanente submissão mental e impedia-o de saborear a felicidade que a Dina insistia em lhe dar. Agora por onde passava, o afilhado, que tanto adorava e com quem se identificava cada vez mais, ia propagando à sua volta o contagioso e delicioso vírus do amor.


continua em: Sexta, 20 de Julho ( 4º DIA )

Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson

Nenhum comentário: