Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Caprichos do Amor: Sexta, 20 de Julho ( 4º DIA )


Sexta, 20 de Julho 
( 4º DIA )



Sexta-feira, 20 de Julho, Rui Patrício ergueu-se de manhãzinha e foi dar umas corridinhas pela praia, questão de não deixar entorpecer os músculos. O padrinho, acordando muito mais tarde, passou pelo quarto do afilhado e, sentindo os lençóis frios, abriu a porta da esplanada. Ao longe, lá onde a baba salgada se desfazia, o adolescente executava figuras geométricas na areia. O astro-rei emergia preguiçoso do ventre do oceano.

Às oito horas em ponto, descortinando o vulto do arquitecto na sacada, ele respirou fundo e desatou a correr para casa. Descalçando as sapatilhas na entrada, limpou cuidadosamente a areia dos pés, enxugou o rosto suado com as mangas e voltou ao seu quarto sem deixar marcas nos azulejos do corredor.
No primeiro andar, a velhota aspirava as soalhadas vazias e limpava o pó.
― Bom dia, senhora Noémia! Hoje está muito madrugadora.
― Já falta pouco para a sua madrinha chegar e eu quero que ela encontre tudo a brilhar. Por isso não deixe nada fora do lugar, Ruizinho. Veja lá!
― Fique sossegada. Diga, quer uma ajudinha, quer?
― Estas não são contas do seu rosário, menino.
― Ora essa! Onde está o mal, senhora Noémia?
― Os homens são feitos para trabalhar na rua, nos campos, nas fábricas...
― Pronto, não a vou contradizer. Ah, queria pedir-lhe uma coisa...
― O quê?
― Se a menina Cristina me telefonar quando a madrinha cá estiver...
― O Ruizinho fala-se com a filha do senhor doutor Edgar, fala? Eu sabia...
― Sabia o quê, senhora Noémia?
― Ah, ela é tão bonitinha, simpática e tão dada! Sim senhor, uma menina como já não se vêem nos nossos dias. Diga, Ruizinho, vocês...
― Não, ainda não namoramos, mas penso que...
― O Ruizinho tome cuidado que os seus padrinhos e os pais da Cristina são como unha com carne! Veja lá, olhe que...
― Está bem, fique tranquila que não acontecerá nada. O padrinho já saiu?
― Ah, estou bem esquecida! ― disse alarmada, deitando as mãos aos cabelos brancos. - O senhor arquitecto pediu-me que lhe dissesse para dar uma vista de olhos naqueles assuntos que estão no escritório. Acho que lhe deixou um bilhetinho junto do quadro da sua madrinha.
― Muito obrigado, senhora Noémia.
― Ora essa, sempre às ordens, Ruizinho, ― concluiu graciosa, ligando novamente o barulhento comilão de poeira, como ela gostava de tratar o aspirador.

Enquanto a senhora terminou a limpeza, o moço tomou um banho e mudou de roupa. Depois de arrumar o quarto, Rui Patrício desceu à cozinha e bebeu uma chávena de café, mastigando uns biscoitos caseiros. Enquanto se restaurava, Cristina apareceu-lhe magicamente na maré do café. O vestido branco emergia da negridão fluida que ele absorvia lentamente para melhor a saborear. Ainda pensou levá-la consigo, mas o café resfriou e ela eclipsou-se subitamente como tinha aparecido.

Encerrado no escritório, executou as ordens do padrinho. No canto da secretária, a Dina desafiava-o, tentava-o, suscitando-lhe pensamentos perversos que se desvaneciam com a imediata aparição da gatinha que domara na véspera. Cambaleando à esquerda e à direita de rosto encrespado, ainda procurou um álibi para despistar a contradição e a devassidão mental. Ao passar perto da biblioteca, escancarou a porta, entrou e estatelou-se no sofá. Aborrecido, lançou um olhar pelas prateleiras, procurando tudo, nada, um romance, algo que nem ele sabia, mas em vão. Irrequieto, o seu pensamento vagabundo obrigou-o a erguer-se nervoso. De pé diante dos calhamaços, foi despertado por uma enciclopédia. Tirou-a, abriu-a à sorte e voltou a sentar-se, colocando-a nos joelhos. Foi assim que descobriu, mais uma vez, as diferenças biológicas do homem e da mulher, tabu que o colégio se vangloriava de cultivar religiosamente. Fortemente excitado pelas imagens sensuais e acometido por uma vaga tumescente, esqueceu-se da realidade temporal e começou a divagar ingenuamente pelas margens da imoralidade.

Desvendados os meandros da enciclopédia, fechou-a, arrumou-a no seu lugar e, estatelando-se novamente no sofá, esfregou os olhos. Depois, fechando-os, imaginou-se numa ilha tropical nos braços da Cristina. Aí, caído em adoração aos seus pés, viu-se arrependido, mas muito mais velho, a pedir-lhe perdão e a beijar-lhe desesperadamente as mãos de fada. O ruído do motor a gasóleo estancou-lhe subitamente a mirífica visão.

Aprontou-se, mirou-se no espelho e foi espreitar pela janela. Oh!.. Era a doce Dina que acabava de chegar! Colado no vidro, ele contemplava-lhe os trejeitos e as deambulações fascinantes sem pestanejar. Mas como mudara em três meses! Ao vê-la assim tão sedutora o desejo e a atracção que sentia por ela não eram os mesmos. Mas como a desejava santo Deus! De livros debaixo do braço e com um saco da TAP ― os Transportes Aéreos Portugueses ― a tiracolo, a jornalista precedeu o marido e saudou a governanta logo na entrada. Depois, subiu as escadas e deu com os olhos no afilhado:
__ Rui!
__ Madrinha!!
Atónitos, estancaram-se, olharam-se perplexos e beijaram-se no rosto.
― Mas, meu Deus, você está um homem feito!
― A madrinha acha? Olhe que eu só farei dezoito anos em Novembro!
― Só?! E eu vinte e quatro! Fazia-me mais velha? ― empiscou maliciosa.
― Não! ― disse corado, desviando o olhar do proeminente busto feminino.
― Vá, ajude-me a levar estes livros.
― Onde quer que lhos coloque? No seu quarto ou na biblioteca?
― Na biblioteca, se fizer o favor. Eu mudo-me rapidinho e volto já, sim?
E não disseram mais nada. Olharam-se apenas, sorriram-se, acenaram-se e partiram cada um para seu lado, lançando-se dois beijinhos. Curioso, o adolescente abriu os livros da congressista, mas, como eram em inglês, voltou a fechá-los e postou-se na porta, esperando que ela descesse. Ansioso, começou a roer as unhas. Entretanto, surgiu na sua retina flamejante a imagem do casal de mão dada, rindo feliz.
Naquele dia, a senhora Noémia florira e adornara a mesa como nos dias festivos. É que lhe metia dó ver o amo triste, sobretudo antes do Ruizinho chegar. A presença da patroa dava outra alegria àquelas paredes.

Durante a refeição, Rui Patrício não parou de os mirar. Interiormente, dizia-se que ela mais parecia sua filha que sua mulher. Agora, que a luminosidade do sol, batendo nos talheres se reflectia no rosto maquilhado da jornalista, compreendia porque é que o padrinho se casara com ela. O julgamento intrínseco alheara-o e fizera-lhe perder o tino à conversa dos padrinhos. Entre dois pratos, saciada a curiosidade, o arquitecto mudou de assunto e segredou à esposa:
― Dina, parece-me que o Rui Patrício está apaixonado.
Ela sorriu ligeiramente, olhou o nefelibata e perguntou curiosa:
― E quem é a felizarda?
― É a Cristina ― cochichou baixinho o marido.
Numa pausa abstracta, o jovem fisgou-os e, pelo movimento dos lábios, viu que haviam pronunciado o nome da sua amada. Corando instantaneamente, desviou os olhos e baixou-os sobre o prato. A madrinha ainda lhe apercebeu a contracção facial, mas não lhe disse nada para não o envergonhar ainda mais. Depois de um longo e absurdo silêncio, o adolescente perguntou trémulo:
― Madrinha, é verdade que o Big-Ben de Londres é assim tão impressionante e bonito como dizem?
― Sim, mas só o Big-Ben e outros monumentos, porque o fog, o nevoeiro é realmente doentio. Se quer que lhe diga, eu não trocaria este Sol e o nosso mar por nada, um palácio que fosse!
― Nem pelo de Buckingham?
― Bom, rainha de Inglaterra...
― E o padrinho que diz? Também pensa que Londres...
― Sinceramente eu não conheço muito essa cidade. Só lá estive uma vez e de passagem, no aeroporto de Heathrow, se não me engano. Depois desta semana a Dina tem obrigação de a conhecer de cor e salteado e pode-lhe contar...
― A madrinha quando entra de férias? ― inquiriu o jovem, mudando perspicazmente de assunto.
― Eu estarei de férias logo à noite, se esta tarde ainda conseguir escrever o artigo para o Diário.
― Que bom! Assim já tenho com quem ir à praia, não é padrinho?
― Claro! A Dina apreciará, por certo, a sua protecção, Rui Patrício!
― Félix, acha que a Cristina o deixará ir comigo à praia, acha? ― perguntou a esposa, com uma maliciosa insolência estampada nos olhos.
― Vocês também?!...
― Não precisa de ficar assim corado, Rui! ― volveu a jornalista, apertando os dedos do marido ― É tão natural na sua idade. Não se esqueça que nós também já passámos por isso. Diga, então não é bonito ter-se alguém que nos ame? Vá, não fique assim arreliado! Se quer que lhe diga, você teve muito bom gosto. Ela é muito gira.
― Desculpe, Rui Patrício, mas eu fiquei tão surpreendido e admirado...
― Eu sei, padrinho, eu sei
― Pronto, não falemos mais nisso. Outra coisa, quando é que vocês querem ir à praia?
― Hoje não, Félix. Venho tão cansada! Amanhã, depois, você é que sabe da sua disponibilidade, querido.
― A Dina tem razão. Está na hora de o senhor também tirar umas férias, padrinho. Anda sempre tão triste! ― disse o afilhado, olhando-o compassivo.
― Eu vou pensar, eu vou pensar ― desabafou o arquitecto taciturno.
― Olhe que nós só vivemos uma vez, padrinho!
― Eu sei, Rui Patrício, porém neste momento estou sobrecarregadíssimo com aquele projecto de Alcabideche. Se calhar nos próximos quinze dias não estarei disponível, mas sei que poderei contar consigo para me substituir no que for preciso.
― Bem entendido, padrinho! ― exclamou ele entusiasmado.
― Esta tarde vai sair, Félix? ― perguntou a esposa, mergulhando a ponta da língua no molho do pudim.
― Porquê, você queria ir a algum lado, querida?
― Não, eu vou ficar aqui a rever uns apontamentos que tomei no congresso e talvez precise de uma ajuda para escrever a crónica de amanhã. Hoje, sinto-me tão desinspirada!
― Eu tencionava sair com o Edgar, mas se você...
― Não, deixe que eu lá resolverei. É, tem razão, sozinha terei outra paz de espírito...
― O Rui Patrício fica aqui consigo. Acredite, Dina, ele pode-lhe ser muito útil.
― Então o Rui vai ou fica? ― insistiu a jornalista, sentindo a hesitação do afilhado.
― Se calhar... Espere um minutinho. Com licença ― respondeu duvidoso.
Limpando os lábios, o adolescente levantou-se, correu à cozinha a cochichar com a velhota e voltou ligeiro para confirmar:
― Sim, madrinha, pode contar comigo depois de fazer a digestão.
― É, vocês dormem a sesta e depois trabalham ― adiantou o arquitecto, olhando o relógio, apressado. Bom, até logo!
― Acalme-se, Félix, acalme-se! ― implorou a esposa, gesticulando nervosa.
― Desculpe, Dina, mas já estou tão atrasado! ― retorquiu o marido, inquieto, limpando os lábios.
― Senhor doutor, o seu cafezinho! ― berrou a criada pelo postigo da cozinha.
― Não tenho tempo ― respondeu ele no corredor, carregando o estojo.
― Félix, espere! ― ordenou-lhe a esposa, saltando da cadeira para o beijar.
Rui Patrício levantou-se também e, olhando pelo espelho, viu-os abraçarem-se e beijarem-se demoradamente como no cinema e fechou os olhos, esperando cabisbaixo e amuado. No íntimo, os ciúmes começavam a devorar-lhe a alma. Assentando-se novamente, Dina acabou de comer o pudim. Quando lambia a colher, a madrinha sorriu-lhe ternamente e perguntou:
― Esta tarde o Rui Patrício tenciona sair?
― A senhora precisa mesmo de mim? ― perguntou-lhe ele, fitando-a sério.
― Por enquanto não, Rui. Se quiser sair...
― Não, eu vou dormir a sesta, madrinha. Acorde-me quando quiser ― volveu tímido, desviando o olhar da ravina dos seios que ela fizera ondular caprichosamente com um suspiro.
― Eu só vou ajudar a senhora Noémia a arrumar a cozinha.
― Até já, madrinha, ― murmurou ele de voz rouca, lançando-lhe discretamente um tchau carinhoso.
Ela respondeu-lhe com um riso discreto e começou a separar e a empilhar a louça. Entretanto, na cozinha, a governanta lavava os pratos da sopa e nem se apercebeu que a patroa estava a tentar abrir a porta toda dobrada sob o peso das terrinas de porcelana.
― A minha senhora vá descansar que eu cá faço o trabalho. Vá, dê-me esses pratos senão temos cacos da Vista Alegre ― disse ela, socorrendo-a decidida.
― Senhora Noémia!...
― Já lhe disse. Não ateime, está bem? ― repetiu a velhota, peremptória.
Largando a louça nas mãos da governanta, a patroa não insistiu e, passando pelo escritório onde pegou nuns apontamentos, retirou-se para os aposentos conjugais. Entrando no quarto, ela fechou a porta e estatelou-se no colchão. A fadiga da viagem e a frustração que o marido lhe causara, por não ter ficado para lhe dar o carinho que ela tanto esperava e desejava, depois de uma semana de total abstinência, decepcionavam-na terrivelmente. E pensar que ela sentira tanto a falta dele no Hotel em Londres e resistira à proposta indecente de um colega de profissão. O Félix era muito bom para ela, o melhor dos maridos que uma mulher pode imaginar, mas quando entrava no quarto... Assim frustrada, Dina sentia-se realmente cada vez mais à deriva e começava a perguntar-se se, porventura, valia a pena continuar a ser-lhe fiel. Oh, se os homens não a enojassem tanto!

Aos vinte e quatro anos, a jornalista, casada há quase cinco com o célebre arquitecto, que conhecera dois anos antes numa recepção em casa de amigos comuns, instigadores dessa união, atingira a maturidade e conseguira, finalmente, aquele equilíbrio físico-psíquico-emocional que lhe permitiria assumir a tão desejada maternidade. Apesar do marido ter quase o dobro da sua idade, eles sentiam-se tão felizes que as deficiências sexuais eram de somenos importância. Afinal, o Dr. Félix Fontoura ajudara-a a realizar todos os sonhos profissionais e a apagar, sobretudo, as nódoas da fase dissoluta da sua vida quando, por premente necessidade, tivera que conhecer outros homens. Arrastava consigo, porém, desde há um ano, a mágoa de não ter conhecido ainda a alegria da tão desejada e tão implorada maternidade. Como queria ser mãe! E essa frustração, fruto de uma inexplicável e teimosa relutância do marido em ser verdadeiramente pai, provocava-lhe um certo nervosismo.

Como poderia experimentar a felicidade maternal se o arquitecto raramente conseguia levar uma cópula até à deiscência? Traumatizado pela morte da sua primeira esposa e do filho que ele tanto adorara e com quem brincara na barriga da mãe durante a gestação, o Dr. Fontoura ficava irritadíssimo quando alguém lhe recordava que precisava de um herdeiro. Mas porquê tamanha hesitação? Mesmo quando a esposa, no calor dos seus jogos amorosos lhe pedia que a fecundasse, ele retraía-se e desistia imediatamente, como que apavorado. Quantas vezes, Dina, olhando-o na alma, tivera a impressão de que havia um segredo que ele se obstinava em não revelar. Sim, o marido escondia-lhe algo de terrível. Mas o quê? O feitiço de uma amante não seria certamente porque não o julgava homem para isso, se bem que por vezes chegasse a duvidar e a pensar que ele tivesse outra mulher... E foi naquele turbilhão sentimental que a madame Fontoura passou a sesta.

Às quatro da tarde, passadas duas horas de cismática solidão, decidiu pôr-se a pé e ir procurar o atencioso e adorável afilhado. Depois de disfarçar as olheiras, ela esticou os jeans amarrotados e apertou os cabelos em rabo de cavalo com uma fita. A crónica do congresso, que deveria entregar na redacção do jornal antes das oito da noite, preocupava-a. Querer não lhe faltava, mas inspiração nem sombra. É que, famosa, ela não podia decepcionar o patrão nem os leitores, a quem devia a fidelidade e o respeito. Haviam sido eles a dar-lhe a estrondosa notoriedade que conhecia e por isso devia, depois daquela semana em Londres, escrever-lhes um artigo que os fizesse sonhar e quebrar a monotonia desse país à beira-mar plantado, mas adormecido à sombra do passado e onde nada de extraordinário, a guerra colonial à parte, acontecia há cinco séculos.

No terraço, balançando-se no cadeirão do padrinho, Rui devorava tranquilamente um romance de amor. Da janela da varanda, a madrinha, apesar da urgência da sua tarefa, não resistiu à tentação de o olhar como um estranho e de, pela primeira vez, o desejar fisicamente. O dever, porém, fê-la descer, mais reservada e distante para não o induzir em pseudo deduções, lhe suscitar falsas ilusões ou uma qualquer impossível esperança.
― Olá, Rui Patrício! Então, vamos?
― Vamos, madrinha.
― Há muito que está à minha espera?
― Sim, há um bocado, mas não dei o tempo por perdido, sabe?
― Então porquê? Descobriu algo de interessante nesse livro?
― Quando lê, a gente aprende sempre. Muitas vezes, quando menos contamos, descobrimos coisas simples, mas que nos fazem felizes. Sabe, madrinha, - adiantou filosofal - hoje, por exemplo, descobri que quem não tem passado, não tem raízes, quem não tem raízes não tem futuro, quem não tem futuro não pode sonhar e quem não pode sonhar, nunca poderá ser verdadeiramente feliz porque a felicidade é vida e a vida é impossível sem raízes.
― O quê?! Estarei eu, porventura, diante um filósofo? ― desabafou atónita.
― Também não exagere, madrinha! ― implorou risonho, lançando-lhe um olhar irónico para dissimular a felicidade interior.
― Pode mostrar-me esse livro, pode?
― Mas para quê?
― Para copiar esse magnífico silogismo, Rui.
― Ah! a madrinha pensa que eu copiei isso do livro, não é? Pois, eu sei que para si nunca passei do coitadinho do afilhado do senhor arquitecto! ― desabafou o moço revoltoso, fitando-a com desdém.
― Rui...
― Largue-me! ― gritou afónico, cerrando a ira na garganta e fechando os olhos, estático.
Nas suas retinas inocentes aparecia um orgulho ferido. Lendo-lhas instintivamente, a jornalista vira quanto o magoara e não lhe perguntou mais nada. A evidência saltava aos olhos: o Rui mudara muito! Deixara-o rapaz amuado em Abril, nas férias da Páscoa, mas ele voltava-lhe homem feito e mais ousado no Verão. E se ele tivesse arranjado uma namorada assim tão depressa só para lhe causar ciúmes e lhe dizer que estava pronto para amar?

Pensativa, Dina afagou-o com um abraço, um beijo na testa e viu-o mudar radicalmente: a decepção metamorfoseou-se num júbilo tão profundo que, num ápice, a felicidade iluminou o seu rosto cândido. Assentando-se no sofá de couro castanho de pernas cruzadas, a jornalista tentou desesperadamente encontrar a fórmula mágica que lhe permitisse sair do beco onde se encerrara, escrevendo, escrevendo, mas a musa estava zangadíssima com ela.

De pé junto da estante da biblioteca, Rui Patrício meditava. Um silêncio absurdo, apenas cortado pelo ruído das folhas e a respiração da amnésica, enchia o escritório até ao tecto. Forçadas, as palavras recusavam-se-lhe obstinadamente. Foi então que, subitamente, ele lhe pediu que fosse tomar um chazinho inglês, respirasse um pouco, fechasse os olhos e que escutasse bem o mar sussurrante e os gritos pipilantes das gaivotas. Hipnotizada, a jornalista obedeceu sem pestanejar, largando a esferográfica sobre os gatafunhos que trouxera de Londres. Seguindo-a pela janela, Rui Patrício mirou-a dos pés à cabeça e sorriu confiante.

Sozinho, o adolescente assentou-se calmamente na cadeira do padrinho e, tirando uma folha branca da gaveta da escrivaninha, desenhou um hexágono e escreveu-lhe nos lados seis perguntas. No centro desenhou um coração e um ponto de interrogação. E, pousando a bic do hotel, foi-se embora pelas traseiras da vivenda. No portão, avistou-a debruçada sobre a grade do terraço e, apontando para a janela do escritório, desatou a correr para a praia.


As gaivotas pipilavam atarefadas e os pescadores de fim-de-semana lançavam o anzol, enquanto as sibaritas infortunadas esperavam que algum cavalheiro com fome de amor as convidasse para um passeio gratificante.

Evitando as ondas para não molhar os pés, o aldeagante procurou o rochedo onde a água não batia e assentou-se pensativo, fixando a linha do horizonte. E a musa complacente infiltrou-se na maresia e, entrando-lhe de roldão pelas narinas, removeu-lhe o tear pensante, inspirando-lhe:



Lá longe,
tão longe que o olhar
com profundo pesar
se esmorece, 
vejo a agonia de uma sereia
que de paixão se fenece
nas vagas da maré-cheia 
pensando que não merece
a maldita traição
de quem lhe arrancou o coração... 
Lá longe,
nos confins do mar,
existe a redenção da flor
que não soube curar
o primeiro desgosto de amor
e atraída pelo abismo profundo
quer dizer adeus ao mundo ...


Mas como era bom colher a maresia quando o dia ainda nem se fenecia! O tempo sumira-se breve e tão de leve que nem escutara uma voz de fada roçar-lhe sibilina pela fronte, tão mansinha como a neve, e reter-lhe a febre afogada no seu olhar. Tapando os ouvidos, murmurou eu sei, seu sei , como se a musa lhe devolvesse os ecos apaixonados dos corações, por quem começava a morrer verdadeiramente de amores.

Erguendo-se arrepiado, o sonhador devolveu ao horizonte o fio da mirífica exaltação que o prendia ao céu e aterrou. Uma inebriante sensação de pureza reflectia-se-lhe no rosto transfigurado. Não admira pois que a aura do poente não o largasse. Mal transpôs os portões da vivenda, deu com os olhos no Mercedes e sentiu-se mal, fustigado pelos pensamentos indecentes, mas logo se dominou e partiu decidido à procura dos padrinhos. Encontrou-os no escritório em confidências. Olhou-os discretamente e prosseguiu sem lhes ligar. Pouco depois, no seu quarto, escutou o arquitecto chamá-lo:
― Rui Patrício!...
― Já vou padrinho, já vou.
Correndo lesto, desceu aos três os degraus e perguntou ofegante:
― O padrinho que me quer?
― Faça o favor de acompanhar a Dina à 5 de Outubro a Lisboa.
― É longe? Vamos demorar? Estou bem assim? Voltamos tarde?
― Dentro de uma hora devem estar de volta para jantar. Você nem precisará de sair do carro. É só para que ela não se aborreça durante a viagem. Eu não posso ir porque estou à espera de um telefonema. Vá, cuidado e não se demorem! ― aconselhou o arquitecto.

O adolescente obedeceu, correndo a assentar-se ao lado da madrinha. A viatura desapareceu na direcção de Oeiras, mantendo-os silenciosos durante mais de dez minutos. Embalados pela doce canção dos Moody Blues, as palavras eram inúteis; a estranha sensualidade da melodiosa Nights in the white satin resvalava com fragrância pelos deleitosos contornos femininos.

Rui Patrício tentou esconder o fascínio que ela lhe provocou e virou os olhos esfomeados para a Ponte de Salazar que atravessava o Tejo e ligava Lisboa ao Cristo-Rei de Almada, na outra margem, mas foi-lhe impossível resistir a tanto charme: os lábios vermelhos, os seios, as sobrancelhas, os olhos, os cabelos e o perfume que ela exalava, foram mais fortes. Assim subjugado, à medida que os quilómetros passavam, aquele jogo, inicialmente delicioso, ia-lhes viciando irremediavelmente o corpo e a alma. Adivinhando o ponto de ruptura, ela, que fixava a estrada e segurava bem o volante com as duas mãos sem pestanejar, arrepiou-se e soltou um tchim que a fez espirrar e balancear anormalmente os seios. Sentindo-a libidinosa, sorriu-lhe e murmurou timidamente:
― Santinha!
― Obrigada, Rui, ― agradeceu afável, retribuindo-lhe o sorriso carinhoso.
― Ainda falta muito, madrinha? ― perguntou o adolescente, olhando a azáfama das buliçosas ruas da cidade.
― Estamos mesmo a chegar, Rui. Espere um pouco que eu não demoro ― respondeu ela, estacionando o carro sobre o passeio de basalto.
― Não demore, Dina ― recomendou ele impaciente, olhando-lhe as ancas.
Ela, desconchavando-se toda, ajeitou a roupa em plena corrida, e entrou por uns portões de vidro. Pela janela, ele via-a gesticular com um velhote muito atencioso de uniforme cinzento. Ela parecia tão ansiosa que nem viu que a folha e o envelope que estendia ao porteiro caíra ao chão. Aflita, voltara-lhe as costas e correra a assentar-se ao volante. Não demorara um minuto. Disfarçando o olhar cobiçoso, Rui Patrício sintonizava o rádio. Accionado o motor de arranque e levantado o travão de mão, o Mercedes começou a deslizar pela calçada.
― A madrinha voou! ― exclamou radiante.
― O Rui é bem imprevisível...
― Porque diz isso, madrinha?
― Mas é ou não é verdade?
― Talvez. A Dina sabe...
― Ah, até que enfim! O menino assume-se como homem e ainda bem, porque senão será um castigo para quem tiver que o aturar pela vida fora.
― Aturar, madrinha?!
― Sim, afilhadinho. Porventura já imaginou o pesadelo daquela mulher que casa com alguém que não é capaz de assumir as suas responsabilidades?
― Olhe, madrinha, eu nunca fugirei às minhas responsabilidades, nem me tornarei tampouco, deliberadamente claro, pesadelo de alguém, sabe? Preferia morrer! Oh, esqueça, que estas não são contas do seu rosário.
― Morrer?! Credo, Rui, não me diga que está assim tão desgostoso da vida?!
― Oh, desculpe se a incomodei, Dina!
― Se alguém se deve desculpar sou eu, Rui. Há pouco fui bem estúpida, não fui? Vá, não finja que eu detesto mentiras.
― Está a referir-se ao incidente do silogismo, é?
― Sim. Fui estúpida não fui?
― Estúpida não direi, porque você ainda não me conhece, nem sabe do que eu sou capaz, mas orgulhosa certamente...
― Então que devo fazer para que você me perdoe?
― Nada, absolutamente nada. Ah, sim, sorria-me, por favor!
― Só? Mas isso não custa nada, Rui! ― desabafou sorridente a jornalista.
― Tudo nada vida tem um preço, Dina, e para mim não há dinheiro que pague uns olhos assim. Os seus são tão lindos! ― balbuciou emocionado.
― Lindíssimo foi aquele silogismo. Você nem imagina a alegria e a sensação interior que senti! Enfim! ― confessou arrependida, fitando-o de fugida para que ele não lhe visse os olhos mareados.
― Se começou a chorar para os tornar feios, enganou-se redondamente.
― Você está a mexer comigo, sabia?
― Talvez, mas então isso é recíproco, Dina.
― O Rui pensou no que disse, pensou, ou...
― Eu sabia, enfim, desconfiava, mas agora tenho a certeza, meu Deus! Oh, o que é que eu fiz?! Perdoe-me, madrinha, mas é verdade que penso muito em si.
― Desde hoje, desde quando, Rui?
― Desde sempre, Dina, desde sempre!
― Rui!?... ― volveu confusa e envergonhada, mordendo os lábios e segurando bem o volante com as duas mãos.
― Não sei se devo contar-lhe a verdade.
― A verdade nunca fez mal a ninguém, Rui.
― A primeira vez que a vi, ― prosseguiu impávido ― recordei ápices da minha infância e pensei que você seria a mãe que o destino me roubou brutalmente; depois, curada a fase da nostálgica reminiscência, passei a olhá-la apenas como a madrinha, mas agora, que me sinto crescer em maturidade, desculpe, mas só a vejo como a mulher fascinante que é e um homem deseja. Sabe, no calor dos meus sonhos, você é apenas a maravilhosa e doce Dina, a musa que adormece comigo todas as noites, mesmo sabendo que depois, quando acordo, tenho que pedir perdão a Deus...
― Amar não é pecado pois não?
― A si, talvez? Enfim, não sei, mas..., desculpe, esqueça...
― Eu também te amo muito, Rui. Vá, não te atormentes.
― Eu bem queria, mas não consigo. Por vezes até me pergunto que diabo de bicho sou eu, quando não penso que sou um bicho do diabo!
― O que vai ser de nós, Rui, o que vai ser de nós?
― Deus vai ajudar-nos, madrinha!
― Se soubesse como me sinto confusa!
― Eu sei que para si não é fácil nem evidente viver na mesma casa com dois homens, um que o é, mas não o assume integralmente e outro que, ainda não o sendo verdadeiramente, tanto o quer ser e vive a sofrer por não poder amar quem mais deseja no mundo, por muito querer ao moribundo sentimental, a quem tudo deve...
― Você tem o condão de ler na alma dos outros e de lhes dizer o que eles sentem e nem sempre têm a coragem de assumir, não é, Rui?
― Talvez, Dina, talvez... ― repetiu dubitativo e melancólico.
― Como se sente? Porquê esses olhos tristes? Estará porventura a pensar que eu fui, sou ou serei infiel ao seu padrinho?
― Longe de mim tais pensamentos. Não!
― Rui, saiba que nunca na minha vida consegui ter com ninguém uma conversa tão íntima e franca como esta que agora estou a ter consigo.
― Eu sei! O seu olhar diz tudo.
― Está a desejar-me não está?
― Sim, mas não como a Dina pensa.
― Sexualmente, quer dizer?
― Sim. Quando iniciámos a viagem, aí, sim, desejei-a fisicamente porque o seu charme feminino me excitava e há muito que me subjuga, mas agora, que lhe pude falar e abrir o meu coração e, sobretudo, conheço a nobreza da sua alma, adoro-a ainda mais e tê-la assim perto de mim suscita-me um prazer interior muito maior do que o sexual, porque eu tenho a certeza que você, quando tiver que ser, será minha e então amá-la-ei como um homem ama uma mulher.
― Que Deus me ajude a merecê-lo e a manter-me digna de ser quem sou.
― Oxalá, Dina, oxalá!
― Tchut! ― balbuciou serena, acariciando-lhe os lábios com os dedos finos.
Aquele gesto bastou para selar os seus corações e devolver-lhes a dignidade e a frieza que o respeito lhes impunha. Mais três minutos e estariam novamente face a face, distantes, respeitosos e joviais como dantes.
O arquitecto aguardava-os diante dos portões escancarados. De cachimbo entre os beiços, ele não parava de andar nervosamente para trás e para a frente e de se debruçar sobre o muro da estrada Marginal. Uf! Graças a Deus, hei-los que chegavam!...
― Seus malandros! ― gracejou irónico, retirando o cachimbo fumegante.
― O padrinho estava inquieto? A madrinha rola devagar, mas é boa condutora. Durante a viagem nunca largou as mãos do volante.
― Você ainda não conhece as manhas desta estrada, meu filho! A Dina tem razão: de Cascais até Lisboa a paisagem é tão linda que certos condutores se esquecem de guiar, mergulham no mar e ...
― Senhor doutor, venham comer! ― gritou-lhes a governanta aflita.
Antecipando-se aos padrinhos, que haviam tranquilizado a velhota com um aceno, Rui foi lavar-se e pentear-se à pressa. Quando entraram na sala de jantar, os padrinhos surpreenderam-no a murmurar baixinho com a senhora Noémia na cozinha.

" Cristina não é do meu mundo! " ― dizia decepcionado por ela não lhe ter telefonado como prometera na véspera. A frustração tirara-lhe a vontade de comer. Aborrecido, tomou apenas a sopa e, desculpando-se, retirou-se. Mal virou as costas, a velhota correu a cochichar aos patrões:
― O Ruizinho pensava que a menina lhe telefonava. Coitadinho, ficou tão triste que nem comeu nada!
― O Rui é muito corajoso e saberá dar a volta aos desgostos ― acrescentou a patroa, insensível, apertando a mão do marido.
― A Dina tem razão, senhora Noémia. Isso passa. Ele é muito novo e amanhã, se Deus quiser o amuo ter-se-á eclipsado. Vá, não se aflija.
― Deus o ouça, senhor doutor, Deus o ouça! ― implorou a governanta, benzendo-se devotadamente.
Depois do jantar, o casal retirou-se para o terraço. Abraçados, eles contaram as estrelas e mataram, finalmente, as saudades, beijando-se amiúde. Divertida, Dina ora roubava o cachimbo ao marido, ora ameaçava atirá-lo ao mar.
Entretanto, a velhota fora deitar-se cansada.


Sozinhos, excitados pelas mordeduras e as apalpadelas sensuais, eles apagaram a luz do terraço e aninharam-se um no outro, deixando-se embalar pelos sussurros do mar. A jornalista sugeriu ainda ao marido uma noite romântica ao luar, porém ele recusou, preferindo ir mais cedo para a cama. Pudico e tímido, o Dr. Félix sempre fora muito introvertido, porém, depois da morte da Alice, o primeiro e único amor da sua vida, com quem se casara e que perdera num ensolarado 15 de Agosto, a culpabilização por essa tragédia traumatizara-o e roubara-lhe a felicidade.


Todavia, desde a chegada do afilhado, sentiu a chama da apetência reavivar-se, apesar de o boletim clínico, que ele escondia à esposa, lhe aconselhar prudência. E aquela noite, depois de uma semana de penitência, deve ter sido realmente mágica. Esfomeados, os seus corpos devem, certamente, ter-se desforrado e conservado acesa a chama do amor até alta madrugada.

continua em: Sábado, 21 de Julho ( 5º )

Caprichos de Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson / 

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