Quarta, 15 de Agosto
( 30º DIA )
( 30º DIA )
Neste dia de folga, que antecedia o maior fim-de-semana do ano, para quem podia dar-se ao luxo de tê-lo ou pedi-lo, e eram poucos, os amantes nem se incomodaram com a intensa luminosidade do Sol, na janela do sótão, tão abraçados que estavam.
Às onze horas, porém, vendo-se sozinha, naquele Marão, a senhora Noémia decidiu fazer-lhes uma surpresa. Atarefada, espremeu uma caneca de laranjas, fez seis deliciosas torradinhas, com os papos secos da véspera, cortou quatro pedaços de presunto, que passou na sertã, estrelou dois ovos e, colocando tudo numa bandeja dourada, que deixara de ser usada com a morte da Sra. D. Alice, foi bater à porta dos amantes.
― Ruizinho, D. Dina, olhem o vosso pequeno almoço! ― disse rouca.
― Obrigada, senhora Noémia pode deixar, que eu vou buscar ― agradeceu a jornalista, espreguiçando-se e cobrindo os seios desnudados.
― O que é que vocês desejam para almoçar? ― perguntou a velhota, pousando cuidadosamente a bandeja no sobrado.
― O senhor doutor que escolha.
― O senhor doutor já saiu de madrugada e deixou dois bilhetes: um para vocês, mas o outro penso que é para mim. A minha senhora depois faz o favor de mo ler, porque eu só percebo as letras grandes dos nomes.
― Está bem, senhora Noémia, desça tranquila que nós não demoramos.
― O dia, hoje, está muito lindo, D. Dina.
― E o céu?
― Azulinho!
― Obrigado, senhora Noémia.
― Ora essa, sempre às ordens, minha senhora ― concluiu a velhota, orgulhosa, retirando-se a sorrir maliciosamente.
Sentindo as escadas ranger, a Afrodite sacudiu o seu cupido e, mordendo-o, amorosamente, na orelha, saltou da cama, tal Eva no Éden, e foi buscar a bandeja com o pequeno almoço. Abrindo os olhos, Rui viu-a partir, nua, de costas e, baixando a mão aos testículos, soltou um " ah! ", que a fez estremecer.
Escondendo a púbis com a bandeja, Dina empurrou a porta com um pé e, arregalando bem os olhos, derreou-se, para uma vénia, balançando os seios:
― Que mais eu posso para o meu senhor? - inquiriu, submissa, toda charme.
― Ah, não! ― bradou humorado, saltando, lesto, da cama.
― O meu senhor deseja?
― Que a minha rainha, se meta na caminha e abra a boquinha, porque, hoje, quem a serve, sou eu ― respondeu teatral o cupido, tal Adão subjugado, segurando a bandeja.
Obedecendo sem pestanejar, Dina assentou-se no leito e, de busto nu, estendeu a boca para um beijo, em equilíbrio, que quase fez entornar a bandeja. Foi então que, Rui, vendo que faltava qualquer coisa, para que o pequeno almoço fosse romântico, como ele imaginava, apanhou um calção e, vestindo-se à pressa, partiu descalço, com um sorriso nos olhos.
Intrigada, Dina aguardou e, comovida, quase chorou, quando viu uma rosa espreitar rente ao sobrado, antecedendo o cachorrinho, que segurando-a, nos dentes, lha foi oferecer, humildemente. E um delirante boca a boca, arrefecendo o pequeno almoço, abrasou-lhes as entranhas para o resto do dia.
Depois, dado o atraso, esfomeados, eles limparam, rapidamente, a bandeja e correram para debaixo do chuveiro, para um tépido concerto de carícias, que os ensaboou e lavou, mutuamente.
O pêndulo do meio-dia apanhou o Rui Patrício a ler o bilhetinho à avozinha.
" Senhora Noémia, como amanhã, faz anos que a Alice e eu nos casámos e que ela partiu, decidi ir levar-lhe um ramos de flores a Trás-os-Montes, mas não tenciono visitar mais ninguém. Senhora Noémia, a Dina e o Rui precisam de ficar sozinhos para aprenderem a viver, livremente, não é? Se eles não precisarem de si, pode ir o resto da semana para S. Domingos de Rana, se me prometer que rezará um ou dois rosários pela minha Alice. "
― Assinado Félix ― disse o moço, acabando de ler o bilhetinho.
― Ai, Ruizinho, o seu padrinho é um santo, meu filho! ― bradou a velhota, choramingando emocionada.
― Por mim, senhora Noémia, ainda pode ir apanhar o comboio da uma.
― Por mim também, senhora Noémia ― confirmou a patroa sentida, surgindo resplandecente na soleira da porta, de bandeja nas mãos.
― Então eu só lavo essa louça e vou - acrescentou a devota, enxugando-se.
E, enquanto a senhora Noémia arrumou a cozinha, Rui e Dina foram ler a carta que o padrinho lhes deixara, no terraço, aureolados e abençoados pelo esplendoroso manto de luz, com que o Sol os cobria.
Segurando a bolsa da avozinha, toda emproada e perfumada, o homenzinho fez questão de a acompanhar até à estação. Durante o trajecto, e porque ainda tinham quinze minutos, a velhota murmurou:
― O Ruizinho lembra-se do dia em que o seu padrinho e a Dina foram ao conservador do registo civil, lembra? O menino tinha treze anos...
― Perfeitamente, senhora Noémia...
― Nessa altura, quando o vi sorrir e empiscar à Dina, pensei: que pena, não terem a mesma idade e, Deus me perdoe, quase desejei o que está a acontecer, agora, porque tive muita pena da senhora D. Alice. Sabe, Ruizinho, quando se ama de verdade alguém, mesmo que a morte nos separe, não se voltar a casar...
― Se calhar, até tem razão.
― Ah, pois tenho, meu filho!
― A senhora tome cuidado, pois ainda vai ter que criar mais um netinho...
― Olhe, Ruizinho, eu há mais de quatro anos, que estou à espera dele, mas, já agora, preferia que o seu padrinho corresse o divórcio, primeiro, e depois, casados, como manda a lei da Santa Madre Igreja, sim, deviam pensar no menino, para que Deus o abençoe.
― Então, daqui a dois anos, se a senhora...
― Ah, eu sou rija como a torga! Veja lá, que eu, nesta idade, nem o médico ainda me viu o corpo!
― Ó senhora Noémia, não me diga que nunca nenhum rapaz...
― E que se atrevessem! Partia-lhes os dentes todos! Eu fui criada na lavoura e peguei muitas vezes na rabeca do arado. Você que pensa? Em nossa casa, trabalhava-se e o meu pai, que Deus tenha, nunca nos arreganhava os dentes. Ali havia muito respeitinho.
― A senhora ainda me há-de contar essas coisas todas, mas..., despache-se, que senão ainda perde o comboio - avisou ele, acelerando o passo.
A velhota despachou-se também e, segurando na bolsa, deu-lhe cinco mil réis, para o bilhete, mandando-o guardar o troco, mas ele recusou, peremptoriamente, dizendo-lhe que, graças a Deus, não precisava. E a automotora surgiu, logo depois, levando consigo a adorável avozinha.
Voando célere, Rui Patrício nem levou metade, do tempo que era preciso, para, ofegante, ir beijar e morder o pescoço da sua vénus, que, assentada, no canapé, declamava as poesias dele, embalada por uma cassete dos slows mais célebres, em versão instrumental.
― E se deixássemos isso para, no pôr do sol, todos nus...
― E parece-me que vais ter sorte, Rui ― acrescentou maliciosa.
― Isso está mesmo a acabar, Dina?! ― perguntou maravilhado, apalpando-lhe carinhosamente a zona púbica.
― Por favor, não me toques, senão...
― E, então, antecipamos o pôr do sol para a uma, para a sesta...
― Calma, meu amor, calma! ― bradou arrepiada pelas carícias atrevidas do seu homem, que, levantando-lhe o levíssimo vestido florido, lhe beijou o umbigo e lhe mordeu as calcinhas rosadas.
― Ah, só me apetecia comer-te este chocolate! ― exclamou impaciente, admirando-lhe o bronzeado.
― O teu...
― Eu sei, Dina, mas, nestes dias, vai ficar gostoso e integral como o teu.
― Não me digas que és capaz de ir praticar nudismo? ― inquiriu ciumenta.
― Mas só contigo, meu amor ― cochichou baixinho, roçando o rosto pela suave epiderme da bacia
― Ah, bom! ― suspirou amorosa, beijando-lhe os caracóis.
― Diz, Dina, queres ir à praia ou...
― E se ficássemos a fazer nudismo, ao som destes magníficos slows, a ler e a escrever, pois é, ― frisou maliciosa, torcendo o nariz, zangada ― há muito que não me fazes uma dessas poesias que de embalar o coração.
― Pronto, tranca as portas e vai ter comigo ao meu quarto. Lá bate o sol...
E não disseram mais nada, olhando-se apenas.
Enquanto Dina fechou o portão da rua, a garagem e a entrada, à chave, Rui foi ao escritório buscar folhas e uma caneta de tinta permanente, subindo sem a esperar. Pousando tudo na sua mesa-de-cabeceira, agora do padrinho, tirou um cobertor, do armário, estendeu-o no sobrado encerado e despiu-se.
Pouco depois, surgiu a Eva para se deitar ao lado do poeta Adão.
― Deixa-me ver ― murmurou curiosa, olhando os gatafunhos pretos.
― Tchut, silêncio! ― bradou meigo, admirando-lhe a nudez plácida.
― O.k, escreve, escreve, meu amor! ― cochichou baixinho, deitando-se de bruços, a ver a inspiração preencher, magicamente, a folha branca.
Ocupando todo o cabeçalho, escrito em maiúsculas, gigantes, o poema intitulava-se, QUANDO O AMOR VEM ia dizendo:
Este AMOR romântico
permanecerá eternamente em nós
se tu me compreenderes
e comigo quiseres ... VIVER
Ninguém impedirá este AMOR
enquanto entre nós houver
a mesma estrela a cintilar
e no coração germinar... ESPERANÇA
Que me interessa o murmúrio
que venha por aí apregoar
ou mesmo a calúnia escarnecer
se nos amarmos ... A VALER
Que me importa o que o mundo
trame contra mim
se a razão do nosso coração
continuar viva ... LÁ NO FUNDO
TU ÉS PARA MIM
DINA QUERIDA
O PRINCÍPIO E O FIM
DO AMOR E DA VIDA
Por isso te digo e te JURO
hoje, aqui, agora
que quando o teu AMOR VEM
nada mais em mim subsiste
nem a força que me retém
nem a outra ESPERANÇA
que ainda existe...
Pousando a caneta, o poeta entregou-lhe a folha e, mudo, deitou-se de costas, para que o Sol o queimasse e o fizesse espiar o pecado de ter iludido, manchado e abandonado, assim tão ingloriamente, a outra esperança...
Percebendo, muito bem, a mensagem dois últimos versos. Sim, a outra esperança, só podia ser a ingénua Cris, mas ela compreendia e aceitava, que não se esquece um amor facilmente. E, colocando-se na mesma posição, agarrou-lhe e apertou-lhe a mão, com todas as suas força, murmurando, comovida:
― Eu também te juro, querido Rui, que nunca amei, amo ou amarei mais ninguém e, por ti, morrerei, se preciso for, meu amor.
― Perdoa-me esta frontalidade, Dina.
― Perdoar, Rui?! A tua sinceridade é a melhor prova de amor que me poderias dar agora e só peço a Deus que continues assim pela vida fora. Perdoar? Tu, meu amor, é que me deves perdoar, por tudo o que não pude guardar só para ti. Perdoas-me?
― Mas..., há muito que Deus te perdoou, Dina! Quem sou eu para...
― Tchut! Deixa-me amar-te. Assim, isso, isso, mas que bom...
E a sinfonia do amor começou, suavemente, à flor da pele, ali, naturalmente.
A meio da sesta, extinto o fogo da paixão, desceram, para se restaurarem e, pegando num pudim, foram deleitar-se com ele, para a sala, oferecendo-o amorosamente um ao outro, adoçado de beijos. Depois, enrolando-se no coberto, que haviam trazido com eles, adormeceram, colados pela boca da vida, embalados pelos melodiosos e inebriantes slows dos Platers, dos Beatles, dos Moody Blues, dos Procol Harum, não esquecendo o Percy Sledge e a sua romantiquíssima when a man loves a woman.
Ao fim da tarde, depois de um novo duche a dois, foram comparar a nudez na penteadeira dos desleixados aposentos conjugais e, apesar da febre renascente que os atraía um para o outro, não passaram aos actos, preferindo respeitar a memória do passado e guardarem-se para o calor da noite na mansarda, quando o amor os apostrofasse.
Enquanto Dina preparou duas saladas, uma de atum e azeitonas, e outra de frutas, Rui encerrou-se no escritório e, inspirado, escreveu a poesia: SONHO VAGABUNDO
No vulcão plácido da tua tácita plumagem vaginal
soltei meu cavalo vadio em gélido e gemebundo gemido
viagem sensual de amor a arder de febre
fagulhas eróticas de um sonho sensual
em snobismo de mensagem paradoxal...
Tudo se confina à periferia dos teus seios
que nos meus dedos se tornam esteios.
Tudo vegeta pela infernal e pleonástica ninfomania
da transcendental nudez em sonoplastia...
No estigma do teu fruto em flor
afago o fogo deste frémito fervor
e em tépida nascente bebo o licor da tua libido
na esperança de saciar o meu sonho proibido...
À flor do beijo,
entre o amor e o desejo,
cresce o óvulo da nossa felicidade
em prematuro ostracismo da liberdade...
Mal a seiva poética secou na ponta da caneta, Rui pegou na folha, releu-a e, frustrado, preparava-se para a rasgar, quando a Dina, aproximando-se, em pés de fada, a salvou e a guardou no peito, dobrada, beijando-o e arrastando-o para a sala de jantar, onde, corridas as persianas e apagados os candeeiros de cristal, comeram, em apaixonado face a face.
Vegetariano, o jantar fê-los recuperar algumas das energias perdidas, com os homéricos e irracionais jogos de amor. Contudo, nem ali, a loucura os deixou em paz. Excitando-se reciprocamente com o pé, por debaixo da mesa, eles engoliram as saladas, rapidamente, sem mastigar, e, largando a louça na banca da cozinha, subiram a matar a fome à animalesca tumescência.
Depois, engastalhados e exaustos, os seus corpos aninharam-se e adormeceram tão repentinamente que a Dina, tentando acariciar e embalar o seu amorzinho romântico, nem teve tempo para ler a poesia, caindo num sono pesado, que só acabou de manhã.
continua em: Quinta, 16 de Agosto ( 31º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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