( 6º DIA )
As onze horas de domingo tilintaram sem que o adolescente se mexesse. Ao meio-dia menos um quarto, o arquitecto foi encontrá-lo a jorrar felicidade por todos os poros. Naquela noite, Rui Patrício iniciara uma deleitosa viagem pelo sensual mundo erótico. Fitando-lhe os bocejos matinais, o padrinho sorriu e retirou-se sem se atrever a acordá-lo, tão elevado no sono o sentira. Porém, assarapantado pelo barulho, o nefelibata saltou da cama, lavou-se e, consultando o relógio, vestiu-se rapidamente. Ao passar pela cozinha ainda bebeu um sumo de laranja e mais nada. No corredor, a velhota ria como uma perdida. Os padrinhos haviam desaparecido! Limpando-se à pressa, o sonhador correu para a garagem.
― Dina!!! ― exclamou estupefacto.
Ela não respondeu. Conservou a pose, sorriu e, suspirando baixinho, empiscou-lhe. O marido retirava a viatura. Ouvindo o motor ronronar, Rui olhou à sua volta e, sentindo-se só, beijou-a de fugida entre o rosto e os lábios vermelhos. Como jubilava! Assim, com o cabelo cortado, Dina era realmente a tara que imaginara. E o redobrado fascínio deixou-o estático a vê-la partir.
No passeio, o padrinho buzinava. Correndo lesto, foi assentar-se no banco de trás e, fechou os olhos artificialmente sonolentos, não fossem eles denunciá-lo ao marido daquela por quem sonhava há tanto tempo.
O arquitecto olhou-o pelo espelho e, empiscando à esposa, exclamou:
― Realmente este novo look faz da sua madrinha uma mulher de sonho!
― Ah, o padrinho também gostou deste corte!
― Muitíssimo! Adorei imenso! O Rui nem imagina a felicidade que senti quando dei com os olhos nela. Estou tão feliz que nem sei como lhe agradecer.
― Ah, o padrinho não sabia que os talhadores de diamantes ou de pedras preciosas são quem mais felicidade tem?!
― Parem lá com isso que ainda me fazem estalar o verniz ― suplicou corada, sentindo-se tão desejada.
E, subjugados como estavam, os homens não ousaram contradizê-la.
No solar, todos saudaram e apoiaram a metamorfose da jornalista. Como na antevéspera, o afilhado do arquitecto foi calorosamente recebido pelos pais da Cristina que, ostentando um vestido florido, o acolheu com um largo sorriso e um beijo. Como estava sedutora! Incomodado com tanto charme, o adolescente afastou-se discretamente e, cheirando carinhosamente as rosas do jardim, encaminhou-se para a piscina onde espelhou o nervosismo que tinha na alma. Um cadeirão de praia jazia à sua disposição. Assentado-se, pôs-se na direcção do Sol e fechou os olhos para não se encandear.
Pouco depois, surgiu a doce Cristina com um copo de Martini bem gelado.
― Aqui tem o seu aperitivo, Rui, ― disse carinhosa.
― Obrigado, Cristina, ― agradeceu o envergonhado.
― Como se sente? Está tudo bem? Em que praia esteve? Viu lá muita gente?
― Tantas perguntas de uma só vez, Cristina?
― O Rui bem sabe que as mulheres são muito curiosas, não sabe?
― Sei, mas espere um pouquinho, por favor! ― implorou meigo, ondulando o aperitivo e bebendo um trago, antes de prosseguir calmamente. ― Olhe, menina, cronologicamente falando, primo, sinto-me como um lagarto que vai perder a pele; secundo, penso que podia estar melhor; tércio, fui para a praia da Azambujinha e quarto, não encontrei lá nenhuma gatinha que merecesse uns arranhões. Satisfeita?
― Sim!...
― Mais alguma curiosidade?
― Não! Estou muito feliz por te ter aqui bem pertinho de mim ― volveu carinhosa, pousando as retinas esverdeadas na efígie dos Beatles.
― Eu preferia estar sozinho contigo numa ilha deserta, Cristina.
― Dá tempo ao tempo, Rui! Os frutos não se devem colher antes do tempo.
― Certo, menina, mas o que fazer quando se acaba de atravessar um deserto cheio de fome e de sede e subitamente surge um oásis? ― questionou malicioso, bebendo um golo.
― Ah, aí não sei! ― respondeu confusa, corando como uma cereja.
― Come-se e bebe-se o que há!
― Sim, mas..., e se for proibido?!
― Proibido, ora essa?! A proibição acabou com o pecado original. E ainda bem que existiu uma Eva porque senão o pobre do Adão...
― O Adão ou a Eva?! ― perguntou embaralhada, não vendo a malícia.
― Sim, menina, se a Eva não fosse corajosa e não tivesse ousado provar daquela fruta apetitosa, o burro do Adão ainda agora estaria a olhar...
― Está bem, porém esta fome de que falamos não mata, pois não?
― Se não mata, enlouquece, o que é muito pior, Cristina.
― Também tens razão ― anuiu atrapalhada, virando-lhe as costas.
― Acalme-se que o jogo não terminou ― disse teimoso, retendo-a pelo braço.
― Cuidado, Rui, eles estão a olhar-nos! ― advertiu ela, respondendo aos acenos dos adultos lá no varandim.
― O teu pai está a olhar-me com uns olhos!
― É impressão tua, Rui. Ele acha que tu és um bom menino, que...
― Ainda bem! Então anda lá. ― ordenou risonho, seguindo-lhe as pegadas.
À mesa, as duas famílias ficaram face a face. Aos Sampaio, porém, faltava o Júlio, o primogénito, a cumprir o serviço militar na Ota, uma base da Força Aérea Portuguesa perto de Lisboa, e cujo sonho era ir para a Guiné ajudar o General Spínola, o Governador Militar, a ganhar aquela guerra maldita que nunca mais acabava.
Depois do almoço, os homens foram passear pelo pinhal até aos extremos da quinta, aproveitando para fumar uma cachimbada. As esposas e os adolescentes preferiram ficar perto da piscina, assentados debaixo dos pára-sóis, a digerir o almoço para poderem mergulhar. A meio da conversa, Dina revelou à amiga que o afilhado fora o mentor do seu novo visual. Pensativa, a Cristina desfolhava um malmequer e nem prestou atenção à confidência da jornalista, ao invés do moço que, sentindo-se traído e imprensado pelos olhares maliciosos das mulheres, se levantou corado como um pimento.
Apesar da brisa suave por onde navegava a maresia refrescante, ele fingiu-se sufocado e resolveu deixá-las, indo entreter-se com a donzela.
― Deu sim ou não? ― perguntou curioso.
― Oh, não faz mal, devo ter-me enganado! ― respondeu ela aborrecida.
― Queres ver como tenho mais sorte? ― disse confiante, cortando outro.
― Se calhar! ― balbuciou ela expectante.
― Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer... ― repetia convicto, arrancando as pétalas da flor uma a uma.
À medida que a flor se despia, o olhar da moça afinava-se e a respiração retinha-se por segundos. Afónica, ela quase delirou ao ouvir o moço exclamar:
― Bem-me-quer, Cristina!
― Foi sorte! ― desabafou trémula, dissimulando um sorriso por detrás dos punhos cerrados e cruzados como a figa da sorte.
― Ah, não seja má perdedora, menina! Comigo dá sempre bem-me-quer.
― Tens a certeza, Rui Patrício?
― A certeza, a certeza, ninguém é infalível, mas aposto contigo.
― De acordo. E o que vale? ― inquiriu curiosa.
― Um French kiss ― replicou sério, fixando-a obstinadamente.
― Apostado! ― exclamou ela, empiscando-lhe maliciosa.
― Vá, corta lá outro malmequer e dá-mo. Até te faço mais, podes dizer-me por onde começar, por bem, por mal, por se calhar ou por talvez. Seja como for, eu sei que vou ganhar ― afiançou emproado.
― Pega neste e diz bem-me-quer, mal-me-quer... ― ordenou corada.
― O.k! Olha bem que eu vou começar. Um, dois, três bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer... ― repetiu certinho como um relógio suíço.
― Sim..., sim..., sim.. ai-ai... ai! ― gritou ela, tapando a boca com os dedos.
― Bem-me-quer! Perdeu! ― bradou ele vitorioso, mordendo os lábios.
― Oh, por favor, perdoa-me desta vez!
― Perdoar, eu? Não! ― recusou peremptoriamente.
― Tchut, elas podem ouvir! ― implorou ela aflita, olhando o pára-sol.
― Onde vais? ― perguntou baixinho, obedecendo aos acenos discretos que ela lhe fazia por detrás de uma roseira.
Ele deu dois passos e seguiu-a. Escondendo-se na vegetação, Cristina parou junto de um pinheiro e encolheu-se nervosa. As suas retinas amedrontadas lançaram ao predador um olhar louco, como que a pedir-lhe remissão, mas em vão. Depois de se certificar que ninguém os via, Rui Patrício abeirou-se dela, encostou-a à árvore e, amarrando-a contra o peito arquejante, segurou-lhe o queixo, beijando-a demoradamente. As suas línguas limaram-se desesperadamente. Ela ainda tentou, num impulso defensivo, afastá-lo, mas a febre do desejo subiu-lhes à cabeça, descontrolando-os. Acometido pela indómita e rude tumescência, ele apostrofou-lhe a cintura pélvica com o rígido membro viril e, colando as mãos nos seios dela, circundou-os carinhosamente. Um silêncio sufocante saltou sulfuroso dos seus ventres convulsivos, fazendo-os delirar. Naquele beijo obcecante, eles experimentaram as delícias da inefável felicidade que os seus corações tanto desejavam. Aquele fora o minuto mais breve da vida deles. Prisioneiros do crescente ardor passional, eles amedrontaram-se e separaram-se desnorteados cada um para seu lado.
Cristina desapareceu no meio dos arbustos, fazendo-o correr assustado. Perplexo, Rui Patrício regressou vagarosamente ao canteiro das rosas; aborrecido, começou a contar os passos à volta do trampolim: o seu espírito intimidado procurava uma porta de saída, mas a consciência sussurrante reprimia-o, implacavelmente.
Estava naquele conflito interior, quando viu surgir a sua presa, mais jovial do que nunca, ostentando um biquini branco para fazer sobressair o bronzeado e um sorriso mágico. Ele olhou-a boquiaberto e sorriu também. Que bela!
― Não tens calor, não? ― perguntou a tentadora, pondo-se em bicos de pés.
― Se tenho, Cristina! ― bradou cortês.
― Então... ― retorquiu a mãe da donzela, surpreendendo-os.
― Ah, são vocês, D. Susana! Não trouxe o meu calção, pois não, madrinha? ― inquiriu muito envergonhado.
― Venha comigo, Rui, ― disse a catedrática, convidando-o a ir escolher um.
― Não me arranjas um, Susana? ― perguntou a jornalista, mostrando à colega um sorriso malicioso.
― Claro, Dina! Anda, vem escolher um.
― Não demorem que ela está boa! ― bradou a donzela, chapiscando a água.
E não tardaram. Mal dera uma volta à piscina e hei-los que voltavam joviais. A jornalista trazia um discreto biquini azul e o moço ajustava uma bermuda do Júlio. Mais atrás, a mãe vestia um monoquini preto e carregava umas toalhas da Riopele.
Exibicionista, Rui Patrício subiu ao trampolim, atirou-se para a água de pés juntos e nadou para o canto oposto ao da Cristina, que soltou uma gargalhada por ele beber água e tossir. Dina e Susana assentaram-se no muro, batendo os pés na água morna. Depois, molhando as espáduas e os braços, deixaram-se cair e mergulharam também. Foi então que a jornalista se lembrou que não sabia nadar e começou a atrapalhar-se, estranhando a impulsão da água, muito mais fraca que na Azambujinha.
Atento, o jovem socorreu-a imediatamente, segurando-a com um braço e nadando com outro. Vendo-a aflita, a professora indicou-lhe a zona onde tinham pé, mas ela não quis dar parte de fraca e, agarrando-se ao bordo, tentou nadar calmamente os três metros que a separavam da amiga. Lá no seu canto, Cristina ria-se como uma perdidinha, enquanto Rui encorajava orgulhosamente a temerária.
― Vá, madrinha, mostre que já sabe nadar! Mais uma braçada, isso, isso!
― Força, Dina! ― apoiou a catedrática.
― Uf, é difícil, Susana! ― desabafou a aprendiz, respirando cansada.
― Com um professor destes, podes nadar de olhos fechados no mar alto, Dina.
― Oxalá que sim, porque senão desisto e juro para nunca mais.
― Se fosse na praia, ela já nadaria sozinha, D. Susana.
― Acredito, Rui Patrício. Pronto, deixe-a comigo e divirta-se, que eu cuido-lhe dela ― disse a professora, retirando-se com a amiga para a relva.
Cristina, vendo-se livre da presença da mãe, fitou-o bem e sugeriu:
― Queres apostar como eu aguento mais tempo debaixo de água que tu?
― A menina pensa que é uma sereia? ― respondeu irónico.
― Se és homem, aposta ― retorquiu nervosa, fustigando-lhe a virilidade soberba com um olhar enfurecido.
― Ai, ai, menina! Olhe que as apostas nunca deram bom resultado. Veja lá...
― Não queres perder, não é? ― insistiu ela teimosa.
― O.k, aceito, mas só para ter o prazer de te ver engolir a piscina!
― Ah, querias! Ei, se ganhar, quero um prémio especial ― disse a caprichosa.
― Se tiver para dar... ― concordou o zombador.
Postados em cantos opostos, olharam-se, desafiaram-se e mergulharam debaixo de água, nadando de respiração suspensa e espiando-se de fugida. Submerso, inexplicavelmente sem fôlego, Rui mal teve tempo para lhe ver e admirar as coxas como era seu desejo, desistindo rapidamente, enquanto ela, que o vira levantar-se e encostar-se às escadas metálicas, sorria e dava uma volta triunfal à piscina, tal sereia orgulhosamente enamorada.
― Ei, podes parar, Cristina!
― Coitadinho do bebé! ― exclamou ela trocista, empiscando-lhe maliciosa.
― Também não precisas de te rir assim de mim! Ah, é esse o teu prémio!
Ela meneou negativamente a cabeça e, sorrindo feliz, esticou-lhe, voluptuosamente a tentadora língua sequiosa. Ele mergulhou na água e foi nadando até perder o fôlego para evitar sucumbir à tentação e, sobretudo, esmorecer a tumescência. Ofegante, agarrou-se às escadas metálicas e aproveitou para amassar discretamente a virilidade irreverente contra os azulejos azuis. No lado oposto, Cristina exibia as credenciais da sua resplandecente feminidade, esperançada em o encadear, mas ele evitou-lhe o olhar insidioso, fugindo para fora da piscina.
Mal pisara a relva e já a madrinha atenta lhe estendia nos ombros a toalha onde ela mesma se limpara, enxugando-o carinhosamente, perante a enciumada atonicidade da vingativa dulcineia.
― Estás assim tão desgostoso da vida, tolinho?!
― Não, Dina, ― negou ele, limpando os olhos avermelhados.
― Vá, seca-te e vem que eu passo-te um bronzeador nessas espáduas.
― E elas?!...
― Deixa-te de complexos que elas não são bruxas ― cochichou a jornalista, largando-lhe a toalha nas mãos trémulas.
À professora, que apanhava sol e lia Fernando Pessoa, Dina desabafou:
― Ah, aquela timidez é demasiado doentia, Susana!
― Então? ― questionou a catedrática, retirando os óculos de sol.
― Apenas vê uma mulher fica logo desajeitado. Bonito é, mas parece que tem medo das mulheres! ― confidenciou ela, referindo-se ao afilhado.
― Não é nada disso, Dina. Coitado, ele está a viver o conflito tumultuoso da puberdade. Se por um lado, fisicamente, se sente adulto, por outro, psiquicamente, ainda mistura certamente o sonho com a realidade, o que lhe deve provocar um mal-estar terrível.
― Se calhar, mas, com quase dezoito anos, já não devia ser assim.
― Não acho, Dina. Queres ver? Rui Patrício! ― bradou a professora.
― Diga, D. Susana, ― respondeu prontamente.
― A sua madrinha anda preocupada consigo.
― Ah, bom?! Mas porquê? ― indagou surpreendido, pousando a toalha.
― Assente-se aqui que eu explico. Pegue neste bronzeador e escute estes versos de Fernando Pessoa - sugeriu simpática, lendo-lhe pausadamente algumas linhas do livro do recém-desaparecido poeta e ensaísta lusitano.
Todo ouvidos, Rui Patrício fechou os olhos e escutou-a em silêncio, permitindo que lhe aplicassem ao mesmo tempo o bronzeador. Dina, essa, ouvia a declamação ritmada da amiga. Entretanto, Cristina pegara também uma toalha e, limpando-se, observava-os curiosamente. A poesia, dita com aquela entoação, infiltrava-se nos caracóis do nefelibata, domava-lhe o medo e atirava-o para as margens da doce nostalgia, lá onde o sonho se vivia em pleno dia e o coração batia ao ritmo da paixão. Voando pelas galáxias da ilusão, ele perdeu-se e, abstracto, deitou-se de bruços a fantasiar.
― Que beleza, Susana! ― exclamou a jornalista, retirando os óculos de sol.
― Tchut! ― sussurrou a professora, fechando o livro e pegando no tubo para o ludibriar.
Absorvido pelas miríficas quimeras, o adolescente mal sentiu o líquido gorduroso escorregar-lhe pelas espáduas, arrastado por uns dedos esguios e meigos como os da mãe.
― Que bom! ― bradou distraído, inspirando a brisa suave.
Ninguém respondeu. Pouco a pouco os dedos foram cessando o vaivém e ele, sempre de costas, murmurou baixinho:
― Essas sim, são mãos de fada!
― Você dizia? ― perguntou a madrinha, tocando-lhe no pé.
― Nada, não foi em si que eu pensei ― escusou-se ele intrigado.
― Gostou do poema, Rui? ― interferiu a professora, escondendo as mãos.
― Muito, D. Susana, mas a doçura das mãos que me aplicaram o bronzeador era bem mais relaxante, tal como a voz era melodiosa ― confessou envergonhado, desconfiando daquele riso cúmplice que ambas se trocavam.
― E a massagem não o atrapalhou, não?
― Não, porquê, D. Susana?
― É que a Dina diz que você se irrita e foge das mulheres, como o diabo de água benta. Os homens...
― Por amor de Deus, D. Susana! Longe de mim tais pensamentos!
― Estás a ver como não é verdade, Dina?
― Ai ela pensa que eu... ― deduziu ele, soltando uma enorme gargalhada.
― O Rui sabe qual de nós lhe aplicou o bronzeador? - volveu a professora.
― Foi você ― respondeu prontamente, olhando-a com uma ternura filial.
― Eu?! Como é que adivinhou? Ah, o malandro fingia que dormia!
― Juro que não, D. Susana, ― confessou cabisbaixo, acrescentando melancólico: ― Eu tive a impressão que era a minha mãe quem me passava o creme. Os seus dedos tocavam-me com aquela ternura e aquela leveza maternais que essas meninas estão longe de possuir. As mãos delas estariam certamente muito mais nervosas, não acha?
― Se você o diz! ― bradou a professora, sorrindo e mostrando-lhe as mãos gordurosas para lhe confirmar a justeza dos pressentimentos.
Incrédulas, Dina e Cristina piscaram-se e viraram a cabeça para dissimular um riso trocista. Ele apercebeu-se, mas não se deu por achado e jurou que, haveria de se vingar, antes de o Verão acabar. Aproveitando a ausência da catedrática, que fora lavar as mãos, ele fixou-as furioso, mergulhou intempestivamente na piscina para tirar o bronzeador e desapareceu, largando-as a cochichar debaixo do pára-sol. Quando as beldades decidiram ir mudar de roupa, cruzaram-no já vestido e penteado no patamar da entrada. Vendo-as, ele esticou-lhes raivosamente a língua, simulou-lhes a silhueta ondulante e, imitando-lhes a marcha sobranceira, afiançou desdenhoso:
― Cá se fazem, cá se pagam!
Elas, porém, não lhe deram ouvidos e prosseguiram nos bicos de pés, indiferentes à pirraça do rapaz que, rejeitado por quem mais amava e mais desejava neste mundo, partiu frustrado à procura dos homens, dizendo-se que com elas só arranjava chatices. Passando pela entrada do solar, reparou que a viatura do padrinho não estava no lugar. Cabisbaixo, voltou para dentro, percorrendo lentamente a alameda florida, que o sol poente inundava de rubro manto, e cismando com as hipotéticas inclinações homossexuais que a madrinha injuriosamente lhe desconfiava. Só lhe apetecia violá-la publicamente e mostrar-lhe que estava redondamente enganada. Ai Dina, Dina! Foi nesta exacerbação que ela, aureolada como uma santa pelo astro-rei, lhe cortou subitamente os passos meditados e lhe sorriu carinhosamente.
Como estava sedutora!
Diluído o rancor, Rui Patrício precipitou-se-lhe nos braços e pediu-lhe perdão, agarrando-lhe e beijando-lhe desesperada e apaixonadamente as palmas das mãos. Quem os visse não precisava de mais nada para saber como se amavam. Nos olhos turquesa da madrinha espelhava-se um coração solitário à beira do abismo, quiçá do suicídio. Rui sabia muito bem que só ele a poderia salvar, mas os medos e os tabus, rédeas da sua consciência atribulada, iam-no retendo. Por quanto tempo mais, sobretudo agora que o penteado lhe devolvera verdadeiramente a Dina com quem desejava aprender a ser homem e a descobrir a inefável magia do amor, a loucura que tanto queria conhecer.
Entrementes, Cristina, a outra face do amor, antecipou-se-lhe e desculpou-se pelos risos trocistas. Muito mais atrás, Dina disfarçava mal a emoção que ele lhe suscitara e tentava recuperar a máscara invisível que a protegia da suspeição alheia. Na sala de jantar, Rui Patrício soube que os senhores doutores só voltariam de madrugada depois de terem visto o Padrinho, um filme sobre a engrenagem mafiosa. À mesa, vendo-as tão dóceis e simpáticas, ele imaginou-se um Pachá num harém adulado e servido pelas mais belas odaliscas da Terra. Assentada ao lado da mãe, cada vez que cruzava o olhar dele, Cristina lembrava-se daquele gostoso beijo furtivo que ele lhe dera contra o pinheiro. Oh, como era bom sentir-se assim possuída e desejada! E o sonho começou...
A criada serviu-lhes o café ao luar à volta da mesa redonda, onde jogaram uma suecada para matar o tempo. As senhoras quiseram rir-se dos adolescentes, mas a sorte não as bafejou naquela noite. À segunda chitada, elas desistiram para júbilo dos jovens que humorados descobriram novas afinidades. O serão terminou diante da televisão a ver um filme francês legendado. Apesar de ser a preto e branco, o enredo da história maravilhou-o. Quantas vezes não quisera ler O Conde Monte Cristo? Afinal, nem foi preciso. Instaladas nos sofás de couro, Dina e Cristina tossiam, espiando-lhe os trejeitos, sobretudo quando a heroína o fazia corar e tocar-se discretamente as partes viris.
E já era segunda-feira, quando regressaram a casa. Extenuados pela sonolência, adormeceram mal caíram em cima dos lençóis...
continua em: Segunda, 23 de Julho ( 7º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
2 comentários:
Estive no AD_LITTERAM, acho que foi muito boa ideia. Por favor continua a colocar o resto do livro, até aqui já tinha lido, quero ler resto.
Beijinhos
nb: deixado pela Lena no meu netlog !
Olá Helena,
quase desisti, porque não tem sentido publicar para ninguém ler e ao 6º DIA alguém deu sinal de vida...
Espero ver mais comentários aqui.
Bjs
Luís
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