Quinta, 16 de Agosto
Acordando por volta das dez horas, Rui Patrício, vendo a Dina dormir, como uma pedra, saiu, sorrateiramente, da cama, e sem fazer barulho, desceu, para a cozinha. Vendo que faltava pão, correu à padaria, comprou também seis pastéis de natas, quatro bolas de Berlim e dois mil-folhas e, ainda um ramo de orquídeas, na florista da estação.
Depois, em casa, espremeu meia-dúzia de laranjas, fez café e, pousando tudo na sala de jantar, correu as persianas, para que a claridade do feriado entrasse. Antes de subir, escondeu o ramo, na sala da televisão, e foi acordá-la.
Pé ante pé, abeirou-se da cama e, beijando-a, começou a fazer-lhe cócegas.
― Hum! Oh, deixa-me dormir, meu amor! ― resmungou a dorminhoca.
― Não durmas tudo, meu amor! ― implorou meigo, descobrindo-a lentamente.
E correu a cortina, encandeando-a, com o brilho do Sol.
― Que horas são, querido?
― Faltam vinte para as onze, Dina.
― Credo, já tão tarde?!
― Vamos tomar o café?
― Óptima ideia, Rui! ― aplaudiu, vestindo a robe de musselina turquesa.
― Então anda.
― Ei, espera por mim!
― Não espero nada, o café pode arrufar - desculpou-se ele, adiantando-se.
Dina soltou um desabafo frustrado e, zangada, correu atrás dele.
Mal surgiu no fundo do corredor, ele trauteou a marcha nupcial tãnrarãm, naranãm..., que a fez comover-se profundamente e abraçá-lo. Pegando-a pelas nádegas, Rui Patrício mandou-a fechar os olhos e levou-a nos braços, até à sala. Surpreendida, Dina beijou-o furiosamente na boca.
― Cuidado, não me mate! Vá, faça o favor de assentar essa bunda gostosa e volte a cerrar bem essas pálpebras, menina, senão... ― ameaçou risonho.
― Está bem, sua alteza ― disse brincalhona.
― Agora, um, dois, três! ― exclamou decidido.
― Uah! Orquídeas! Como são belas, Rui! Gastaste...
― Tchut, para a mais bela de todas, nada é de mais, meu amor! ― disse galanteador, estendendo-lhe o ramo e beijando-a, na boca, com uma emocionada ternura e um olhar, cândido, perdidamente apaixonado.
Surpreendida primeiro, estupefacta depois, Dina não resistiu e chorou, de felicidade, irrigando a musselina, com as lágrimas, que lhe resvalavam, sinuosas e fluidas, pelo rosto, atónito. Mas, aos poucos, com o carinho do Rui e a doçura das natas, o seu coração recuperou o ritmo e começou a bater, as pulsações normais. E os seus olhares, fascinantes, disseram-lhes tudo, sem que, para isso, fosse necessário repetir ou traduzir o mínimo gesto. A felicidade tudo sintonizava em perfeita simbiose.
Por volta do meio-dia, depois de lavarem a louça e arrumarem o quarto, eles tomaram o comboio até ao Cais do Sodré, na Baixa Lisboeta, refazendo o trajecto, que Dina percorria, quotidianamente, para ir trabalhar. Rui, que, de mão dada, afixava, no olhar, todo o orgulho, que sentia, teve a sensação que, na automotora, as pessoas, sendo estranhas, se estimavam, admiravam e se desejavam muito mais e, inevitavelmente, mentalmente, reflectiu na cobiça que a sua amada, assim, tão sedutora, teria suscitado em milhares de passageiros e um ligeiro sentimento ciumento apareceu nas suas retinas.
Depois, pelas ruas da Baixa Pombalina, quando procuravam um restaurante, para comerem qualquer coisa, antes de irem ao cinema, apercebeu-se que, ali, a percepção era outra: as pessoas cruzavam-se, indiferentes e quase nem se olhavam, prosseguindo, cada uma, a sua vida, secretamente, escondendo as alegrias e as tristezas ou a opulência e a miséria, num vaivém infernal, como se todos tivessem pressa de viver.
Perto de Santa Apolónia, entraram num restaurante e, assentando-se numa mesa para namorados, face a face, bem lá no fundo da sala, encomendaram dois bitoques, para não perderem a primeira sessão da tarde.
Às duas horas, já estavam, confortavelmente instalados, à espera que o filme de terror começasse. Fora Rui quem o escolhera, para, melhor, poder sentir e abraçar a sua deusa, aflita e aterrorizada, na escuridão do City II, descobrindo novas afinidades com aquela que, pensava, seria a mãe dos seus filhos.
Durante o retorno, mal se falaram. Sozinhos, numa carruagem, o balanceamento aninhara-os um no outro, a tirar o cochilo da sesta.
Na vivenda, mal trancaram as portas, foram aduchar-se, para se livrarem do pó e do suor e saciarem a libido renascente, espevitados pela nudez e a água tépida, do chuveiro, que lhes caía em cima. Mais tarde, na cozinha, Dina fez uma sopa knorr, que comeram com dois moletes, depois de matada a fome, com sanduíches de queijo e presunto Rui, sentindo-a bastante cansada, mandou-a ir descansar para o canapé, enquanto preparava o café. Radiante, segurou, cuidadosamente, as taças, na bandeja, e dirigiu-se para a sala, mas, oh, coitadinha!, ela, verdadeiramente exausta, já dormia. Recuando, pé ante pé, ele trouxe tudo de volta, para a cozinha, e bebeu o seu café. Depois, lavando e secando a louça, arrumou tudo muito bem e foi balançar-se, no cadeirão de vime, no terraço, fitando o horizonte, com o seu olhar enigmático. E as horas passaram, sem que a Dina acordasse. Assentado, no sofá, diante dela, Rui ficou mais de uma hora a vê-la dormir, a mexer os lábios, a tremelicar, de vez em quando, e a respirar, descobrindo-lhe os seios ondulantes e as pálpebras negras.
Pelas onze horas, instalando-se no cadeirão do escritório, apenas com o candeeiro da escrivaninha aceso, o anjo tentou, traquinou a musa, mas ela não acedeu ao desiderato, intrínseco, do poeta, suscitando-lhe uma enorme frustração, logo sublimada pelo olhar feiticeiro da Dina que, como há um mês, lá estava a desafiar, sobretudo, os varões da vivenda.
Por volta da meia-noite, cansado de esperar, pela bela adormecida, o principezinho semeou-lhe um beijo, na testa, e, procurando uma almofada, deitou-se na carpete do sobrado, sem, contudo, conseguir dormir. Entretanto, Dina acordou e sorriu, vendo o seu guarda costa, que fingia dormir. Ajoelhando-se, então, a seu lado, ela beijou-o e gritou:
― Ai! Oh! Pregaste-me cá um susto, Rui! ― confessou aliviada, deixando-se morder e cair sobre ele, atraída pela força do abraço varonil.
― Então, querida, vamos?
― A cama é bem melhor, não é?
― Sobretudo quando eu estou por cima desses...
― Cuidado, não os apertes, que dói - disse ela, protegendo os seios.
E, erguendo-se, lá foram para a mansarda, testar e desfrutar das molas do colchão. Antes de adormecer, Rui, bocejando, ainda tentou despertar a tumescência, mas, dada a hora tardia e o cansaço, nem ele, nem Dina, chegaram a espantar o sono, acabando por adormecer com o traje que Deus lhes deu.
continua em: Sexta, 17 de Agosto ( 32º DIA )
Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996
Lud MacMartinson
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