Quarta, 1 de Agosto
( 16º DIA )
De manhãzinha, antes de ir apanhar o comboio, Dina espreitou pela frincha e, vendo o sonhador totalmente descoberto, entrou no quarto. Cobrindo-o com o lençol, beijou-o no rosto e, inadvertidamente, focou a palavra morrer. Alarmada, leu a mensagem e interpretou-a como um desesperado e evidente S.O.S. Memorizando a última linha, partiu assustada de pasta debaixo do braço, largando a folha sobre a mesa-de-cabeceira e a porta escancarada.
Pelas onze horas, o trrim estridente do telefone perturbou a concentração do arquitecto e do afilhado, concentrados a trabalhar no escritório. E, como sempre, Rui mal deixou estremecer o auscultador, correndo célere.
― Alô! Sim, eu passo-lho. Padrinho, é para si ― murmurou segredeiro.
― Quem é? ― perguntou o arquitecto de compasso entre os dedos.
― A madrinha ― respondeu o afilhado, entregando-lhe o auscultador.
― Sim, Dina. Diga. Ah, bom?! Posso... A que horas? Claro. Até logo, Dina. Outro ― repetiu o enigmático Dr. Félix.
Sentindo o auscultador repousar nos ganchos, Rui Patrício indagou curioso:
― A madrinha que queria?
― Por agora continue a trabalhar e, depois do almoço, veremos, está bem?
― Está bem, padrinho ― anuiu o moço, prosseguindo a sua tarefa.
Na hora que faltava para almoçar, a curiosidade não lhe deu mais tréguas.
Distraído a formular as mais inverosímeis hipóteses, o moço nem sentiu o tempo volatilizar-se e, desconcentrado, quando a senhora Noémia os chamou para comer, ainda não havia terminado. Mirando-o de soslaio, o padrinho sorriu e, batendo-lhe no ombro, disse-lhe que largasse tudo pois estavam bastante atrasados.
À mesa, Rui tentou questioná-lo, mas, como das outras vezes, a timidez veio ao de cima e lá ficou a matutar só, pensando na Cris, na Dina e na Tânia e revivendo endofasicamente as cenas mais tórridas daquele sumptuoso Verão. E o segredo acabou somente em plena Avenida 5 de Outubro, quando a viatura se imobilizou diante da sede do Diário. Assentado no banco traseiro, ele viu o padrinho largar o motor em marcha e, depois de falar brevemente com porteiro janota, transpor os portões de vidro, desaparecendo à direita.
Pouco depois, hei-lo que surge jovial de braço dado à esposa.
― Olá, Rui! ― bradou graciosa, beijando-o no rosto.
― Olá, madrinha ― murmurou enciumado e cabisbaixo.
― Por onde andou ontem à tarde? ― indagou airosa, baixando o volume da canção.
― Fui falar com um colega a Carcavelos ― respondeu prontamente, segurando-se no banco.
― Sim, mas quando chegou podia ter avisado.
― Vocês estavam tão bem dispostos que não tive coragem de os incomodar - esclareceu o adolescente corado, recusando aquele olhar inquisidor.
― E que mal tinha, Rui?
― Nenhum, mas... ― balbuciou o adolescente chateado, baixando a cabeça.
― O Rui deve estar ansioso por saber onde vamos - perguntou o arquitecto, espiando o afilhado pelo espelho interior.
― Então você ainda não lhe disse nada, Félix?! ― perguntou alarmada.
― Não, Dina.
― Devia tê-lo avisado. O menino pode não gostar ― insinuou risonha.
― Gostar de quê, madrinha? ― perguntou curioso.
― Vamos ao cinema ― disse o arquitecto.
― Só espero que valha a pena.
― Se não gostar, paciência ― murmurou a jornalista, penteando o cabelo.
Os cartazes da fachada do Monumental arregalaram-lhes os olhos. Quantas vezes o quisera ver! Até que enfim! Aflito, subiu as escadarias e apanhou um lugar na fila. Pachorrentos, os padrinhos haviam-se atrasado. Roçando os dedos, a pedir dinheiro, fez questão de ser ele a comprar os bilhetes, livrando-os dos apertões da multidão grosseira.
Dentro do cinema, porém, assentando-se ao lado da madrinha, continuou zangado e mudo na cadeira de veludo. O ecrã gigante, a música ambiente e o charme intrigado da volúvel aceleravam-lhe novamente as pulsações. Ajeitando-se no banco, respirou fundo e lançou um olhar discreto à manhosa Dina. Mal se apagou a luz, ele viu-se tentado pelos joelhos dela, mas dominou-se, atando as mão e apoiando nelas o rosto corado para se concentrar e rejeitar as miradelas ocas. Cismático, decidiu ignorá-las, não fosse a paixão incendiar-se e traí-lo em plena projecção.
Aquelas três horas e meia de evasão foram um formigueiro convulsivo de emoções fortes que as retinas e os dentes cerrados não conseguiram domar. Impressionado pelo enredo da película, quantas vezes se viu obrigado a puxar pelo lenço e a enxugar as lágrimas. No fim, quando as luzes da ribalta se acenderam, tentou esconder os olhos vermelhos e sorrir, mas não foi capaz. Como lhe faziam falta, naquela hora, os óculos escuros! Esboçando um sorriso para agradecer ao padrinho aqueles momentos de felicidade, reparou que ele também estava comovido: realmente, o BEN HUR era indubitavelmente a obra-prima do cinema!
Durante o retorno, Rui Patrício encolheu-se no banco traseiro e, fechando os olhos, tirou um cochilo, embalado pela velocidade ondulante de curva em curva. Nos primeiros hectómetros, ainda prestara atenção aos murmúrios da madrinha, mas o sono virtual acabou mesmo por pegar nele mesmo assim, catapultando-o para o reino da quimérica inefabilidade.
A viatura parou sem, contudo, lhe quebrar o fio do sonho. Vendo-o tão empedernido, os padrinhos sorriram-lhe, largando-o inanimado no banco. Pouco depois, ele, sentindo a falta dos ronrons do motor a gasóleo, levantou-se assarapantado e foi meter a cabeça debaixo da bica do jardim.
Depois de saber pela avozinha que a Cristina não lhe ligara, Rui Patrício telefonou-lhe imediatamente, mas a criada do ilustre advogado respondeu-lhe que a menina havia saído com os pais. Frustradíssimo, assentou-se cabisbaixo no seu lugar e engoliu a refeição sem pestanejar. Uma indiferença abúlica começou por lhe drogar os olhos e, anestesiando-lhe os dentes, pô-lo a mastigar vagarosamente. Perdido nas mandíbulas da mórbida nostalgia, não conseguiu acabar o bife. E, acenando doentiamente ao padrinho, retirou-se cambaleante.
Mal entrou no quarto, pegou nas poesias, mas, desgostoso, deixou-as cair ao sobrado sem as ler; acendeu o candeeiro, mas, porque lhe afectava a íris ferida, apagou-o; pegou no pijama de popelina, mas só vestiu as calças, largando o casaco amarrotado na gaveta; puxou os lençóis para trás e, indolente, deixou-se cair na cama, adormecendo de bruços. E nem a intensa dor encefálica o impediu de voar misteriosamente pelo paradisíaco mundo da fantasia, misturando a seu bel-prazer o sonho, o desejo e a realidade, até que a fada confidente o sepultou num túmulo feérico até ao outro dia.
continua em: Quinta, 2 de Agosto ( 17º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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