Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

domingo, 16 de março de 2008

Caprichos do Amor: Domingo, 12 de Agosto ( 27º DIA )


Domingo, 12 de Agosto
( 27º DIA )



Farto de cama, mal o sol despontou, o arquitecto pôs-se a pé sem fazer barulho para não os acordar e, pegando nos remédios, desceu para a cozinha, onde preparou um café bem forte para tonificar o corpo e lhe empurrar os doces para a barriga com os medicamentos. Depois, saindo pela calçada, foi assistir à santa missa, retomando o velho hábito domingueiro da Alice. Pelo caminho, num monólogo surdo com a sua consciência, dizia-se que há uma eternidade que não se assentava nos bancos da igreja porque estava furioso com Deus e nunca lhe havia perdoado verdadeiramente.
Entretanto, na vivenda, o amor ia guiando os pombinhos pelo firmamento da quimera, enquanto que as gaivotas, em pipilantes queixumes, repicavam sobre a janela entreaberta para deixar a maresia entrar no quarto, gritando invejosas daquele destino, como se não tivessem mais ninguém por quem chorar. Rui Patrício, incomodado por um raio de luz, foi o primeiro a acordar e a descobrir o charme impetuoso que irradiava pelo rosto sereno da sua amada. E não resistiu à tentação de a beijar na face, na testa, na boca, entre os seios e de lhe murmurar baixinho ao ouvido:
― És tão bela, meu amor!
― Hum! Uah! ― balbuciou inconscientemente, mexendo os lábios e coçando o nariz por causa das cócegas que ele lhe fazia.
― Acorda, Dina! Acorda, meu amor! ― implorou enamorado, fitando-lhe as pálpebras semicerradas que se abriam timidamente.
― Onde estou, Rui? Oh! Porque estou aqui? E se o teu padrinho...
― Tchut! Sossega, tolinha. Hum!... ― murmurou sensual, beijando-a na boca.
― Uah! Até já me esquecia que... ― bocejou radiante, agarrando-se-lhe desesperadamente ao pescoço para ter a certeza de que não estava a sonhar ou a cometer adultério.
― A madame quer que lhe traga o cafezinho à cama? ― perguntou ironicamente meigo, roçando-lhe inadvertidamente o dedo na aliança.
― Não, obrigada, mon chéri! ― respondeu sorridente, retirando de vez o anel.
E, vestindo-se à pressa, deram-se as mãos, correndo descalços para o quarto do doente. Como estivesse vazio, foram lavar-se e pentear-se, descendo em pijama para a cozinha. Lesto, o adolescente revistou as restantes peças da vivenda à procura do padrinho, mas como não o encontrasse, voltou para junto da sua vénus, ajudando-a a preparar o pequeno almoço.

Retornando muito alegre da igreja, o arquitecto foi saudá-los paternalmente ao salão, beijando-os na testa. Face a face, eles olharam-se envergonhados e, hesitando dois segundos, perguntaram em uníssono:
― O senhor...
― Eu nunca me senti tão bom como hoje! ― bradou o doente.
― O padrinho...
― Sim, levantei-me, tomei o café e fui à missa fazer as pazes com Deus, Rui!
― Mas vai tomar mais um cafezinho connosco, Félix, ah!, desculpe, senhor Dr. Félix, não vai? ― inquiriu a jornalista confusa, rectificando aquela confusa relação.
― Tomo, Dina, mas só para lhe fazer a vontade. Vá, não precisa de corar assim! Daqui a uma semana, quando o nosso divórcio estiver oficializado, verá que não se sentirá tão indecisa.
― O senhor doutor é muito bom! Por mais que viva, jamais poderei pagar-lhe tudo quanto fez por mim! Acredite, aconteça o que acontecer, eu sempre o amarei também e o Rui não terá ciúmes deste meu amor por si, Dr. Félix ― confessou-lhe ela, servindo o café.
― O padrinho bem sabe que eu estou perfeitamente de acordo com a Dina.
― Sei, filho, eu sei. Deus não vai permitir que ninguém estrague esta nossa felicidade, Rui - acrescentou o arquitecto placidamente emocionado.
― O padrinho já tomou os remédios?
― Já, Rui, fiquem tranquilos, que a minha tensão arterial está quase normal. Ah, antes que me esqueça, preparem-se que hoje vamos almoçar fora, está bem?

― Está bem! Está bem! ― repetiram eles, rindo descontraídos.
― Então, despachem-se! ― avisou o arquitecto, bebendo o derradeiro golo e retirando-se para o terraço a fumar a sua cachimbada.
Rejubilando, os pombinhos ajudaram-se mutuamente e, em menos de quinze minutos, tudo ficou arrumado, gastando depois o mesmo tempo em adornos e galanteios diante da penteadeira e a satisfazer os indomáveis caprichos.

Diante do espelho, o cavalheiro ia modelando a sua dama, opinando sobre a cor do baton e dos brincos, analisando ao pormenor o visual dela, por forma a torná-lo o mais discreto possível sem lhe retirar o brilho daqueles olhos azuis-turquesa que tanto o fascinavam. Rui Patrício queria mostrar-lhe como estava orgulhoso dela, mas sem, no turbilhão daquela confusão sentimental, ferir minimamente a susceptibilidade do padrinho que os aguardava calmamente agarrado ao volante do Mercedes.
E não ficou decepcionado. Interpretando fielmente os sentimentos e estado de espírito do magnânimo e generoso protector, eles vestiram-se simplesmente como dois jovens de vinte anos, deixando-o verdadeiramente à vontade para ser realmente o pai que ele tanto desejava.
Com aquele vestido florido, o chapeuzinho de palha e os chinelos de sisal, Dina parecia uma das inúmeras colegiais, divinamente fotografadas pelo célebre David Hamilton, enquanto que o Rui, usando aqueles jeans roçados, a t-shirt branca, com as sapatilhas Sanjo, dava um ar de James Dean, de quem pareceria realmente irmão gémeo, se não tivesse os cabelos tão encaracolados, que ele caprichava em manter para, dizia, não perder a força como o Sansão da Bíblia.
Durante a viagem até à Boca do Inferno em Cascais, assentados no banco traseiro de mãos dadas, os dois hippies observavam um sagrado silêncio, respondendo apenas quando eram solicitados.
― Quando entrarmos no restaurante, para todos os efeitos, a Dina é minha filha e você o namorado dela, está bem, Rui? ― disse o arquitecto, ao passar diante da quinta da Gandarinha, quando se preparava para estacionar.
― Sim, senhor doutor Félix ― anuiu encantado.
― Obrigada! ― acrescentou a jornalista submissa.
― Ah! Assim está bem! Vocês são formidáveis! ― bradou o arquitecto, parando no terreiro do Mar do Inferno, o último restaurante de Cascais, a quem as cabeças coroadas da Europa, ali exiladas, haviam apelidado de a riviera portuguesa. É que, mais adiante, surgia o inóspito Guincho com aquelas vagas alterosas e os ventos agrestes.
Estudado o enredo, o filme podia começar. Os actores sabiam de cor e salteado o texto; o cenário estava montado com aquários e mariscos a borbulhar, assim como os figurinos e o fundo sonoro que ecoava pela Boca do Inferno; os operários de palco também se mantinham de pé, prontos a anotar as despesas, mas o operadores de câmara esquecera-se de que o comboio só chegava até Cascais e, àquelas horas, deveria vir a pés calcantes algures pela costa a parar e limpar o suor da testa, carregado de películas virgens.

Dado o atraso, os actores almoçaram discretamente, ignorados pelos vizinhos, uma família de ingleses, que se deleitava a chupar a calda do arroz de marisco, numa algazarra que deixava espantados os poucos portugueses que ali se encontravam. E no coração daquelas futuras estrelas brilhava a mais bela das cores, uma cor que, por ser tão linda e tão rara, dificilmente aparece no arco-íris: o branco da inocência, em perfeita simbiose com o rubro apaixonado e o verde esperança que moravam nos seus olhos, abençoados pelo clemente azul celeste, ali, onde acabavam de realizar o sonho de ir mais além, mais além do mar, mais além deles próprio, quiçá mais além do Infinito.
O conto de fadas daqueles jovens órfãos, ainda no segredo dos deuses, começava a trilhar as veredas da verdade, lá no fim da Terra, perto das cavernas uivantes, sobretudo quando o oceano Atlântico amaldiçoava o seu destino, em vaivém contínuo contra elas, para que, quando os murmúrios da cobardia dessem eco deste romance, eles não se amedrontassem e se amassem com mais ardor ainda, seguindo estoicamente o caminho que eles mesmos haviam corajosamente traçado. É que, depois de escolhido, o caminho só tem que ser seguido.

Aproveitando a sesta para espraiar a felicidade nos zelados pinhais dos campos de golfe do Estoril e Alcabideche, eles foram em peregrinação a pé até ao lugar onde aquela paixão entrara em erupção pela primeira vez. Os trilhos dos pneus, tais pegadas de dinossauros, estavam lá bem vivos e orgulhosos. Deixando a viatura na berma da estrada, a uns quinhentos metros, e seguindo-os a uma respeitosa distância, o ditoso patriarca sentiu a boca da sua amada colar-se-lhe aos ouvidos, justamente quando os adolescentes, de mão dada, inspiravam o inebriante aroma do abençoado adultério e se beijavam apaixonadamente como se fosse aquela a primeira vez e o adultério nunca tivesse existido.
Assentando-se à sombra de um benigno pinheiro, donde exalava o incenso de um odor agreste, o Dr. Félix acenou-lhes, mas como eles, mutuamente subjugados, não vissem nada, desabotoou a camisa azul para refrescar o coração e, fechando os olhos, implorou ardentemente:
“ Alice, por favor, fala-me! Não vês como sofro, meu amor? ”

Sossega, Félix! Recordaste-te também do nosso primeiro beijo, não foi? Ah como foi belo o nosso primeiro beijo perto da figueira!

“ O teu vestido de popelina era tão lindo, Alice! ”

Coitada, a mãezinha erguera-se cedinho para mo lavar e engomar a tempo de o levar à missa. Parece que ainda estou a vê-la dizer-me: ― Pobres, mas limpos! Porém, escuta bem, minha filha, não é só no corpo que devemos ser limpos. Cuidado, Alice, vê lá não sujes a tua alma! ― E as tuas calças de riscado com uma dobra no fundo, ainda te lembras delas, Félix?

“ Eu recordo-me, sobretudo, meu amor, do brilho dos teus olhos! ”

Deixa lá que os teus também ardiam que chegasse! ” “ Era a febre do desejo a pensar como te arrancar aquele primeiro beijo. ”

É verdade, Félix. Parecias um menino a querer beijar a mãe, sem saber o que fazer.”

“ Quando os meus lábios tocaram o teu rosto corado, apanhei cá um choque! Nunca to disse pois não, Alice? ”

Nem precisavas de mo dizer, tolinho! Foi recíproco! ”

“ Alice! Alice!!!... Por favor, não te vás! ”

Tenho sono, meu amor, tenho sono! Ah! Não sabias que o sono também purifica a alma? ”

“ Mas... Alice! Alice!!! Eu amo-te tanto, Alice! ”

Eu também te amo muito, Félix, mas tenho que me purificar. Adeus!

“ Até logo, Alice! ”

E um leve suspiro pôs fim àquela inefável transcomunicação.
No seu rosto transfigurado, o arquitecto espelhava toda a alegria do mundo, enquanto, a uns cem metros, na penumbra de uns pinheirinhos bravos, Rui e Dina continuavam a dar-se o mais longo beijo da vida deles, transvazando-se na boca a tumescência irreverente que os acometera de repente.
― Ôh!... Rui! Dina! ― exclamou áfono, esquecendo a voz no peito.
Eles mal o ouviram, mas sentiram-lhe os ecos do pensamento e sobretudo o júbilo da nostálgica felicidade remanescente.
― Vamos para casa, padrinho?
― Vamos, filho.
― O senhor doutor sente-se bem, sente? ― perguntou a jornalista, vendo-lhe o peito desabotoado.
― Oh! Desculpe, Dina! Mas esta frescura faz tão bem ao coração ― respondeu pudibundo, abotoando a camisa à pressa para esconder os pêlos.
― Deixe, que eu lha aperto ― disse ela, sorrindo-lhe filialmente.
― Obrigado, filhinha.
E lá retornaram mudos a Santo Amaro.
Apenas entrou em casa, o arquitecto, ainda mal remetido das emoções, foi descansar, deixando-os a ler e a ouvir música deitados no sofá. Ao fim da tarde, depois de se cansarem de se enrolar, acariciar e beijar ao som daquelas melodias que tão bem embalavam os corações românticos e que eles iam trauteando como sabiam ao sabor da paixão, subiram para conhecer o porquê daquele sagrado silêncio, parando o gravador.

Agarrado ao travesseiro, tal criança inocente, porventura jovem sonhador, o venerando senhor, insuflado por uma sinfonia celestial, dormia placidamente na cama do afilhado. Eles sorriram-lhe e desceram novamente para preparar um refresco de maracujá, o fruto que mais lhes fazia recordar aquela fulminante e contagiosa paixão.
Entretanto, o pôr do sol ia caindo sobre a baía, aproximando-os da hora da velhota chegar, e um nervoso opressivo começava a apoderar-se-lhes do coração, roubando-lhes o discernimento e obrigando-os a preocuparem-se mais com a aparência que podiam transmitir aos outros do que com a própria realidade vital. E aos poucos, o amor ia sofrendo interiormente, dobrado sob o peso daquele tabu demolidor.
Corajoso, Rui Patrício subiu ao seu quarto para falar a sós com o padrinho.
― A senhora Noémia deve estar a chegar ― murmurou aflito, pousando as suas mãos nervosas nas dele.
― Eu sei. Deixa isso comigo, meu filho ― afirmou o padrinho, adivinhando-lhe o constrangimento.
― Será que ela vai compreender? E nós? Devemos esconder-nos dela ou...
― Não te aflijas, Rui! Por favor, não mudes nada, porque assim tu ajudas-me a ser feliz, meu filho. Não cometas os mesmos erros que eu cometi. Segue o teu caminho porque ninguém será feliz por ti e além do mais a tua felicidade é a chuva que rega a minha felicidade, meu filho.
― Como assim, padrinho?
― Tu és a chama viva por onde circula a minha paixão esmorecida! Tu talvez não saibas, mas foi por ti que a madrinha voltou. Ao identificar-me contigo, Rui, eu reaprendi a ser aquele jovem fogoso e ingénuo que conquistou o coração da maravilhosa Alice que eu conheci e amei loucamente, como tu agora, aos vinte anos, só que, naqueles tempos os costumes eram outros e o amor era mais platónico. Por favor, meu filho, nunca mudes nem faças nada só para ser agradável aos outros, mas sempre e só por ti, seguindo os desígnios que Deus te deu, porque tu tens um coração de ouro.
― Não é verdade, padrinho, eu sou muito egoísta ― refutou o órfão, envergonhado pelo panegírico.
― Sim, é verdade, Rui. No dia em que deixei de viver por mim, pelas minhas convicções, mas pelos outros, perdi o controlo do meu destino e, sobretudo, a voz e a referência da minha consciência. Nunca percas a tua, meu filho! ― rogou-lhe ele, deixando cair das retinas lacrimejantes as gotas da verdade, que, desde o dia anterior iluminavam novamente a sua alma apaziguada.
― Pode ficar tranquilo, padrinho, que eu não mudarei e nunca farei nada só para agradar aos outros e, muito menos, a quem não tiver nos olhos a luz da inocência que nos guia e nos faz felizes...
― Foi justamente essa tua inocência apaixonada que ressuscitou a tua madrinha, a minha querida Alice. Ai Alice, Alice!
― Pronto. Vá, venha, padrinho. Ah, só uma curiosidade... ―- bradou intrigado.
― Diz, diz, Rui.
― O senhor chegou a namorar com a minha mãe?
― Então, já que queres desfazer dúvidas, assenta-te aqui.
― Chegou, padrinho? ― insistiu o moço risonho, com aquela malícia sadia que faz abrir as trancas do coração e derruba os medos ou segredos mais recalcados.
― A Celina, a tua querida mãe, era, como sabes, minha prima e, quando éramos novos, eu com nove e ela com onze anos, muito antes de conhecer a Alice, eu gostei muito dela, como uma criança, mas ela nascera para o Artur, o teu verdadeiro pai, meu filho, assim como a Alice me estava reservada.
― Sim...
― Aliás, foi a tua mãe quem me ensinou a amar a Alice, me deu muitos conselhos e lhe falou de mim nos melhores termos.
― A minha mãe e a Mã Lixe eram muito amigas, não eram?
― Se eram! A Alice, quando tu eras bebé, beijava-te e adorava-te como se tu fosses o filho dela e eu, aos poucos, comecei a ver-te, naturalmente, como se tu fosses realmente do meu próprio sangue, mas os teus verdadeiros pais são a Celina e o Artur.
― Então isso quer dizer que o senhor estava a prever o que lhe ia acontecer.
― Bem, nunca imaginei que a tua madrinha morresse tão nova, mas tinha muito medo do parto, porque ela era muito apertada de quadris e metia-me cá uma impressão o bebé ter que sair ...
― Pronto, papá Félix ― disse aliviado, abraçando-o filialmente como ele tanto desejava.
Entretanto, vindo em pés de fada, Dina encostara-se a chorar na soleira da porta, recordando também os pais que o destino colhera na flor da idade, quando ela, botão de rosa à espera da Primavera, já começava a piscar aos rapazes e embalar as bonecas.

Naquele domingo, enquanto Rui e Dina colhiam a felicidade nos aposentos conjugais, doravante seus, na cozinha, o Félix e a Noémia recordavam com saudade aqueles inolvidáveis meses com a Alice.
E, quando adormeceu, o coração da velhota também já batia ao ritmo do amo e dos pombinhos...

continua em: Segunda, 13 de Agosto ( 28º DIA )

Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson

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