( 21º DIA )
Alta madrugada, farto de dormir e com a barriga a dar horas, Rui Patrício saltou da cama em bicos de pés e foi urinar, aproveitando para beber um copo de água da torneira e se deitar mais sossegado. Enquanto tentava recuperar o sono, ele recordou tudo: os beijos, os abraços, as pernas, os seios, os gemidos, a ténue frustração do coito interrupto, mas, sobretudo, aquela história intrigante dos bisavós da divina Cris, e aquela sensação estranhíssima de terem vivido, na primeira passagem pela Terra, uma dramática história de amor. E se a rencarnação fosse possível?
Como o sono não atendesse às suas súplicas, decidiu assentar-se e escrever uma poesia para a vénus do Monte Estoril. Apesar do silêncio e do desejo, durante mais de quinze minutos de gatafunhos, não conseguiu alinhar um verso que o satisfizesse. Estava mesmo para desistir e apagar o candeeiro, quando se fez luz no seu espírito taciturno e escreveu: Amor de Agosto em sigilo. É, o título parecia-lhe bonito. Sorrindo aliviado, olhou a ponta da esferográfica e, beijando-a, iniciou a redacção fluida do poema.
Pela penumbra diluída no cálido luar
de Agosto em fulgor
deslizam nostálgicas palavras de amor
gestos suaves a narcotizar graves clamores
de um erotismo plebeu
obcecado pelo hímen ferido
do ardor perdido
tentar desflorar o teu gineceu...
E, como se na penumbra o espelho lhe sorrisse pleno de gratidão, prosseguiu jovial, concluindo o poema com o romper da aurora. Por fim, orgulhoso da sua obra, resolveu antecipar o pequeno almoço e, depois de lavar os olhos e se pentear, desceu à cozinha.
Ouvindo passos, a governanta levantou-se e foi ver quem era.
― Estou com um larote, senhora Noémia! ― cochichou-lhe ele mal a viu.
― O Ruizinho andou aos gambozinos? ― inquiriu irónica.
― Os meus padrinhos chegaram tarde ou cedo? ― perguntou curioso.
― À hora da ceia, mas também não quiseram comer. Beberam, apenas, um whisky e petiscaram uns salgadinhos.
― Se calhar jantaram pelo caminho.
― Se calhar ― repetiu ela, colocando um bule com água na boca do fogão.
Enquanto a senhora aprontava café para um regimento, o adolescente mordiscou uns biscoitos muito usados na Páscoa que eles comiam amiúde. Entretanto, a jornalista, erguendo-se para ir para o trabalho, surprendeu-os a cochichar.
― É segredo? ― perguntou intrigada.
― Parece que Tróia lhe fez bem, madrinha! ― exclamou gozador, vendo-a surgir inesperadamente atrás de si.
― Porquê? O menino fale-me claro que eu ainda não dormi tudo ― ordenou jocosa, sorrindo à governanta.
― Você apareceu aí tão depressa que eu até pensei que foi por magia.
― Olhe, eu não tenho tempo a perder, sabe? ― acrescentou zangada, bebendo uma chávena de café sem açúcar.
― Uah! Beleza a quanto obrigas! ― ironizou ele, olhando-a com escárnio.
― O menino não tem mais nada que fazer, não?
― Por acaso não. A senhora tem trabalho a mais, tem? Se me pagar bem...
― Obrigada, por já me ter estragado o dia ― retorquiu trocista.
― Desculpe, madrinha, mas hoje deu-me para ser palhaço.
― Olhe, ature-o, senhora Noémia.
― O menino está a brincar, não lhe leve a mal! Você bem sabe que ele...
― É isso mesmo, dê-lhe os ámens! ― barafustou enciumada.
― A madrinha não precisa...
― Não me venha com paninhos quentes, ouviu? - avisou ela enérgica.
― Ela vai danada ― cochichou a velhota, sorrindo a medo.
― Deixe-a ir ― acrescentou o adolescente, rindo malicioso.
― Aqui entre nós, a D. Dina gosta muito de si, não gosta?
― Penso que sim, senhora Noémia. Coitada, ela também perdeu a família.
― Ah, pois é, tem razão! ― respondeu condoída, desviando os olhos, para não o fazer corar ainda mais.
E não disseram mais nada. Assustado, por pensar que a velhota desconfiasse de alguma coisa, ele saiu para a rua e, bocejando, foi ao quiosque comprar o Diário para o padrinho.
Pelo caminho, esfolhou-o e deu por acaso com os olhos na crónica da madrinha, lendo-a mais por curiosidade que por interesse. A meio do artigo, que lia aos poucos entre passos sobre o passeio, fechou o jornal, rindo para si. Depois, desatando a correr, foi acabar calmamente a leitura no escritório.
Às oito horas em ponto, o Dr. Félix, levantando-se, veio saudá-lo.
― Bom dia, padrinho! ― antecipou-se jovial.
― Bom dia, Rui Patrício! Então já está curado?
― Já estou bom para outra ― assegurou o adolescente, risonho, beijando-o.
― E o seu fim-de-semana?
― Foi óptimo, padrinho! E o vosso?
― O nosso..., bom o nosso, direi que foi bom, muito bom! ― respondeu hesitante, acariciando-lhe os cabelos.
― Tróia é assim tão bonita, é?
― Para os namorados e, sobretudo, para quem goste de sol e praia. Eu, se quer que lhe seja franco, já me estava a aborrecer de não fazer nada.
― Goze a vida, padrinho, olhe que nós só vivemos uma vez.
― Eu nasci para trabalhar, meu filho ― desabafou comovido.
Lendo-lhe na alma, Rui Patrício viu nele um mal-estar e uma frustração tão grandes que não teve coragem para dizer mais nada, preferindo mexer na papelada das gavetas da secretária e arranjar qualquer coisa em que se entreter.
Instalado no cavalete, cogitando com os cabelos esbranquiçados da sua pêra, o arquitecto traçava curvas e rectas, dando vida ao sonho de um casal da Ericeira que lhe pedira para lhe inventar o ninho da felicidade.
Como o carteiro não lhe trouxesse nenhum correio, Rui avisou o padrinho e escapuliu-se para a praia, mergulhando os pés na espuma salgada e perscrutando o areal com o seu olhar vítreo. As gaivotas pipilantes repicavam esfomeadas sobre as ondas, tentando pescar os peixinhos incautos que nadavam à tona da água.
Assentando-se pensativo, não se cansava de mirar os biquinis coloridos das raparigas, mas, postas na balança, nenhuma delas chegava aos calcanhares da filha do doutor Sampaio, que tanta falta lhe fazia naquela hora. Ah, como gostaria de ter o dom da ubiquidade para estar ao mesmo tempo em dois lugares e poder ver qual delas mais o amava.
Apesar de ter jurado fidelidade à Cristina, por vezes, quando se lembrava da Dina e recordava aquela tarde em que a amara loucamente no assento do Mercedes, o seu coração vacilava tremendamente. E quando a sua consciência o repreendia, ele argumentava que fiel fisicamente o seria certamente, porém não lhe garantiria que mentalmente o poderia ser porque jamais o espírito abdicaria da liberdade de sonhar e amar a beleza eternamente.
Como não visse nenhuma cara conhecida durante o trajecto, retornou a casa, tentando corrigir a poesia da véspera junto do auscultador, esperando que a doce Cris lhe telefonasse e lhe contasse como passara a noite ou lhe pedisse para ir ter com ela a qualquer sítio do inferno, se preciso fosse, mas em vão. O tempo moeu-lhe a paciência, roubando-lhe o sossego que a inspiração tanto precisava e acabou por o enervar antes de comer.
À mesa, nem o delicioso guisado da senhora Noémia lhe devolveu o apetite. O silêncio da donzela começava a inquietá-lo. No fundo, não queria admitir, mas tinha o pressentimento que algo se tramava sem que ele pudesse inverter a marcha do destino. Mórbido e abúlico, parecia vegetar à flor da mesa, olhando os alimentos por olhar e, atribulado, o seu espírito viajava enfunado pelos meandros da crendice de mau agoiro. E aquele estado displicente ficou-lhe enraizado no coração até ao crepúsculo, quando, farto de cismar, decidiu ligar para o solar da sua princesa. É que a leviana suposição metamorfoseara-se ao longo da tarde, em dúvida primeiro e, com a desesperada incerteza, em convicção para finalmente se lhe afigurar como inelutável presságio.
Pegando a medo no telefone, ele discou incessantemente o número da donzela, mas só o sinal de ocupado lhe ressoou estridentemente nos tímpanos. Teimoso, porém, não desistiu e insistiu furiosamente pousando e levantando o auscultador e discando sem cessar, o código do solar, até que ouviu o primeiro alô.
“ Uf! Já não era sem tempo!” ― pensou aliviado.
― Alô? A menina Cristina está? ― perguntou irado à interlocutora saloia.
― Não, a menina Cristina não está. Quem fala? Quer deixar algum recado?
― Não, obrigado. Por favor, diga-lhe que o Rui lhe telefonou ― respondeu seco, desligando o aparelho.
E foi assim com o telefone na mão que a madrinha o colheu de surpresa.
Apreensivamente aéreo, nem lhe agradeceu aquele sorriso reconciliador com que ela se veio desculpar do mau humor matinal.
― O que se passa contigo, Rui? Estás tão amarelo! ― bradou perplexa.
― Oh, deixe-me! ― resmungou zangado, repelindo a compaixão daquele beijo.
― Ai credo, nem se te pode tocar! Até parece que viste o diabo, rapaz!
― Se calhar, estou a vê-lo!
― Pronto. Já vi que se mal comecei o dia, pior o terminarei ― concluiu a jornalista desconsolada, mirando o ingrato.
E depois de uma pausa, o adolescente desabafou tristonho:
― Desculpe, madrinha, mas a Cristina ontem ficou de me telefonar e...
― E que culpa tenho eu que ela não cumpra o que te prometeu?
― Eu sei que não, mas... ― respondeu embasbacado, mirando-lhe os lábios e os seios terrivelmente provocantes.
― Vocês fizeram o que não... ― acrescentou ela, fitando-o enigmaticamente.
― Nós, Dina, nós ... ― sussurrou-lhe cauteloso, balançando o indicador entre ele e ela, acusador.
― Tu não conheces nada do amor, Rui. Por isso não...
― Do amor talvez tivesse muito a aprender consigo, madrinha, mas certamente que você deverá rever e pensar um pouquinho mais na sua conduta.
― Você é desconcertante, menino! ― cochichou pasmada com a insolência do afilhado, subitamente armado em santinho de pau carunchoso.
― Se soubesse como estou ansioso por ter uma discussão a sério consigo!
― Ah, sim? Olhe, eu também, fique a saber.
― Então marque já o dia, a hora e o local, senhora Dina Fontoura ― desafiou intempestivo, chispando fogo pelas órbitas arregaladas.
― Áh-áh-áh! ― gracejou a jornalista bem-humorada, pondo um ponto final naquela inesperada discussão.
E para lhe provar que não lhe guardava nenhum rancor, o jovem sorriu-lhe e beijou-a no rosto como se nada tivesse acontecido. No canto dos seus olhos rebeldes, porém, pairava um desafio malicioso que não passando despercebido à jornalista lhe suscitou uma indecorosa perversidade.
Mais tarde à mesa, aparentemente aliviado dos pressentimentos pueris que o haviam atormentado, o diálogo com os padrinhos girou, como era previsível, em torno da escapada amorosa a Tróia, mas a sua curiosidade não se satisfez com as respostas evasivas que eles lhes davam. A frágil conivência do casal, que só escaparia aos olhos dos pobres de espírito, exalava um perfume esquisito que lhe batia na alma como um pedido de socorro. O antagonismo afectivo era deveras evidente para, quem vivia um grande amor como ele, quiçá subjugado por um reflexo irracionalmente passional.
Antes de se deitar, Rui Patrício ainda pôde apreciar o espírito altruísta da madrinha que, apercebendo-se da sua impaciência aflitiva, ligou para o solar e o pôs em contacto com a rival para lhe descobrir o motivo de tanta inquietação e agir em consequência. O arquitecto, esse, dependente da maldita nicotina, preferia evitá-los, ignorando propositadamente aquele jogo do gato e do rato que eles iam alimentando e disfarçando às escondidas.
Apesar do cálido luar e do romântico cenário que o horizonte iluminado lhe oferecia, o adolescente preferiu trancar-se no quarto, lendo e corrigindo as poesias eróticas que tanto o excitavam. E as imagens sensuais daquele maravilhoso Verão deslizavam freneticamente à flor do desejo.
Como seria gostoso viver assim enamorado até ao fim da vida!
Se alguém lhe garantisse a perenidade dessa felicidade, estava disposto, como Fausto, a vender a alma. Estaria mesmo? E logo surgiram as inevitáveis questões morais, lançando-o numa estéril confusão que se prolongou pela noite dentro até que o sono libertador o colheu de cansaço.
continua em: Terça, 7 de Agosto (22º DIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 /Lud MacMartinson
Nenhum comentário:
Postar um comentário