(26º DIA )
Como ninguém descesse para o pequeno almoço, às onze horas a velhota encheu-se de coragem e foi perguntar-lhes se eles ainda demoravam. Quando espreitava para o topo das escadas recebeu o sorriso inocente do Ruizinho que, com o dedo nos lábios, lhe aconselhava silêncio. Retribuindo a gentileza, a senhora Noémia empiscou-lhe e voltou para a cozinha para lhe fazer um sumo.
― Vocês dormiram muito!
― Ontem deitámo-nos tarde e como hoje é sábado... ― desculpou-se ele, procurando no armário de vidro um copo para deitar o sumo da caneca.
― Uma coisa, Ruizinho.
― Diga, senhora Noémia.
― Você anda zangado com a menina Cristina?
― Porquê? ― perguntou indisposto.
― Sei lá! Já há uma semana que ela não lhe telefona!
― A senhora professora acha que nós ainda somos muito novos para namorarmos a sério.
― Vocessemecês não fizeram nenhuma asneira, pois não?
― Que eu saiba, não, mas porque me pergunta isso, senhora Noémia ? Por acaso ouviu algum comentário a nosso respeito?
― Não, não ouvi nada, filho! ― retorquiu atrapalhada.
― A senhora não me esconda nada - implorou o adolescente.
― Fique descansado, Ruizinho ― concluiu ela, pedindo-lhe calma.
E não disseram mais nada.
A caminho do quiosque, ele sentiu-se mal disposto. Aquecida por um inverosímil remorso e um repentino sentimento de revolta, a cabeça do moço parecia que ia explodir. Parando um pouco para respirar a maresia fresca que soprava do mar, Rui Patrício pensou na Cristina. A compaixão era o eco do seu coração magoado. Agora, que conhecera o indescritível prazer do amor, o seu egoísmo exacerbado começava a compadecer-se dela, mas logo surgiu a imagem irascível da doce Dina a gritar-lhe de raiva e a dizer-lhe que o amava. E os suspiros da véspera, entrando-lhe pelos ouvidos, foram alojar-se-lhe no coração, varrendo-lhe os compassivos sentimentos intrusos.
Pelo caminho, enquanto lia a crónica diária, tinha a impressão de que era ela quem, colando-lhe os seios endurecidos nas espáduas, lhe falava e lhe mostrava a diferença entre a magia de uma realidade palpável e a frustração de um sonho impossível. Mais adiante, rendido à evidência daquele argumento, ele desabafava irado:
“ Estou farto de sonhos, de decepções e interdições! Não, não tenho o direito de recusar o amor que vem daquele peito. Proibido? Qual proibido! Deus não tem o direito de me proibir a felicidade nesta idade, sobretudo depois de me ter roubado os pais tão cedo! Não, não venhas com reprimendas que eu não Tas aceito agora. Onde estavas, ó Deus, na Terra ou nos Céus, quando a madrinha Alice deu à luz o seu Jesus? Como foste cruel, naquele dia, ao roubar a alegria de viver do padrinho! Tiveste que lhe levar logo o filho e a mulher! Agora, não me venhas repreender pelo que está a acontecer, porque Tu, ó Deus, és o único responsável de tudo isto. Por isso, pensar nos pecados meus? Eu? Olha, arrepende-te Tu primeiro dos Teus! ” ― desabafou endofasicamente, tiranizado pela ira e pela mágoa. Entretanto, nos cadeirões de vime da vivenda, os noctívagos haviam interrompido a quimera expiatória e apanhavam o sol do meio-dia.
― Bons-dias! A quem dou o jornal? ― disse o mensageiro, saudando-os jovialmente.
― Que olhos o puseram assim bem-disposto, Rui Patrício? ― perguntou o arquitecto por entre o cachimbo e os dentes, segurando-lhe o Diário.
― Os de Deus! ― respondeu o mensageiro, beijando a madrinha no rosto.
― Mau-mau! ― exclamou surpreendida.
― O padrinho ri? Ai não acredita?! ― retorquiu sério, reprovando o riso.
― Não, não acredito, Rui Patrício.
― Eu também não ― afirmou a jornalista, apoiando o marido.
― Pois acreditem. Se é que Deus me ouviu, do raspanete que lhe passei não se deve esquecer tão cedo! ― disse enigmático.
― Com que então você fala com Deus?! ― estranhou o arquitecto.
― Falo, padrinho, e o senhor não?
― Eu..., quase nada, mas o que é que você Lhe diz?
― Olhe, por exemplo, que Ele não tem o direito de culpar e responsabilizar os homens por actos que Ele achou bem proibir, quando não tem vergonha de sacrificar inocentes, como os meus pais e a madrinha Alice, o único amor da sua vida. Ele que olhe primeiro para o mal que fez e faz, antes de nos dar lições de moral ou de nos proibir a felicidade - argumentou ele convicto.
― E que mais você Lhe diz, Rui? - perguntou a jornalista curiosa.
― Que mais, Dina? Oh! Desculpe, madrinha ― rectificou envergonhado.
― Esteja à vontade, Rui, que entre nós não há cerimónias, meu filho.
― Mas porque é que o padrinho não me trata primeiro por tu? Eu é que sou o mais novo! Não há nada que enganar ― retorquiu ele, embaraçando-o.
― Porque fui assim habituado, meu filho ― confessou o arquitecto.
― E eu? ― insistiu a jornalista, provocadora.
― Você..., com você... ― murmurou o moço, confuso.
― Diga, não tenha vergonha, Rui! - bradou-lhe o arquitecto curioso.
― Bom, consigo, as coisas são claras, fáceis e evidentes, mas com a Dina o padrinho compreenderá que é não bem assim. O senhor desculpe, mas às vezes, eu olho para ela e esqueço-me que ela é minha madrinha e vejo-a apenas como uma rapariga da minha idade, uma irmã, uma amiga, sei lá! O senhor concordará que poderá existir uma certa confusão de sentimentos entre mim e a sua esposa que, diga-se, não me é realmente nada.
― Confusão de quê, meu filho? - retorquiu o arquitecto despercebido.
― Ah, não me diga que eu sou anormal e que se o senhor estivesse no meu lugar também não teria dificuldade em tratar por senhora uma donzela quase da sua idade e por cima assim tão bela ― desabafou o moço, arreliado com o fingimento do padrinho.
― Obrigada pelo galanteio, Rui ― agradeceu a jornalista, emproando-se toda
― Escusa de corar, Dina. Verdade não merece castigo. Mais, eu só tenho que me orgulhar por, nesta idade, manter intactos os gostos dos vinte anos e lhe confessar que, como ele diz, é verdade que a Alice foi o único grande amor da minha vida. Porém há uma coisa que eu gostaria de ter como você, Rui.
― Mas o que é que eu posso ter que o padrinho não tenha ainda?
― A coragem, meu filho.
― A coragem?! A coragem de quê?
― De assumir que não estou a ser justo para com alguém que tanto me amou e eu sei que jamais lhe poderei retribuir esse amor.
― Porque Deus lha levou, não é, padrinho?
― Não, meu filho, não é à madrinha Alice que eu me estou a referir.
― É a mim, Rui ― respondeu confusa e emocionadamente a jornalista.
― Então vocês não se amam, não?
― Amamos, mas não devíamos, porque eu jurei ser eternamente fiel à sua madrinha e não fui e por isso vivo num inferno permanente que me impede de viver feliz. Não se escandalize com o que lhe estou a dizer, Rui.
― Está a ver como o padrinho mente, quando diz que não é corajoso. Eu é que não tenho essa coragem que o senhor pensa, porque se tivesse talvez não fizesse muitas coisas que fiz e ainda não assumo plenamente e, sobretudo, como o homem maduro que já tinha a obrigação de ser depois de tanto sofrer.
― Então nisso somos igualzinhos, Rui, - confessou a Dina, encarando-o.
― Talvez, quem sabe, madrinha? Porém se temos a orfandade em comum, já não se pode dizer o mesmo da felicidade. Mas mudemos de assunto que estamos a ir longe de mais com estas nossas absurdas confidências.
― Absurdas, Rui?! Nunca me senti tão bem desde que a Alice partiu, meu filho.
― A mim também me fez muitíssimo bem desabafar, Félix.
― O Rui tem o dom de fazer falar o silêncio e de apaziguar os demónios que vivem dentro de nós como ninguém, não tem, Dina? ― ironizou o arquitecto com um grão de malícia no canto dos olhos.
― Pelo menos os meus quase os exorcizou...
― Não diga tolices, madrinha, que os demónios não são fáceis de exorcizar. Cristo veio ao mundo com esse fim e, ao cabo de dois mil anos, com todo o poder que Ele tem e os anjos todos do Céu, ainda não o conseguiu.
― Direi mesmo que há cada vez mais demónios que anjos ― apoiou o arquitecto, olhando orgulhosamente o afilhado, antes de acrescentar: O Rui irá longe.
― Obrigado, padrinho, mas se conseguir o bacharelato, conseguirei um bom emprego, não conseguirei, Dina?
― Não, Rui, eu acho que é preciso que os homens inteligentes e ambiciosos, mas com um sentido de justiça social se assumam corajosamente, porque Portugal precisará de todas as suas energias para construir um futuro melhor. Por acaso, o Rui já ouviu falar do Dr. Francisco Sá Carneiro, um deputado da ala liberal, já?
― Uma vez, só uma vez. Foi aquele deputado do Porto que teve uma altercação com um certo Casal Ribeiro, foi? ― perguntou dubitativo.
― Esse mesmo! ― confirmou ela.
― E o que é que ele fez, o Sá Carneiro? ― insistiu curioso.
― Esse homem, se não morrer novo, poderá mudar Portugal, Rui, e você parece-se muito com ele. Ainda agora mostrou que coragem não lhe falta, basta ler as suas poesias para ver. Sensibilidade também não, enfim, quanto ao talento nem o quero envergonhar com os predicados, pois o seu lugar no Quadro de Honra da escola diz tudo.
― Envergonhe-o, envergonhe-o, Dina, que eu adoro vê-lo envergonhado.
― Porquê, padrinho?!
― Para ver se você também é, realmente, o mesmo envergonhado que eu era na sua idade e nunca consegui deixar de ser!
― Desculpe, mas eu não atingi ― disse o afilhado, encolhendo-se pensativo.
― Não faz mal, vamos comer ― concluiu o arquitecto, empiscando à esposa e à governanta que lhes acenava da soleira da porta do terraço.
À mesa, Rui Patrício, intrigado, quis saber tudo sobre Sá Carneiro, mas o padrinho pediu-lhes que não falassem mais de política, sugerindo à Dina que arranjasse, lá no jornal, uma biografia desse irrequieto defensor das liberdades da pessoa humana, a quem ele considerava o fundamento de toda a política.
Durante a sesta, a jornalista tentou convencer o marido a acompanhá-la até à praia, meia hora que fosse, mas ele desculpou-se, dizendo-lhe que com o Rui estaria bem protegida e, obviamente, melhor acompanhada. Chateada, ela preferiu ficar em casa a ler e a escrever. Por sua vez, sentindo-a subitamente contrariada, o adolescente partiu sozinho sem dizer nada, pensando que assim sanariam mais depressa as chagas passionais.
Deitada no sofá, Dina colocou uma cassete dos Moody Blues no gravador, pegou no livro E tudo o Vento Levou e leu-o até que, apoquentada pelo sono e o calor da sesta, se deixou adormecer ao som romântico do inebriante nights in the white satin, never reaching the end...
Estranhando o silêncio, a senhora Noémia, vendo a porta aberta e o gravador a tocar para as paredes, avisou o amo, que se levantou e correu a admirar a bela adormecida. E ali ficou mudo de pé a contemplar a graciosidade, a quem não sabia falar, cismando com o amor que ela lhe merecia, mas ele jamais lhe daria, o que o fez estremecer, sobretudo porque era pela Alice que o seu coração batia. Mas porque é que se casou assim tão depressa com a pobre rapariga que jazia ali deitada no sofá.
Apesar de todo o esforço que fazia para amar a jovem esposa, a primeira, a Alice continuava viva, infiltrada na alma, a dormir calma no seu peito e a acordar para o infernizar sempre que a feiticeira Dina lhe tocava e ele, cheio de ternura e compaixão, bem queria amá-la, mas sabia que não podia matar novamente, atraiçoando-a, aquela que morava diariamente no seu peito e o seguia fielmente, tal escrava submissa, sussurrando-lhe invariavelmente o juramento daquele ditoso dia, em que o padre os casou para a eternidade. As suas enfermidades, as úlceras e a impotência eram apenas a consequência ou o castigo, mais que merecido, da hedionda infidelidade. A Alice sempre fora demasiado altruísta e magnânima para o repreender, mas, no fundo, ele sabia muito bem que não era digno daquele acto heróico, no dia em que, para tentar salvar o filho que trazia no ventre e sabia o orgulho supremo do marido, não hesitara em aceitar uma cesariana expeditiva. Mas que fazer pela Dina, agora que se divorciara sentimentalmente para sempre? E, no desespero do mais sincero arrependimento, virando-se para o retrato da Alice, implorou contrito:
" Por favor, meu amor, perdoa-me por todas as promessas que não consegui cumprir. Por favor, perdoa, se podes, e ajuda-me, a partir de agora, a ser fiel ao juramento que te fiz."
" Félix, meu amor, - sussurrou-lhe o seu peito arquejante - não estejas triste, porque eu sei que sou a única que vive no teu coração. Eu sei, Félix querido, que sempre pensaste em mim. Tu nunca me esqueceste, pois não? Então? Vive, meu amor, vive! ”
" Alice, meu amor, por favor, agora que me dizes que sempre viveste dentro de mim, faz com que este calvário chegue mais depressa ao fim. "
" Ao fim, tu, meu amor?! Mas eu ainda não acabei de viver! É agora que eu mais preciso de ti vivo! Vivo!!! Ouviste?! ” " Como, Alice, mas tu já estás no Céu?! Bem se vê que continuas o mesmo adorável ingénuo de sempre, meu amor. Tu não vês que ainda não chegou a minha hora de partir, de te deixar? Eu vivi e viverei contigo eternamente. É contigo que eu quero entrar no Éden, mas escuta bem: se não esperares e mereceres a tua hora, tu condenar-me-ás a uma vagueação perpetua, porque o meu destino está unido ao teu. Fica a saber que para os suicidas nunca há lugar no Paraíso.”
" Estou, então, condenado a viver e a fazer sofrer, Alice?! "
" Não, meu amor, a vida é tão bela! Não me digas que eu sou um pesadelo. Só a tua vida me poderá dar o tempo necessário para que eu possa desbravar o caminho da nossa felicidade. Estás a esquecer-te desses inocentes, Félix. Não sejas egoísta, meu amor, que o egoísmo corrompe e mata aos poucos! ”
" Eles amam-se não amam, Alice? "
" Tu bem sabes que eles se amam muito, Félix! Eles estão a dizer-to e mostrar-to todos os dias. Ontem, porque fugiste? Foi para que eles se amassem, não foi? Coitados, eles terão que passar por este calvário por mais algum tempo ainda, mas tudo se arranjará e eles serão livres de serem também felizes como nós. Vá, Félix, não julgues para não seres julgado! ”
" Mas eu, Alice, eu... "
" Vá, não mintas, porque eles, apesar de tudo, têm um coração tão purificado pelo sofrimento com o teu, Félix! ”
" Que sofrimento, Alice? "
" Ela chorou tanto, tanto, quando teve que se vender! E ele? Como sofreu, coitado. Já te esqueceste do teu sofrimento, quando perdeste a tua mãezinha, já? E olha que ele perdeu logo o pai e a mãe, o pobrezinho! ”
" Foi há tanto tempo que nem me lembro, Alice! Como queres que eu me recorde desses dias horríveis que me fizeram tão mal? "
" Estás a senti-los de novo, não estás? Adeus, meu amor, adeus! Félix, não chores que eu não me vou. Eu fico aqui bem aconchegada, querido! ”
" Alice! Alice!!! Espera, Alice! " ― gritou-lhe ele, cansado de tanto transpirar e sofrer com aquela visão.
Depois de tantos anos de espera, quando menos pensava nela, o pobre Félix descobrira o remédio resposta ao seu sofrimento naquela celestial endofasia com a sua Alice. Como continuava bela, apesar de ter envelhecido como ele! Tinha a mesma alma dos vinte anos, o mesmo sorriso do dia do trespasse, a mesma seriedade do dia do casamento. Oh, Alice! Alice!!!
De pé, segurando a cabeça alagada, ele lançou um olhar imensamente grato à Dina e caiu no chão inanimado, provocando um estrondo que a fez acordar. Descobrindo-o inerte, ela entrou em pânico, assustou-se e gritou desesperada:
― Socorro! Socorro!!!
― Ó meu Deus! Senhor doutor, senhor doutor! ― bradou a governanta aflita, deitando as mãos à cabeça..
― Por favor, Félix, não morra, Félix, por favor! ― balbuciava a esposa lacrimosa, tentando reanimá-lo com palmadinhas no rosto e secando-lhe carinhosamente o suor com os dedos.
― Será melhor chamar o médico, minha senhora.
― Por favor telefone-lhe, senhora Noémia, que o senhor doutor vai morrer.
― Padrinho! Padrinho!!! ― gritou o afilhado do fundo do corredor, apenas os viu abraçados.
― Será que ele vai morrer, Rui? ― perguntou perdida.
― O meu pai não pode morrer! O meu pai não pode morrer! ― berrou tresloucado, tratando-o como o padrinho mais desejava.
E, metendo as mãos debaixo do pescoço e das pernas, levantou-o como se fosse uma criança e foi deitá-lo na cama, perante o olhar estupefacto da Dina e da senhora Noémia que, benzendo-se, dizia que o menino perdera o juízo.
No quarto, o adolescente afastou as mulheres e, passando uma toalha fresquinha nas fontes do padrinho, murmurou baixinho:
― O malandro quer pregar-nos um susto, não é, padrinho? Você pensa que me engana, pensa? Eu sei muito bem que o senhor sabe tudo. Também sabe que a Dina, a senhora Noémia e eu gostamos muito de si, não sabe? Se sabe, levante-se e diga-me o que aconteceu, ouviu? Senão eu zango-me, berro-lhe ao ouvido e estoiro-lhe com os tímpanos para que não escute mais a voz da sua Alice.
Atónitas, as mulheres não sabiam se haviam de rir, chorar ou pensar que o menino endoidecera perante tanta crueldade do destino. E, virando-se para trás, o moço prosseguiu:
― O padrinho está a ver aquelas duas carpideiras a pensar que o senhor vai morrer e eu estou maluco, não está? Vá, mostre-lhes que não é verdade.
― Rui, não atormente o seu padrinho ― implorou Dina, mais calma, tocando-lhe para que se erguesse e deixasse o moribundo em paz.
― Ruizinho! ― murmurou a senhora Noémia, comovida.
― O padrinho não tem nada, sabem? Eu sei muito bem. Vá buscar-lhe um copo de água, que ele está a dormir e vai acordar com sede - ordenou o moço, acariciando-lhe os cabelos brancos.
Obedecendo sem pestanejar a senhora Noémia correu à cozinha, nem se lembrando que ali ao lado, no quarto de banho, também podia colher água. Foi então que, curvando-se sobre eles, Dina sentiu o marido mexer os dedos e abrir timidamente os olhos.
― Félix! ― murmurou ela por detrás do afilhado.
― Onde está a tua Dina, Rui? ― perguntou o doente, num tom trémulo.
― Estou aqui, Félix! ― respondeu a esposa.
― Foi a madrinha Alice, não foi, padrinho? ― inquiriu o adolescente.
― Sim ― balbuciou a custo, estendendo-lhes as mãos geladas.
― O padrinho sabe muito bem que ela nunca saiu daqui ― disse o inocente, passando-lhe a mão pelo peito.
― Ah, tu sabes tudo, Rui! ― desabafou ele, acariciando o afilhado.
Foi então que o adolescente o ergueu cuidadosamente e esperou que a Dina o amparasse com as duas travesseiras do leito. Depois, cedendo o lugar, pegou nas mãos dos padrinhos e, entregando-lhes o copo de água que a velhota lhe estendia com alívio, deixou-os, saindo a esperar pelo médico junto do portão.
― Se fosse de morte, o doente a estas horas já teria batido a bota, doutor!
― Desculpe, mas pelo caminho tive que socorrer um jovem que acabou por morrer nas minhas mãos ― esclareceu o médico comovido.
― Venha, porque, graças a Deus, o meu padrinho não corre perigo.
― Como sabe? Você anda a estudar medicina, anda? ― troçou o médico, acelerando o passo.
― Não me pergunte porquê, doutor, mas eu sei.
― Oxalá que tenha razão! ― concluiu incrédulo.
A senhora Noémia aguardava as suas ordens no corredor, longe da intimidade dos patrões, quando o Rui e o médico surgiram no fundo das escadas.
― Então, senhor arquitecto, você quer pregar um susto à sua família? - riu o doutor, pousando a maleta na cama no lugar que a Dina lhe cedeu, antes de se ir colocar de pé ao lado do jovem, para não incomodar o médico.
― Olhe, nem sei o que me deu! Só sei que estava de pé e caí ao chão sem me poder agarrar a nada - respondeu o doente, sorrindo-lhes envergonhado.
― Vamos lá ver a tensão arterial. Diga, a sua tem tendência para subir...
― Oh, depende, às vezes desce, outras sobe! Com esta idade...
― Pois é, senhor arquitecto, mas a sua está muito baixa! Se a deste moço estivesse assim, também nem ele resistiria.
― O meu afilhado não fuma, não bebe, nem tem vícios, doutor.
― Ah, é o seu afilhado?! Aconselhe-o a estudar medicina.
― Porquê, senhor doutor? ― inquiriu o doente, desejando conhecê-lo.
― Cabral, Carlos Cabral, senhor arquitecto? - respondeu o médico, auscultando-lhe o peito e as costas.
― Félix Fontoura ― disse ele, apresentando-se também.
― Ah, o senhor é o célebre arquitecto! Então, quando pensar na minha casa...
― Está bem, quando quiser venha cá que eu ofereço-lhe os planos.
― Na entrada, o seu afilhado garantiu-me que o senhor não corria perigo e, se quer que lhe seja franco, não só o achei muito convencido, mas também, como direi, irreverente, e disse-lho, porém ele não se incomodou nada e foi-me dizendo que sabia muito bem que o senhor não corria perigo de vida, não foi?
― Exactamente, doutor Cabral - confirmou jovialmente o moço.
― O Rui, além de inteligente, é muito sensível e... enfim!, eu também sei!
― Bom! Parabéns, Rui! É Medicina que vais estudar, é? ― perguntou-lhe o médico, escrevendo a receita médica numa folha do seu bloco.
― Ainda não decidi, doutor, mas é para Direito que mais me inclino.
― Então serás um bom advogado. Quanto ao senhor arquitecto, não se aflija que o seu afilhado, com o sexto sentido assim tão apurado, velará por si ― acrescentou o substituto do doutor Campos, apertando-lhe a mão.
― Quanto é, doutor Cabral? ― perguntou o doente.
― Já que o senhor teve a gentileza de me oferecer os planos, isto é para os lápis. Ah, só mais uma coisa: o seu médico, o doutor Campos, está a assistir uma senhora que vai dar à luz! ― acrescentou simpático, acenando-lhes da soleira da porta, diante da velhota que o acompanhou até à saída.
― Félix! Padrinho! ― bradaram eles, chocando-se para o abraçar.
― Meus pombinhos! Pensaram que eu já vos ia deixar livres, hein?! - bradou ele, empiscando-lhes e beijando-os demoradamente na testa, como que para os abençoar e lhes apadrinhar aquele amor.
E durante mais de um minuto, a emoção e as lágrimas de felicidade não os deixaram falar. Embargadas, as suas gargantas preferiram acalmar-se e escutar a palpitação daquele coração cansado de se iludir.
― Venha cá, D. Noémia ― ordenou o doente, mostrando-lhe os seus filhos.
― Se o senhor visse como a senhora D. Dina e o menino choravam por si? E como o Ruizinho pegou nesse corpo de folecra e o trouxe para aqui? E eu que sempre pensei que ele era fraquinho...
― A senhora quer dar-me um beijinho, não quer? ― perguntou sereno, vendo-a assim tão sem jeito.
― Pronto, mais vale beijá-lo vivo que morto, não é senhor doutor - acrescentou ela envergonhada e embaraçada por aquele quadro patético.
― Você recorda-se muito bem da Alice, não recorda, D. Noémia?
― Então não me hei-de recordar da senhora D. Alice, senhor doutor?!
― Tchut! ― fez ele, mimando as costas dos namorados ― ela falou-me!
― Pois... ― murmurou incrédula, retirando-se estonteada sem saber muito bem o que pensar daquilo tudo.
Secando as lágrimas e parando os soluços, o adolescente beijou mais uma vez o padrinho e, tocando suavemente nas espáduas da Dina, para a reconfortar, retirou-se mostrando a receita médica ao doente para lhe dizer onde ia.
Correndo como um desalmado, foi à farmácia comprar os remédios, voltando ligeiro pelo passeio e esquecendo-se do sol, do mar, da praia, das gaivotas e das horas, como se o seu coração também já não precisasse de se preocupar com o tempo, esse meteoro, sempre efémero enquanto dura, mas eterno desde que se desce à sepultura.
De volta, leu com atenção as instruções dos medicamentos e, seguindo as ordens do doutor, fez o padrinho tomar os remédios e adormecer com um sorriso nos lábios, beijado carinhosamente na fronte pela atenciosa Dina. Depois, foram juntos ao quarto de banho lavar os olhos e o rosto, beijando-se felizes e desceram à cozinha, onde beberam um refresco e conversaram longamente com a senhora Noémia, tentando compreender o que se tinha passado e comentando a fragilidade da vida.
Rui Patrício, mais seguro, bem quis explicar-lhes os seus pressentimentos, mas elas, mal remetidas do susto, não entenderam onde ele queria chegar. Largando-as num pensativo silêncio a recuperar do susto, dirigiu-se à sala da televisão e, deitando-se na posição em que encontrara o padrinho, ergueu os olhos, deparando com o retrato da sorridente madrinha Alice.
Levantando-se a pensar nela, teve e impressão que ela o chamava, como dantes, Ruizinho! Ruizinho! e lhe afagava os caracóis e ele, vendo-a assim tão meiga, sorriu-lhe também, chamando: MãLixe! MãLixe!
Depois, pegou no romance, desligou o gravador, guardou a cassete na estante e alinhou as almofadas, onde a madrinha adormecera, voltando à cozinha feliz, seguro da justeza dos seus pressentimentos.
Antes de se erguer e acompanhar o afilhado, Dina disse à governanta que não preparasse nada para jantar e que se, quisesse, poderia ir passar o fim-de-semana com as sobrinhas a S. Domingos de Rana e só regressasse Domingo à noite, pois eles cuidariam do senhor doutor.
Comovida, a velhota obedeceu e, pegando numa cesta, onde guardou uma muda de roupa, foi apanhar o comboio a Santo Amaro.
Como o arquitecto dormisse, Rui e Dina baixaram cuidadosamente as persianas e, deixando a porta do quarto aberta, para o escutarem melhor, caso ele gemesse, assentaram-se na sala da televisão, tentando reconstituir o cenário mais plausível daquela estranha e inesperada síncope.
― Tens a certeza? - perguntou ela, estendida na posição em que se deitara.
― Como dois e dois serem quatro, Dina ― disse peremptório, acariciando-lhe as mãos trémulas e encostando-lhe o ouvido no peito para melhor escutar aquele coração aflito.
― Isso, isso, Rui. Hum, é tão bom sentir-te assim meigo, meu amor! ― desabafou ela, enfiando-lhe os dedos nervosos pelos caracóis.
― Não sei porquê, mas este vai ser o dia mais decisivo da nossa vida.
― Eu também sinto uma sensação estranha! ― confessou sorridente, encantada com aquele ingénuo, mas doce anjo protector.
― Por favor, meu amor, abre-me o teu coração para eu ter a certeza de que não vivo na ilusão e tu me amas de verdade ― implorou cândido, roçando-lhe os dedos pelos lábios ressequidos.
― Sinto que o teu padrinho se quis despedir de mim e me desejou pela última vez, como se ele me pedisse o divórcio para nos podermos amar...
― Diz, Dina, também sentiste, como eu, aquela prece nos seus olhos?
― Sim, meu amor, aquelas retinas profundas casavam-nos, aquelas mãos frias abençoavam-nos. Parecia um padre no altar a consagrar a nossa paixão.
― O meu padrinho sempre amou a minha madrinha loucamente, Dina. Eu era muito novo, quando isso aconteceu, mas algumas reminiscências e o testemunho de quem os viu viver aquela paixão tão pura, confirmam-no.
― Mas ele sempre foi tão bom para mim, Rui! Ele adora-me! É estranho, muitas vezes fiquei com a sensação de que entre mim e ele havia algo que o impedia de me acariciar e de passar aos actos. Era como se a minha presença o satisfizesse plenamente...
― Ou como se te estivesse a guardar para alguém...
― É! Quantas vezes o escutei dizer será tua, cresce, cresce, meu filho!
― Anda, meu amor, vamos assentar-nos ao lado dele ― disse o afilhado, beijando-a na testa e ajudando-a a erguer-se.
― Fecha as portas e desliga o telefone, Rui. Hoje, não estamos para mais ninguém. - disse ela, penteando o cabelo com os dedos e ajustando o vestido.
E, antecipando-se, lá foi velar pelo marido. Elevado no sono, o arquitecto não se apercebia de nada, mas o seu rosto plácido ostentava serenamente o prenúncio da felicidade que tanto procurava.
Quando acordou, o doente sorriu aos seus anjinhos e pediu água. Depois, indicando-lhes o fundo da cama, assentou-se, encostou-se às travesseiras e tranquilizou-os, contando-lhes calmamente como tudo se passara e a alegria que sentira ao ouvir a sua querida Alice, mas, sobretudo o desespero de a ver sentir calar-se novamente. E, enchendo-se de coragem, abriu-lhes o coração, justificando-lhes todas as suas atitudes bizarras dos últimos tempos.
Silencioso e impávido, Rui Patrício via confirmados todos os seus pressentimentos e ia consolando a soluçante Dina com aquele sorriso sereno do padrinho que a telepatia rendia ubíquo. Emocionado pela inocência daqueles corações puros e a sinceridade daquelas lágrimas ardentes, o arquitecto parou a sua confissão e implorou comovido:
― Por favor, meus filhos, amai-vos como eu amei a Alice, mas guardai bem este nosso segredo até que estejais seguros dos vossos sentimentos. Eu sei que vós sabereis, em todas as ocasiões, manter a dignidade e a distância que a sociedade nos impõe. Que Deus vos abençoe, meus filhos!
― Descansa, Félix, descansa! ― murmurou compassiva e carinhosa, acariciando-o e adiando um pouco ainda o divórcio.
― Não, Dina, eu não deliro! Estou a falar a sério! Só espero que me perdoe a hipocrisia destes anos todos!
― O Félix sabe que sempre o respeitei, não sabe?
― Sei, querida, sei. Eu acredito em ti. Tchut! Não digas mais nada e faz o que eu nunca me cansei de te pedir, desde que senti que o fogo sagrado da orfandade vos unia.
― Ó Dina, o padrinho sabe muito bem que a hipocrisia é inimiga da felicidade. Amarmo-nos é o desígnio que Deus nos deu, assumamo-lo ― disse o adolescente, oficializando aquela paixão proibida.
― Recordas-te do nosso desafio, Dina? ― perguntou o convalescente, acariciando-lhe paternalmente o rosto.
― Claro! Eu até desejei perder para ver se me pedia para...
― Que tolice a nossa, Dina! ― riu o arquitecto, batendo-lhe na mão.
― Que destino o nosso, padrinho! ―- adiantou o moço, esboçando um sorriso.
― Ninguém perdeu, pois não Dr. Félix? ― inquiriu feliz, beijando-o filialmente no rosto pela primeira vez.
E naquele preciso instante o arquitecto sentiu que ficara livre para amar novamente a sua Alice, perdendo definitivamente a esposa que não tivera a coragem de levar ao altar, para melhor reparar o erro e voltar atrás. Irradiantes os inocentes abraçaram-se e beijaram-se simplesmente, como um homem beija uma mulher, sob o olhar complacente de tão bondoso pai.
Depois, inclinando-se novamente, o arquitecto voltou a adormecer, para que eles pudessem prolongar aquele abençoado himeneu no chuveiro, onde se libertaram das nódoas do pecado. Quando lhe acariciava a vulva, o moço viu os dedos ensanguentados e atemorizou-se, mas ela tranquilizou-o imediatamente, sussurrando-lhe:
― É o período menstrual que está a chegar!
― Isso quer dizer que...
― Sim, que não estou grávida, tolinho!
― Uf! tive tanto medo, Dina!
― Agora, pelo menos durante cinco dias...
― Não poderás engravidar, não é?
― E não só ― acrescentou maliciosa.
― Oh, não! ― exclamou frustrado.
― Vá, o amor não é só sexo, Rui! Deixa lá, não fiques triste que nós vamos descobrir muitas coisas lindas.
― Ó Dina, Dina, eu amo-te tanto, tanto!...
― Eu também te amo muito, muito, Rui.
― Então quer dizer que esta menstruação é a penitência pelo nosso pecado e que, a partir de agora, já poderemos amar-nos sem medo de ninguém. Hum!
E as suas bocas morderam-se loucamente, sob a água tépida do chuveiro, enquanto o fantasma do adultério imundo lhes saía das entranhas e se liquefazia no sangue que lhes escorria pelas pernas e desaparecia no esgoto. Agora, que estavam absolvidos e purificados, já podiam assumir a felicidade, pelo menos enquanto a senhora Noémia não viesse. Depois, depois seria o que Deus quisesse e os seus corações aguentassem.
Naquele dia, depois de levar um chazinho com torradas ao convalescente, Rui e Dina ficaram aninhados no terraço a contar as estrelas e a dizerem-se as tolices mais belas que os seus corações libertinos lhes ditavam, recordando todos os momentos de fraqueza daquele inesquecível mês de férias com tanta emoção que nem viram o tempo passar e mudar de dia.
No fim da primeira hora de domingo, alertados pelo pêndulo do salão, subiram e foram fazer uma última ronda ao doente. Vendo-o acordado, tiveram pena dele e ficaram a conversar com ele, fazendo-lhe companhia até que ele adormeceu de tanto os acariciar.
Finalmente, às duas da manhã, exaustos e sonolentos, foram deitar-se no quarto do Rui, dormindo abraçados na cama de solteiro apenas de cueca e calcinhas, para que os seus corpos, depois de se amarem violentamente de fugida, se habituassem a excitar-se e a esmorecer na paz dos anjos.
continua em: Domingo, 12 de Agosto ( 27º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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