Segunda, 23 de Julho
( 7º DIA )
No primeiro dia da semana os sonhos do órfão teimavam em eternizar-se. Embalado e fustigado pelo turbulento dilema sentimental, Rui Patrício sentia-se empedernido e impotente perante as acusações persistentes da medrosa consciência pueril. As trevas bombardearam-lhe a massa encefálica de medos que o impediam de viver a vida como sonhava. Adormecido, ele não via os raios do incandescente Vulcano baterem-lhe mansinhos nas persianas. Do outro lado, sozinha no leito conjugal, Dina aguardava ansiosamente o monólogo do nefelibata de ouvido colado no muro. O marido erguera-se cedinho, e saíra para o médico, deixando-a colada num sono profundo. Entretanto, sentindo o Sol subir no horizonte, ela correra as persianas e, expondo a plácida nudez à contemplação astral, tal Vamp do cinema, imaginava-se nos braços do cupido adormecido.
Farta de se medir e de se perguntar se corresponderia verdadeiramente ao tipo de mulher do afilhado, ela vestiu o manto de musselina rósea e foi espreitar pela porta entreaberta. Deliberadamente provocante, Dina abriu cautelosamente a porta e, tal bailarina em bicos de pés, infiltrou-se no quarto. Assediado pelo calor matinal, o Casanova amarrotara os lençóis e desnudara-se parcialmente. Desabotoado, o calção do pijama mal lhe cobria a zona púbica. Entretanto, endurecido pela tumescência matinal, o membro viril ficara incomodamente erecto. Irreverente, ela viu-o contorcer-se e, depois de o beijar furtivamente no ombro, cobriu-o com o lençol. Fugindo endemoninhada para o seu refúgio, Dina afogou a libido renascente com um duche gelado que a arrepiou todinha. E, depois de se vestir e perfumar, voltou para o acordar.
― A pé! A pé, seu dorminhoco! ― bradou jovial.
― Hum! Hum! ― bocejou o sonhador inconsciente, tapando os olhos para evitar o sol que se infiltrava pelas persianas.
― Então? Vamos, ponha-se a pé ― insistiu ela, puxando-lhe os pés frios.
― Oh, deixa-me dormir, Dina! ― implorou tonto de sono.
― Bom dia! Dormiu bem, menino?
― Bom dia, madrinha. Se dormi? Oh, estava num sonho tão bonito...
― Conte, conte ― implorou curiosa, vigiando o corredor.
E, assentando-se na cama, agarrou-lhe a mão e escutou atentamente a narração do nefelibata. O perfume asfixiante convidou-o a cheirá-la e a beijar-lhe o pescoço esbelto que o novo corte de cabelo fizera crescer. Os sequiosos lábios do adónis arrepiaram-na toda. Sentindo-se cercada pela mão atrevida, que lhe contornava os seios e pelo membro viril, que se lhe colara por trás na espinha, ela amedrontou-se e, tal presa que tenta desesperadamente livrar-se da teia da aranha, fugiu do nicho adúltero.
Depois, recompondo-se e enfiando a máscara da indiferença, ela desceu para a cozinha e tomou o pequeno almoço sozinha, esperando que o Rui descesse e lhe fizesse companhia. Porém, como ele tardasse, pediu à senhora Noémia que o fosse acordar. Ao pisar a primeira escada, a velhota foi surpreendida pelo brincalhão.
― Ai Jesus que susto, Ruizinho!
― Amedrontei-a, senhora Noémia? Oh, desculpe! ― bradou carinhoso, beijando-a no rosto macio e perfumado.
― A madrinha quer que a acompanhe ao mercado.
― E o padrinho?
― Hoje é o dia da consulta médica. O seu padrinho não anda nada bem.
― Isso é um controlo de rotina, senhora Noémia, ― afiançou o jovem.
― Oxalá que sim! Vá, venha tomar o café com umas torradinhas.
― Obrigado, dê-me apenas um sumo de laranja, se faz favor.
― Só?! Então tome-o! ― disse risonha, mostrando-lhe a jarra.
― Bom dia, madrinha! ― exclamou o moço, beijando-a no rosto.
― Bom dia, seu dorminhoco! Já viu as horas? ― retorquiu-lhe ela.
― Pronto, podemos ir ― volveu atrapalhado, engolindo o sumo de um trago.
― Senhora Noémia, por favor apronte o almoço para as treze horas.
― Vá com Deus, minha senhora, que eu cá me entendo com as panelas ― disse a velhota, acenando risonha.
E, pondo os óculos de sol, Dina partiu de bolsa na mão, confiando o cesto ao ajudante. Indiferentes às labaredas da paixão, eles dirigiram-se para o mercado pelo caminho mais curto. Rui Patrício parecia o criado de uma estrela de cinema, uma daquelas vamps caprichosas que compravam tudo o que lhes dava na gana. Penteada para trás e com a madeixa curta a realçar-lhe o pescoço, o rosto, as sobrancelhas e os lábios, Dina ficara fascinante. Na praça, passaram de tenda em tenda, escolhendo frutos e regateando preços. Pouco a pouco, os produtos da horta foram enchendo o cesto que ele, submisso menino, arvorava orgulhosamente. Calçando umas sapatilhas sanjo já roçadas, mas lavadinhas e vestindo um conjunto miura negro que lhe contrastava com os caracóis alourados, Rui não se cansava de passar a mão pelo rosto para roçar e esticar os pêlos da barba que começava a despontar. De retorno a casa, mal fecharam o portão, foram acolhidos pelo arquitecto que do seu escritório lhes espiara as últimas passadas, afinando a trompa de Eustáquio para saber por que raio eles riam tanto.
― Bom dia, Félix! ― saudou ela, oferecendo-lhe carinhosamente o rosto.
― Bom dia! ― respondeu o afilhado nervoso, sorrindo-lhe corado.
― Deixe que lhe leve o cesto, Rui Patrício.
― Por amor de Deus, padrinho! Isto não pesa nada e faz bem aos músculos!
― Mesmo?! Não abuse! ― avisou o arquitecto.
― Siga-a e conte-lhe o que se passou no médico. Olhe que a madrinha está ansiosa por conhecer os resultados ― cochichou baixinho o adolescente ao ouvido do padrinho.
Ainda arvorava o cabaz e já a velhota se abeirava risonha e lhe segredava:
― O senhor doutor Edgar vai passar aqui com a menina Cristina.
― Quando?
― Daqui a pouco, depois do almoço.
― Iaú! ― explodiu ele, delirante, pulando e gesticulando pela cozinha.
Agradecendo à mensageira, ele subiu para ver como estava. Enquanto se mirava, os padrinhos segredavam cautelosamente. Atiçado pela curiosidade, teve a impressão de ouvir uns suspiros abafados. Colou o ouvido no muro para tirar as dúvidas. O indefinido silêncio impacientou-o e obrigou-o a sair e a espreitar pela fechadura: agarrado à mulher, o arquitecto irradiava um ar mórbido que comovia até as paredes do quarto. Lacrimosa, Dina abraçava-o, amarrando-o desesperadamente contra os seios arquejantes. Entristecido, Rui Patrício retirou-se para o jardim e foi despejar impetuosamente o fluxo nervoso nas barras metálicas. A cena dos padrinhos inquietava-o terrivelmente. “ Seria assim tão grave? ” - perguntava-se comovido, olhando o céu azul.
À mesa, o casal dissimulou tão bem a tristeza que, se ele não tivesse visto claramente com os seus próprios olhos, ninguém diria que eles haviam chorado minutos antes. Esquivando-se às miradelas dos padrinhos, ele mastigava demoradamente, distraído pela imagem da Cristina a bailar no copo de água.
Depois do almoço, deixando as mulheres a arrumar a cozinha, o arquitecto saiu para o terraço e fumou normalmente a sua cachimbada. Debruçado no banzo da varanda, o adolescente perscrutava o horizonte com aquele olhar inquieto e nervoso que só os apaixonados conhecem. Obcecado pela aparição iminente da Cristina, até se esqueceu do padrinho, ignorando-o e abandonando-o à sua sorte. No olhar vítreo do Dr. Fontoura, enfumado de nicotina, pairavam as nuvens negras de uma fatalista e resignada submissão ao destino.
Ai o destino, como ele o odiava!
Finalmente, Cristina surgiu na curva do pinheiro manso. De longe, parecia que trazia o cabelo apanhado em rabo de cavalo. Como vinha graciosa! Assentada no meio do banco traseiro, ela ostentava uns lábios róseos e um sorriso encantador. Acenando-lhe lá do mirante, Rui saltou as escadas e correu a abrir o portão antes que o BMW descapotável do Dr. Edgar parasse.
― Boa tarde, senhor Doutor! ― saudou jovial.
― Boa tarde, Rui Patrício! Como está? ― perguntou o risonho advogado.
― Bem, obrigado, senhor doutor ― respondeu ele, apertando-lhe a mão e sorrindo à esposa e à filha.
― A t-shirt branca fica-te melhor que esta, Rui, ― opinou a catedrática, oferecendo-lhe o rosto maquilhado.
― E a Cristina que acha? ― questionou ele, beijando a donzela.
― O negro também não te fica mal, mas o branco combina melhor com os caracóis ― opinou a donzela, segurando a bolsa de praia.
― Tu estás magnífica! ― cochichou ele, mirando-a de alto a baixo.
― Achas?
― Com este calção, ai menina!.. ― murmurou galanteador.
― Tchut! Eles podem ouvir ― murmurou ela corada, seguindo os pais.
Assentando-se nos cadeirões de vime do terraço, os homens fumavam e conversavam sobre os seus projectos, embalados pelo barulho das ondas nas rochas, enquanto na sala de espera as senhoras programavam um fim-de-semana no Algarve, estação balnear no sul de Portugal famosa pelas suas praias de areia fina, rochas cavernosas e águas tépidas que os britânicos começavam a frequentar e a publicitar pelo mundo fora.
De mãos dadas, a D. Susana e o Dr. Edgar tomaram apenas um whisky gelado e, despedindo-se com um aceno, saíram novamente no descapotável, largando a filha com a Dina e o Rui prontinhos para sair para a praia. O arquitecto, esse, sentia-se muito cansado para os acompanhar. Com o semblante carregado, ele preferiu refugiar-se no escritório para escrever algo que há muito ansiava, mas que a azáfama da vida sempre adiara: um esboço de testamento, não fosse a morte bater-lhe à porta de surpresa. Hoje, porém, o ensejo surgia novamente e, como sentia que não tinha tempo a perder, não queria desperdiçá-lo por nada. A praia, agora mais do que nunca, era um detalhe de somenos importância. Dina aceitou conduzir os adolescentes à praia, apesar da tristeza começar a assentar arraiais no seu coração. Obedecendo ao pedido insistente do marido e à exuberante jovialidade da Cristina, tão desejosa de ir à praia com o Rui, ela encheu-se de coragem e, depois de abraçar e beijar demoradamente o marido, lá partiu inquieta.
Durante o trajecto, não ligou o rádio e mal lhes sorriu. Mirando-a pelo espelho, Rui, que se assentara no banco traseiro, viu-lhe a testa franzida e o olhar pálido e não ousou questioná-la. Como na antevéspera, o Mercedes estancou diante do vendedor de gelados da Azambujinha, em S. Pedro do Estoril que Cristina conhecia muito bem, mas raramente parava por ali. O Júlio, o mano, preferia a do Tamariz, diante do casino, onde se quedavam habitualmente as beldades nórdicas com quem ele treinava o seu inglês e o french kiss.
Às quatro horas, o areal continuava quase deserto. As tendas afixavam um vazio total: é que no Liceu Nacional de Cascais, em S. João do Estoril, mesmo ali ao lado, as provas do sétimo ano traziam a estudantada em alvoroço. Sentindo uma súbita dor de cabeça, Dina abandonou os adolescentes e, pedindo um copo de água na barraca, engoliu o comprimido que trazia na bolsa. E, acenando-lhes, partiu calçada e vestida como viera pelos rochedos cavernosos para se abrigar à sombra fresquinha dessas grutas naturais. As gaivotas, tais carpideiras em dia de finados, não paravam de a enervar com os voos picados e os gritos pipilantes. Foi no meio da clareira ebuliente que Rui e Cristina instalaram o tabuleiro do jogo passional que ali os trouxera. Estendidas as toalhas, eles assentaram-se vestidos e acenaram para os rochedos, mas a jornalista perdia-se noutras miragens. Dando-se as mãos, olharam-se em silêncio e, deitando-se de bruços, beijaram-se timidamente. Depois, despindo as suas t-shirts e os calções, passaram mutuamente o bronzeador nas costas.
A cibernética dos seus dedos conquistadores extrapolava os limites passionais inundando-lhes a alma de uma inebriante sensualidade e as suas retinas, fitando-se subjugadas, espelhavam o recíproca e inefável êxtase que lhes corria pela coluna vertebral e os mantinha em platónica adoração. Colados pelos flancos flamejantes, os seus corpos obedeciam cegamente às ordens do silêncio, escutando a mímica dos sentimentos que os lábios ressequidos faziam ecoar na epiderme arrepiada. A paixão escolhera a linguagem dos sentidos para se manifestar publicamente. Ai há quanto tempo ele sonhara aquele instante! Quantas noites de insónia perdidas a inventar o amor! Mas como era transcendental uma paixão assim! Uma hora de mística e contemplativa adulação não atraíra ninguém. A praia continuava deserta. Até a Dina, escutando a voz do coração, lhes concedera a intimidade que faz desabrochar o amor. Mais uma doce carícia, um beijo furtivo e ei-los a jogar ao gato e ao rato no meio das ondas, abraçados um ao outro. Submersos na água até ao pescoço, eles olharam-se desesperados e, apostrofando-se as cinturas pélvicas, beijaram-se. As suas línguas morderam-se e molharam-se, absorvendo a febre que o desejo tumescente fazia renascer, oh! quão tumultuosamente, nas suas entranhas delirantes. Sentindo o membro viril forçar-lhe uma passagem entre as coxas, a sibarita contraiu-se e pôs termo àquele beijo langoroso. Envergonhado e frustrado, Rui Patrício nadou até aos rochedos, seguido por Cristina que, vendo-o decepcionado e triste, lhe baixou o sutiã do biquini e lhe mostrou os seios divinos que ele tacteou e beijou fervorosamente. As ousadas carícias do seu conquistador fizeram-na corar de prazer.
Abraçados e beijando-se amiúde, eles confessaram-se comovidos:
― Se soubesses como te amo, Cristina!
― Eu também te amo muito, Rui.
― Oh, tenho-te imaginado...
― Eu também penso em ti a toda a hora. Imagino-te nos meus braços...
― Oh, tolinha, eu até beijo o travesseiro e me exibo diante do espelho...
― Realmente somos mesmos doidos de pensar nessas coisas, não somos?
― Não, Cris...
― Cris?! Ah, adorava tanto que me chamasses sempre assim! Cris! Só Cris!
― Amo-te tanto, tanto, Cris!
― Eu também te adoro-te Patri... Diz, estou a pensar...
― Diz, Cris.
― E se, a partir de agora, eu te chamasse Pat?
― É giro. Pat!... Como quiseres, Cris!
― Oh, se soubesses como gostaria de te provar quanto te amo e de fazer verdadeiramente amor contigo, mas tenho tanto medo e nem sei por onde...
― Eu também nunca fiz amor com nenhuma mulher. Podes acreditar, Cris!
― Pat, não penses que..., enfim, queria que soubesses, que nunca deixei que ninguém me beijasse assim. O amor é tão lindo!
― Como a felicidade, Cris!...
― Diz, o que se passa com a Dina?
― Não sei, mas ela deve ter algum problema.
― Será que ela nos viu, Pat?
― Penso que não, mas também pouco me importa, Cris!
― Que seja o que Deus quiser. Vamos? ― perguntou radiante, reajustando o biquini cor-de-rosa no corpo bronzeado.
― Anda ― respondeu ele orgulhoso, beijando-lhe a testa.
Mergulhando no canto dos rochedos, nadaram juntos debaixo de água até à praia. Dina que, entretanto, ficara aliviada da sua dor de cabeça, guardava-lhes os sacos.
― A madrinha não vai dar umas braçadas? ― perguntou compassivo.
― Hoje não me sinto bem, Rui ― disse a jornalista aborrecida.
― Se eu não tivesse vindo... ― concluiu a donzela, mirando-a entristecida.
― Por favor, não diga isso, Cristina! Se Deus quiser, isto não vai ser nada.
― Oxalá que sim!
― E vocês, divertiram-se muito, divertiram?
― Nadámos bastante. A Dina não viu?
― Não. Cheguei agora mesmo. Já fui e vim a pé ao Tamariz.
― Havia lá muita gente boa? ― perguntou o moço, empiscando-lhe malicioso.
― Se havia! Aqui hoje não há ninguém. Vocês alugaram a praia, foi?
― Não, a madrinha bem sabe que sem meninas, praia não é praia.
― Os padres puseram-no bem perverso!
― Ai é?! ― interferiu Cristina risonha, olhando-o envergonhada.
― Bom, meninas, se é para me darem na pinha, é melhor irmos embora.
― Ah, o menino não gosta que lhe digam as verdades, não é?!
― Damos-lhe o desconto, Cristina?
― Não se zanguem que não vale a pena! Dina, quando quiser, podemos ir.
― Se vocês já nadaram tudo...
― A madrinha foi muito gentil. Aliás, ― frisou carinhoso ― como você é maravilhosa até merece um beijinho na testa. Oh, está gelada! ― acrescentou, mimalheiro e brincalhão, fazendo do dedo um termómetro.
Charmoso, ele fê-las rir e partir felizes. Quando chegaram à vivenda, o arquitecto não resistira ao segredo tão dilacerante e confessara-se aos amigos. A esposa antecipou-se aos adolescentes e correu a beijá-lo carinhosamente, deixando escapar uma lágrima.
― Não chore, Dina. O diagnóstico que o Félix recebeu estava errado. O médico enganou-se e já telefonou a pedir desculpas.
― Tem mesmo a certeza, Edgar? Não é para me...
― É verdade, Dina ― confirmou a professora, acalmando-a.
― Uh, fiquei tão assustada! ― bradou ela, soltando um desabafo apaziguador.
Mal entrou no terraço, Cristina precipitou-se a beijar os pais e o Dr. Félix.
― Então, filha, gostou da praia?
― Foi bom, papá, só que não havia ninguém...
― E o seu cavalheiro, afogou-o? ― ironizou a mãe, procurando o moço.
― Mamã?! ― resmungou ela zangada.
― A sua mãe está a brincar, Cristina! ― acrescentou Dina, segurando a mão trémula do marido.
― O Rui foi tomar banho, Susana, - respondeu calmamente o arquitecto.
― E você, Cristina, não quer tirar o sal?
― Obrigado, D. Dina, mas eu gosto de me duchar com calma ― agradeceu a donzela, passando as mãos pelos braços para ver se tinha muito sal.
Entretanto, a senhora Noémia serviu-lhes petiscos e umas bebidas fresquinhas. De volta, o adolescente cruzou a velhota que se apressou a contar-lhe o engano do médico. E aquele sorriso angelical, que encantava o seu olhar apaixonado, irradiou e encheu de felicidade o terraço. Depois de sorrir aos amigos, ele abraçou demoradamente o doente e cochichou-lhe ao ouvido: para mim, o padrinho não morrerá jamais. Dina, que lhe decifrara a mímica labial, sorriu orgulhosa. Finalmente, apercebendo-se da importância da privacidade e do carinho na recuperação da estabilidade emocional do colega, o doutor Edgar antecipou o retorno ao solar com a filha e a esposa, deixando o colega ao cuidado da esposa e do afilhado.
Depois da partida dos amigos, o Dr. Félix pediu ao Rui que o amparasse até ao seu quarto para se repousar. Dina entrou pouco depois com um copo de água. O afilhado, que lhe segurava e acariciava as mãos convalescentes, quis levantar-se e deixá-los sós, mas logo sentiu os dedos e os olhos cansados do padrinho pressioná-lo para que ficasse.
Numa conversa a coração aberto, eles desfizeram as dúvidas e afastaram definitivamente da cabeça os fantasmas da doença incurável. E o cansaço cerebral antecipou-lhes o sono que, colhendo-os de surpresa, os obrigou a dormir ali sobre as colchas da cama, abraçados todos três. Alta madrugada, Dina acordou sobressaltada e viu que o marido os velava.
― Não dormes, querido? ― murmurou ela assustada, acariciando-lhe a mão.
― Sabes, Dina, hoje pensei que ia morrer e tive muito medo de vos perder, mas agora, que sei o quanto vós me amais, gostaria mesmo que Deus me chamasse. Eu sei que você faz muito sacrifício para me aturar. Você assim não é verdadeiramente feliz comigo, pois não Dina? ― perguntou sério, segurando-lhe as mãos nervosas e olhando-a serenamente no fundo dos olhos.
― Tchut, não digas tolices que me fazes sofrer! Que seria de nós, sem você?
― Dina, eu sei que não a posso amar totalmente e... Você merece mais que o fantasma de mim mesmo que eu sou. Eu bem gostaria, mas...
― Mas não! Vá, querido, não te preocupes comigo. Eu sou muito feliz.
― Querida Dina, eu sei que não tenho o direito de lhe continuar a mentir.
― Por favor, Félix, não penses assim porque só contigo é que encontrei a felicidade. Mais, antes de ti não conheci o amor. O resto é um pormenor sem importância. Ninguém é perfeito, pois não?
― Escuta, Dina, quero que saibas que também te respeito muito e me orgulho muito de te ter como companheira e, agora com este teu novo visual, que eu acho magnífico e sedutor, sei que tenho em casa dois diamantes, tu e ele ― disse o arquitecto, olhando o adorável afilhado. ― Este coração de oiro, sim, pode fazer-te muito feliz. Não vês como ele te olha, não? Ele ama-te de verdade, Dina!
― Félix!! ― implorou ela comovida, roçando-lhe os dedos nos lábios.
― Ah, se eu tivesse dezoito ou vinte anos como este anjo e não tivesse conhecido ninguém de tão especial como a Alice! Oh, Alice, perdoa-me, Alice! ― bradou trémulo, afagando o ombro do anjo adormecido.
― Pronto, Félix, não te aflijas mais. Por favor, dorme meu amor, dorme.
― Ele gosta muito de si, não gosta? ― volveu o marido aliviado.
― Sim, ele é realmente um menino adorável, Félix, ― disse ela confusa, evitando-lhe o olhar profundo e incómodo.
― Não sei se é pecado, mas gostaria tanto que correspondesse ao amor dele!
― E eu também o amo, Félix! ― assegurou ela, corando ligeiramente.
― Ele precisa que o ensinem a descobrir o amor, a ser homem e eu sei que tu ― ah! ele falava-lhe finalmente como ela gostava! ― saberás melhor do que ninguém encontrar os gestos, as palavras...
― Félix, não me peça coisas que..., enfim, Deus pode castigar-nos!
― Por favor, Dina, escuta a voz do teu coração e, se o amas também de verdade, não lhe mintas, não o faças sofrer que ele já sofreu demais.
― Deus há-de ajudar-nos a sermos felizes e a sermos dignos, mas sossega, meu amor, ― segredou-lhe ela distante, beijando-o no rosto.
Ele sorriu-lhe longamente e abriu a coberta para que ela se deitasse. E, abraçando-a pela cintura, adormeceu feliz.
Amarrada e perplexa, Dina pensava nas palavras corajosas que o marido lhe acabava de dizer solenemente, procurando decifrar a essência desse sentimento altruísta, mas oh quão estranho!
continua em: Terça, 24 de Julho ( 8º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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