Et si tu n'éxistais pas - Joe Dassin

Lover Why

domingo, 16 de março de 2008

Caprichos do Amor: Terça, 7 de Agosto ( 22º DIA )


Terça, 7 de Agosto 
( 22º DIA )



Apesar de só ter falado brevemente com a sua dulcineia pela noitinha, Rui sentia uma vontade imensa em rever-lhe as retinas esverdeadas. É que, no íntimo, uma contradição irreverente voltava a intrometer-se no seu coração imberbe e a abalar a sua promessa, contaminando-lhe a pureza e a firmeza dos sentimentos, tentados pelo charme insolente e feiticeiro da madrinha.

Às onze, encheu-se de coragem e ligou para o solar, mas ela ainda dormia. A criada prometeu dar o recado, logo que Cristina descesse para almoçar, mas, mesmo agradecendo a gentileza da sopeira, o estudante, ao desligar, teve a nítida percepção de que ela lhe mentira, cumprindo ordens. Pensativo, desligou então e, escolhendo um livro na estante da biblioteca, assentou-se no sofá a esfolhá-lo mórbida e abulicamente.

Desanimado, tentava matar o ócio e dissipar a insegurança interior de qualquer maneira, ora se levantando e espreitando pela janela, ora sentando-se cismático a reviver nostalgicamente as cenas mais tórridas daqueles dias.
O pêndulo da sala estava a repicar o meio-dia, quando o telefone tocou.
― Alô!... Ah, é você, madrinha!? ― respondeu surpreendido.
― Não era em mim que tu pensavas, seu malandro! ― exclamou ironicamente a jornalista, adivinhando-lhe a frustração.
― Por acaso não, mas como adivinhou, madame? - replicou irónico, questionando-a desdenhosamente.
― Não é preciso ser bruxa para ver que...
― Mesmo?! E à senhora quem que é que a pôs nesse estado? O trabalho ou o chefe? ― replicou grosseiro, soltando uma gargalhada trocista.
― Coitadinho do ...
― Desculpe, madrinha, foi sem querer! ― interferiu arrependido, engolindo e mastigando em seco.
― Por esta vez...
― Desculpa, Dina, mas eu... ― balbuciou confuso, corando envergonhado.
― Pronto, não te aflijas. Vá, diz à velhota que daqui a pouco estarei de volta para almoçar, está bem?
― Está bem, madrinha, nós cá esperamos por si. Não se demore! ― exclamou aliviado, sentindo um beijo furtivo ecoar pela linha telefónica.
Apesar do desejo súbito de lhe lançar também um mais estridente, o adolescente desligou e, sorrindo, apressou-se a levar a mensagem à governanta. Depois, avisando o padrinho, decidiu ir esperar a jornalista à estação.
Pensativo como ia ao longo da calçada, a infernal azáfama estival, tantas vezes fonte de inspiração, não conseguiu cativá-lo. A sua retina voraz continuava obcecada pelo inolvidável e vulcânico erotismo da primeira vez. Nos seus tímpanos ecoavam os gemidos e os gritos sussurrantes daquele coito adúltero. E, num ápice, esqueceu a promessa que na antevéspera fizera, solenemente, à ingénua Cristina.

Mal a automotora surgiu na curva da estação, o seu olhar de lince afinou-se, varrendo instintivamente as janelas vítreas, procurando descortinar o objecto do seu desejo impudico. O comboio repartiu e as pessoas dispersaram, mas da madrinha nem perfume. E, alheado do mundo circundante, retornou a casa pelo mesmo trilho.
Assentando-se no baloiço do jardim, Rui Patrício viu-se enredado por um estranho sentimento de revolta. De repente, a consciência cúmplice vinha chateá-lo com as hipócritas lições de moral, enfurecendo-o terrivelmente.
Impaciente, abeirou-se do muro e, debruçando-se desanimado, cerrou os olhos para não aumentar o desespero. E foi assim que Dina, acompanhada de uma amiga, o surpreendeu. Pobre rapaz!
― Olá, Rui Patrício! ― bradou jovial, retirando os óculos de sol.
― Olá, madrinha! ― respondeu corado, beijando-a rotineiramente ante o olhar discreto da rapariga.
― Apresento-te a Vera ― disse orgulhosa, virando-se e sorrindo à moça.
― Muito prazer em conhecê-la, menina ― acrescentou insensível, mirando a estranha.
― Igualmente, Rui Patrício ― respondeu-lhe a moça.
― Eu falei dos teus dons...
― Que dons, madrinha? ― inquiriu inocentemente.
― Que dons? Mas..., os teus dons artísticos, filosóficos, sei lá! ― balbuciou a jornalista profundamente perturbada por aquele olhar enigmático.
― A Dina nutre por si uma enorme admiração ― adiantou a rapariga.
― A Vera pode tratar-me por tu. Se soubesse como detesto os senhores!
― Mas as senhoras... ― disse, consultando a colega.
― Também, sobretudo quando se querem fazer passar pelo que não são ― arrematou decidido, baixando a cabeça para não as ver corar.
― Eu não te disse, Vera?
― Realmente é tal e qual!
― Terei, porventura, dito alguma asneira, siôras ? ― questionou irónico.
― Senhoras?! Ah! - bradaram elas em uníssono, simulando-se indignadas.
― D. Dina, o almoço está a resfriar! ― avisou a governanta amavelmente.
― Deixe que não fica sem resposta ― murmurou arreliada, fustigando o afilhado e ignorando o aviso da senhora Noémia.
― A madrinha não se zangue ― interferiu acanhado.
― Nós nunca nos zangamos, pois não, Dina?
― Nunca, Vera! ― desabafou a senhora, soltando um riso forçado para alinhar com a colega.
Deixando-as rir, o jovem correu e foi lavar rapidamente as mãos, aproveitando para se pentear e se olhar ao espelho. Enquanto se ajeitava para melhor impressionar a Vera, sentiu o bafo da Cris resvalar-lhe pelos cabelos e, fechando os olhos traidores, nem acabou de se pentear.

À mesa, porém, a natural bonomia eclipsou-se-lhe do rosto angelical. Franzindo a testa, entregou as mulheres ao arquitecto e mastigou lentamente. Vendo-o tão abúlico e adivinhando-lhe o estado de espírito melancólico, o padrinho nem lhe dirigiu a palavra, dando toda a atenção à Vera. Sentindo-se a mais naquele diálogo circunstancial, Rui Patrício simulou uma indisposição e foi ter com a governanta à cozinha. Tomando conhecimento do recado da Cris, que o mandara avisar, correu a postar-se ansioso diante do auscultador.
Ao roer as unhas, o trrim soou, mas foi logo abafado ao nascer.
― Alô! Que se passa Cris? ― indagou aflito, ouvindo soluços gemebundos.
― Pat... ― murmurou soluçante.
― Fala, fala! O que se passa, Cris? ― suplicou-lhe o impaciente.
― Só me apetece morrer! Morrer, ouviste, Pat?
― Mas porquê, Cris? Vá, diz-me o que se passa? ― insistiu nervoso.
― A minha mãe...
― E então? A tua mãe é minha amiga, não é?
― Sim, ela gosta muito de ti, mas acha que somos muito novos para...
― Novos, nós?! E isso é uma desculpa esfarrapada, Cris! Uma, uma... ― gritou furibundo, sentindo as lágrimas, embaladas por uma pulsação desesperada, inundarem-lhe as órbitas.
― Ela tem medo que os nossos estudos... ― adiantou atemorizada.
― Vejo que ela já te deu a volta, não é, Cris? - perguntou ele frustrado, sentindo-a subitamente tão resignada.
― Eu amo-te, Pat, mas ela tem razão, nós somos novos de mais!
― Adeus, Cris, adeus! ― balbuciou desgostoso, sentindo uma golfada gélida congelar-lhe o coração despedaçado.
Naquele instante, atordoado e mudo, não avaliou a gravidade da situação.
Assentando-se no sofá, ele ficou cortado do mundo sem qualquer reacção. E, inexplicavelmente, mais tarde, quando caiu em si, também ele se sentiu brutalmente paralisado, aceitando resignadamente aquela impensável ruptura.
Num ápice tenebroso, alimentou a ideia do suicídio que, felizmente, foi instantaneamente repelida pelo seu anjo da guarda. Enxugando-se, correu a trancar-se no quarto. Estatelado na cama, tentou reproduzir aquele maldito telefonema, mas escravo da sua condição humilde, não teve coragem para desafiar a autoridade da ilustre família e desistiu a meio, dizendo-se que a Cris era de outro mundo.
Pegou então numa folha e despejou-lhe em cima toda a ira da alma.
Num quarto de hora apenas, consumada a confissão daquele primeiro desgosto, ele pensava que amadurecera muito mais que em dezoito anos. De repente, sentiu-se livre dos medos e dos tabus, que tanto lhe amordaçavam a consciência, e decidiu pedir ao padrinho a sua emancipação para se libertar da cruel perseguição do destino.
Depois de mergulhar a cabeça ardente na água fria do lavabo, de se pentear e de espiar os trejeitos do padrinho e das mulheres, escondeu a carta debaixo do travesseiro e desceu aparentemente mais airoso, com outro apetite, disfarçando, o inexplicável chagrin d'amour.

No terraço, para bater o pé ao arquitecto e mostrar às senhoras que também era homem, pediu um brandy seco bem medido que bebeu de um trago, perante a atonicidade do benfeitor, o riso da madrinha e a indiferença discreta da charmosa visita. A senhora Noémia, essa, parecia adivinhar-lhe o desgosto que o amor-próprio lhe recalcara no inconsciente. Mesmo sem o ouvir, ela sabia que o Ruizinho sofria e bebia, para afogar a mágoa.
De olhar vítreo, agarrado ao copo vazio, tal náufrago em plena tempestade, abraçado à tábua de salvação, Rui Patrício, no queixume da cerebral endofasia, recebia os gritos lancinantes das gaivotas como o eco de um luto pipilante. De íris perdidas no horizonte, nublado pelas lágrimas introvertidas, ele travava com o coração insubmisso uma pelejava para esquecer a dulcineia do solar, mas, por mais que tentasse, a imagem dela, brilhando no escudo arterial, encadeando-o, fazia-o duvidar da sua coragem. Cristina, afinal, resistia sozinha.
E, num momento de hesitação, atraiçoado por um sentimento maricas, comoveu-se. Vera, que o espiava discretamente, apercebeu-se muito bem do estado de alma varonil e foi debruçar-se no banzo da varanda para lhe lançar um olhar reconfortante e lhe anestesiar a pena, se pudesse, mas o orgulhoso rapaz teve medo, recuou um passo e desviou o rosto, recusando a dócil complacência. E, para que os padrinhos não o vissem chorar de verdade, desceu para o jardim, refugiando-se à sombra. Pouco depois, a jornalista perguntou-lhe:
― Quer vir à praia connosco, Rui?
― Onde vão?
― À Azambujinha.
― Então faça o favor de me trazer o calção ― disse esmorecido.
― Com certeza ― anuiu a madrinha, empiscando à colega.
Taciturno, ele enxugou-se à pressa e aguardou-as pacientemente.
Ei-las que chegam, animadíssimas. A estranha não mudara nada, a Dina, porém, ostentava um vestido branco para melhor realçar o bronzeado de Tróia, dissimulando a malícia do seu olhar viperino por detrás de uns óculos negros. Uns chinelos de sola protegiam-lhe os pés do piso escaldante.
Obedecendo ao aceno subtil da Vera, Rui Patrício assentou-se no banco de trás do Toyota Celica. Amuado, nem reparou que o padrinho lhe piscava, nas costas das mademoiselles, encorajando-o a curtir bem a praia e a desfrutar de tão charmosa companhia.
Vendo que havia espaço entre dois carros mais pachorrentos que a precediam, Vera carregou no acelerador, arrancou a todo o gás e ultrapassou três viaturas de uma assentada, fazendo arrepiar a colega. Pensativo e desanimado, o adolescente nem se agarrou, dizendo-se que se era para continuar a sofrer assim, morrer ali na estrada do inferno seria uma dádiva de Deus. Picada subitamente pelo vírus da felicidade, Dina soltou um alarido delirante, enquanto a condutora sorria e piscava pelo retrovisor ao moribundo que, impelido pela força centrífuga, sentia o enjoo da velocidade dar-lhe volta à cabeça e ao estômago. Mais duas ou três curvas fechadas e o almoço sairia pela janela fora. A Azambujinha, porém, surgira logo ali e o ar fresco veio aliviá-lo da indisposição passageira.
― O Rui está muito amuado, Dina.
― É, também já reparei, Vera! Depois do almoço...
― Tenho a impressão que ele foi falar com alguém, mas as notícias não devem ter sido nada agradáveis porque faltou pouco para o ver chorar.
― Tchut! ― cochichou a jornalista, vendo o afilhado recuar na direcção delas, depois de se ter adiantado e passado a praia em revista.
― Dê-me o calção, madrinha ― disse mórbido e abúlico, desviando o olhar dos seios provocantes.
― O que se passa consigo, Rui?
― Oh! Nada! ― resmungou esquisito, procurando o calção no meio dos cosméticos.
― Não fiques assim, tolinho! Lembra-te que há mais marés que marinheiros ― adiantou enigmática, retendo-lhe a mão no saco para que ele a fitasse realmente.
― Não me olhe com esses óculos escuros, por favor! ― sussurrou arreliado.
― Onde vamos ficar, Dina? ― interferiu a colega, de biquini na mão e toalha ao pescoço.
― Nós costumamos alugar uma tenda. Que achas, Vera?
― Óptimo! ― exclamou a rapariga, empiscando encantada.
Pegando no calção, Rui Patrício desceu para o areal ebuliente e, para se mortificar, descalçou-se, caminhando dificilmente por entre os veraneantes em exposição. No paredão, Vera não o largou um só instante.
Amuado, ele ia chapiscando as ondas em desmaio e agitando o calção sem, contudo, encarar os montados de zonas erógenas em fermentação, hábito que tanto o excitava e inspirava. Distraído, enterrando os pés na areia e molhando a bainha das calças de ganga azul, ele atiçava inadvertidamente a curiosidade das teen-agers da praia que, seduzidas, o apupavam ruidosamente.
Finalmente, perto dos rochedos, levantou a cabeça e, olhando uma a uma as tendas, situou o refúgio da madrinha. Ao longe, Vera, de cabelo e biquini pretos, fez-lhe lembrar a Ana Zanatti, uma apresentadora da radiotelevisão portuguesa de origem italiana que tanto o excitava, sempre que aparecia no ecrã mágico. À medida que se aproximava da tenda, a curiosidade fê-lo erguer os olhos e admirar os contornos lúgubres da moça, deixando cair na areia a máscara fúnebre das últimas horas.
― Esse biquini preto fica-lhe bem ― opinou tímido, olhando-a de fugida.
― Achas? ― perguntou emproada, ajustando o slip e o sutiã pretos.
― E o meu? ― interferiu Dina sobranceira, retirando os óculos escuros.
― Olhe, madrinha, não me goze! ― implorou de costas, refugiando-se, oh quão tristonho, na tenda.
Adivinhando-lhe a indisposição, elas sorriram-se, afastaram-se para que a toalha do moço coubesse entre ambas e estenderam-se ao comprido, expondo o rosto, os seios, a barriga e as coxas ensebadas à fúria solar.

Sustendo a respiração, Vera tentava dissimular a atracção que começava a sentir pelo afilhado da colega, mas os seus olhos castanhos traíam-na. Espiando a amiga por detrás dos óculos escuros, Dina regalava-se de a ver cobiçar aquele fruto, sem contudo o poder tragar, como a raposa da fábula de La Fontaine.
Depois de mais de quinze minutos de espera, como o objecto da cobiça não ousasse sair da tenda, a jornalista desviou ligeiramente a lona da entrada e espreitou para o interior, descobrindo o afilhado aninhado num canto, de cabeça soluçante enfiada na t-shirt. O pudor fê-la recuar e deitar-se de bruços, evitando o confronto com a Vera. Como lhe metia dó o rapazinho! E começou verdadeiramente a arrepender-se de ter egoisticamente instigado tal desgosto. Oxalá ele não viesse a saber desse maquiavelismo sentimental e rejeitá-la como um trapo andrajoso!

Dominada a fraqueza momentânea, Rui Patrício saiu da tenda e, desatando a correr pelo areal, foi mergulhar estrondosamente o corpo na água, lavando assim os rastos das lágrima nas ondas da maré-cheia.
Depois, nadando até aos rochedos, onde dias antes, Cristina lhe deixara desnudar e beijar os divinos seios, tocou religiosamente nas pedras que haviam testemunhado tal cena, pedindo mentalmente a Deus que o levasse. Olhando, desvairadamente o oceano clemente, começou a viajar pelo infinito, esquecendo-se de tudo.
Absorvido em meditação, sentiu um primeiro toque na espádua, mas nem lhe prestou atenção. Foi então que um segundo, mais decidido, o fez virar-se e exclamar:
― Oh, Tânia!
― Estás tão triste, Rui! ― murmurou condoída.
― É a vida! ― desabafou cambaleante.
― Que se passa? ― perguntou-lhe a moça, oferecendo-lhe o rosto macio.
― Ainda bem que vieste, Tânia! ― disse ele, beijando-a fraternalmente.
― E tu, estás sozinho?
― Não. Hoje a minha madrinha descobriu-me mais uma das suas colegas, mas..., e tu, vieste sozinha, Tânia?
― Não, vim com uma amiga.
― Uma amiga?! Diz, quando é que me apresentas um amigo? ― inquiriu ele, rindo ingenuamente.
― Queres dizer um namorado, Rui? Oh, o meu pai matava-me! ― exclamou corada, sorrindo a medo.
― Fazes bem, Tânia. Não te iludas, porque os desgostos...
― Não me digas que tu e a Cristina...
― É, a Cristina não é do nosso mundo, Tânia!
― Pois é, nós... ― acrescentou tristonha, baixando os olhos.
― Eu ainda pensei lutar por ela, mas a família dela... Percebes, Tânia?
― Percebo. É pena! A Cristina gostava tanto de ti!
― Eu sei, Tânia. Por favor, se a vires, diz-lhe que eu também a amo, que penso nela dia e noite e esperarei por ela o tempo que for preciso. Diz-lhe que, aconteça o que acontecer, ela será sempre a minha rainha. Por favor, diz-lhe isso, Tânia.
― Queres que eu lhe telefone por ti?
― Se quero! Tens o número de telefone dela?
― Tenho. Deixa que eu vou contar-lhe tudo. Confia em mim, Rui.
― Obrigado, minha amiga, obrigado! ― bradou ele, beijando-a de fugida.
A mocinha arrepiou-se, sorriu-lhe e foi apresentá-lo à colega.
― Boa tarde, Rui! ― adiantou-se ela sorridente, estendendo-lhe a mão.
― Boa tarde! ― balbuciou pensativo.
― Apresento-te a Fátima ― acrescentou Tânia, radiante.
― Ah! É a Fátima! ― disse admirado.
― Vocês já se conhecem?
― Só de vista, não é, Fátima?
― Sim, nós viajámos juntos, mas, naquele dia o Rui ia tão distraído que...
― É, eu ando muito nas nuvens. Foi no Domingo. Vinha de casa da Cris ― confirmou-lhe ele comovido, desviando os olhos lacrimejantes.
― Quando tal, conheces todas as raparigas da Azambujinha.
― E para quê, Tânia? ― arguiu desiludido.
― Não é disso que os rapazes tanto se gabam? Eles fazem, acontecem...
― Nunca ouviste dizer que cão que ladra não morde, Tânia?
― Realmente... ― murmurou envergonhada.
― Posso assentar-me um pouco ao vosso lado, posso? Fiquem tranquilas que eu nem ladro nem mordo ― concluiu irónico, assentando-se na toalha que a Tânia lhe estendia.
E durante mais de meia hora de desabafos e de pergunta sem resposta, o Rui ficou a saber que a Tânia habitava perto do café A Faena em S. Pedro do Estoril, ali mesmo do outro lado da Marginal e que a Fátima vivia em Miraflores, perto de Linda-a-Velha.

Como o sol apertasse, elas convidaram-no a ir dar um mergulho. Aliviado e reconfortado, fez-lhes a vontade, divertindo-se, um pouco para esquecer a tristeza e cicatrizar com o sal as chagas do seu coração dilacerado. A aparição da madrinha e da Vera, que o espiavam à distância, interrompeu-lhes momentaneamente a brincadeira.
― A Dina fuja daqui, senão afoga-se - gritou ele, chapiscando-lhe o busto.
― Rui! ― bradou impetuosa, esquivando-se de respiração suspensa.
― A Vera também quer? ― inquiriu ameaçador.
― O Rui quer briga? ― replicou ela, preparando-se para ripostar.
― Cuidado, Vera, não largue muito a minha madrinha, olhe que ela não sabe nadar - ironizou ele sarcástico, esquivando-se a uma chapiscada.
― Coitadinho do menino! ― bradou desdenhosa, nadando com a colega.
E, deixando-as em paz, Rui Patrício lançou uma derradeira molhadela à Tânia e à Fátima em forma de adeus, regressando à tenda para se enxugar. As moças empiscaram-se discretamente, retribuindo-lhe o sorriso fraternal e retornaram radiantes para as suas toalhas.
Entretanto, enxugado e assentado na esteira de palha da Vera, ele aguardou que as jornalistas regressassem para fazer as pazes.
― Desculpem, mas hoje... ― implorou tímido, estendendo-lhes as toalhas.
― Obrigada, Rui! ― agradeceu a Vera, limpando o rosto e enxugando os cabelos negros, que pingavam.
― Não se importa de me enxugar as costas? ― perguntou a Dina, altiva.
― À senhora não limpo nada! ― recusou peremptório, arremedando-a.
― Muito obrigada, menino! ― ironizou ela, esticando-lhe a língua.
― A Vera quer que lhe passe o bronzeador, quer?
― Agradeço! ― bradou a moça, surpreendida, estendendo-lhe o frasco.
E um jogo de olhares provocantes veio atiçar o desdém entre a madrinha e o afilhado. Vera, deleitada com a delicadeza varonil, preferiu baixar a cabeça e fechar os olhos, ignorando os trejeitos ciumentos. Espreitando-lhe os contornos lácteos por detrás, o rapaz sentiu-se estimulado e, tentando arrastá-las para um jogo sedutor, murmurou:
― A Vera disse que queria conhecer os meus dons artísticos.
― Pois, a Dina, oh! desculpe!, a sua madrinha mostrou-me os seus poemas.
― Ah bom! E que é que a menina pensa deles?
― São giros ― balbuciou trémula, segurando a madeixa negra, para que os dedos macios do poeta lhe ensebassem melhor o pescoço e as costas.
― A madrinha anda a vender-me?! Mas..., com que procuração?
― Ando a vendê-lo, eu?! ― indagou desdenhosa.
― Claro, Dina, tu andas a vender-me a inspiração, a alma e os sentimentos - berrou ele raivoso, fustigando-a com um olhar colérico, antes de devolver carinhosamento o tubo de nívea à Vera.
― Obrigado pela gentileza, Rui ― agradeceu ela com um sorriso tímido.
― Obrigado pela sensação maravilhosa que me deu, Vera ― confessou o jovem, desviando o olhar envergonhado dos seios arquejantes da jornalista.
― Desculpe, mas eu acho que você está a ser injusto para com a Dina ― opinou a moça, defendendo corajosamente a amiga.
― Se ela me provar que eu estou a ser realmente injusto para com ela, pedir-lhe-ei sinceramente desculpas e tudo farei para que ela me perdoe, Vera ― adiantou aborrecido, vendo a madrinha empalidecer e refugiar-se na tenda.
― A Dina passou o dia a gabá-lo, a lavar-lhe os pés e sei lá que mais! Coitada, para ela, você é ...
― Por favor não minta, Vera ― rogou corado.
― É verdade, Rui! Acredite, se quiser, mas juro-lhe que é verdade ― afiançou-lhe a moça, mirando-o , obstinadamente.
― Mesmo? ― insistiu arrependido, fitando-lhe as retinas castanhas.
― Quer que lhe confesse uma coisa? ― questionou baixinho.
― Diga.
― A Dina confessou-me que você é o fantasma das noites dela.
― Eu e os outros! ― cochichou aborrecido, mexendo com a areia.
― Às vezes, quando vamos comer ao restaurante, sobretudo nos dias em que as coisas não nos correm muito bem lá na redacção do Diário, começamos a delirar e a contar-nos segredos do foro íntimo.
― Mas então vocês são umas perversas, Vera! ― exclamou maliciosamente, abafando a gargalhada irónica na palma da mão.
― Também nem tanto, Rui! ― bradou ela, corando um pouco.
― Oh, eu sou igual ou pior que vocês! ― confessou corado.
― Mesmo? ― indagou incrédula, ajustando o biquini nos quadris.
― Eu até já me confessei dessa e de outras taras publicamente, sabia?
― O quê?! Você confessou os pecados? Ah-ah! ― exclamou atónita.
― Mas, mudando de assunto, você já se conhecem há muito tempo?
― Sim e somos inseparáveis.
― Inseparáveis?! Mau-mau, Vera!
― Deixe de ser malicioso, está bem? A Dina é simplesmente sensacional!
― Eu, francamente, sei pouco dela. Tenho passado a vida no colégio, porém este ano o padrinho insistiu tanto para que eu viesse passar as férias de Verão a Santo Amaro que eu não tive coragem de lhe dizer que não.
― O senhor arquitecto quer-lhe com se fosse filho dele, Rui.
― Ele era muito amigo da minha mãe e, antes de eu nascer, ela quis que fossem ele e a Alice os meus padrinhos. Depois, quando se deu aquela tragédia, em que a madrinha e o filho dele morreram na hora do parto, agarrou-se de mais a mim. Coitado, o meu padrinho também sofreu muito, Vera!
― Pois é. Tal como a Dina, você também perdeu os seus pais muito cedo - observou ela entristecida, pousando-lhe timidamente a mão no joelho.
― Infelizmente! - repetiu emocionado, segurando-lhe os dedos.
― A Dina... ― murmurou preocupada, olhando para a lona da tenda.
― Deixe-a lá ― cochichou pensativo, estendendo-se na toalha e cerrando as pálpebras, para que a moça o olhasse e desejasse como quisesse.
Imitando-o, ela deitou-se de bruços, expondo as costas ao sol e, apoiando-se nos cotovelos, solevou o peito, para que os seios pendessem e melhor excitassem o rapaz que, fingindo dormir, a devorava com um olhar predador.
Pouco depois, Dina saiu do refúgio e assentou-se no seu lugar, pegando melancolicamente no tubo de nívea. Observando-a, o adolescente ergueu-se e, fitando-a submisso, tirou-lhe delicadamente o bronzeador das mãos, passando-lho silenciosamente do pescoço até aos rins. E, devolvendo-lhe o frasco, deitou-se de costas para que ela lhe retribuísse o gesto, mas em vão.
Estendendo-se de bruços, Dina reduziu o sutiã, para que os seios apanhassem mais sol e fechou os olhos, molhando os lábios vermelhos com a língua pontiaguda. Perspicaz, o mancebo não lhe perdeu um único suspiro lamuriante até se virem embora, renunciando mesmo ao derradeiro mergulho, para melhor a espreitar, imaginar e desejar.

Durante o retorno, apesar de mais apaziguada, a madrinha mostrou-se pouco loquaz, deixando à Vera a condução da viatura e do diálogo. Rolando à pacata velocidade do veraneante ocioso, a moça reconciliou os desavindos e incitou-os a beijarem-se, o que eles fizeram de fugida entre os assentos dianteiros.
Chegados a Santo Amaro, Rui Patrício saltou do carro, segurou a trouxa da roupa e, empiscando maliciosamente à motorista, lançou-lhe um beijo teatral, perante a indiferença da madrinha. Arrancando como um foguete pela marginal, Vera nem ouviu o conselho de prudência do galanteador.
No banzo do terraço, o arquitecto, que fumava uma filosofal cachimbada, sorria. Serena, a esposa acenou-lhe meiga e antecipou-se ao afilhado, para ir tomar o duche primeiro.
Depois de beber um copo de água na cozinha, o estudante largou a trouxa no corredor e trancou-se no quarto, estatelando-se na cama a esperar pela sua vez. No silêncio da solidão, o seu pensamento libertino emudeceu-se, mal a miragem lhe devolveu o rosto plangente da vénus do solar, a implorar a benevolência paternal.
Fitando o muro, até parecia que se estava no cinema a comover-se com um filme triste. E as lágrimas do pesadelo cruel, abeirando-se-lhe da retina, salgaram-lhe a alma, petrificando-lhe, na íris, a imagem do suicídio. Embalado por um punhado de mórbidos silogismos, o seu coração inconstante batia por bater, como se o fim, tão vivo no córtex cerebral, estivesse iminente.
Lá no mais recôndito cicio passional, que a esperança alimentava estoicamente, mas que o desânimo aceitava fatalmente, jazia incólume o gérmen encantado do amor eterno que, sonhava, haveria de florir magicamente numa noite de Inverno, quando a morte viesse para o levar para o inferno. Então, como nos contos de fadas, surgiria a sua amada, tal princesa condenada a viver eternamente, para lhe insuflar no coração moribundo o sopro da vida perene.
E aquela quimérica e mórbida visão fê-lo perder a noção do tempo.

A madrinha tomara banho, ressuscitara os demónios do adultério, masturbando-se a pensar nele, e, suscitando violentamente às histéricas entranhas sucessivas convulsões orgásmicas, secara-se, vestira-se, penteara-se e perfumara-se, sem que o escravo dos seus desejos se impacientasse e viesse, num ápice que fosse, ter com ela e pedir perdão àquele corpo sofredor.

Entretanto, fazendo-se tarde para comer, o arquitecto veio colhê-la a cortar os cílios da pestana esquerda, assentada em pose voluptuosa na penteadeira.
― Hum, que gostosa! ― bradou o marido extasiado, beijando-a no pescoço.
― Cuidado com o tabaco, Félix ― murmurou arrepiada, cheirando-lhe a nicotina das barbas e dos cabelos.
― Eu sei, Dina, eu sei, mas... ― balbuciou trémulo.
― Tens que escolher, Félix: ou o cigarro ou a vida! Não vês que...
― Por favor, Dina, não me...
― O.k. não está cá quem falou ― disse ela, cortando a discórdia pela raiz.
― Viste o Rui Patrício?
― Mas..., ele não ficou a falar contigo no terraço?! ― indagou atónita.
― Não. Eu pensava que...
― Félix! ― bradou irada, corando nervosamente.
― Desculpa, Dina, mas longe de mim tais pensamentos ― escusou-se prontamente, assustado com a enérgica reacção da esposa.
E um silêncio absurdo invadiu os seus corações feridos. Foi então que, espreitando pela fechadura, viu o afilhado adormecido e trancado. Arrependido de ter sugerido, mais uma vez, à mulher os fantasmas adulterinos, o Dr. Félix aproveitou para se desfazer da nicotina, metendo-se debaixo de um chuveiro ebuliente.

O jantar, que tomaram em silencioso face a face, não conseguiu reconciliá-los. Adivinhando-lhes a zanga, a governanta, perspicaz, serviu-os discretamente, ignorando propositadamente o afilhado, que ela julgava responsável da desavença conjugal. Mais tarde, servida a sobremesa aos patrões, a velhota foi acordar o menino, batendo-lhe à porta.
― Ruizinho! Ruizinho! ― chamaram a medo.
O rapaz espreguiçou-se lentamente e, soltando um bocejo, perguntou:
― A madrinha já tomou o banho?
― Sou eu, Ruizinho! ― exclamou a velhota.
― O que se passa, senhora Noémia? ― indagou aflito, saltando lesto da cama para destrancar a porta.
― O menino não vem jantar? Os seus padrinhos estão zangados.
― Comigo? Porquê? ― perguntou inocentemente, esquecendo a insónia.
― Não se demore, que a comida arrefece.
― Vá descansada, senhora Noémia, que eu só vou tirar as remelas ― acrescentou ele, correndo aflito para o quarto de banho.
Depois de lavado e penteado, surgiu na sala de jantar e, olhando obstinadamente os mudos penteados e perfumados, perguntou inquieto:
― Não me digam que eles já lhes chatearam o juízo?!
― Eles quem? ― indagou o arquitecto, pousando o guardanapo.
― Não me diga que ainda não sabe de nada? ― arguiu tristonho.
― Não sei de quê, Rui Patrício? ― retorquiu perplexo.
― Os seus excelentíssimos amigos acham-me indigno da princesinha, sabe? Mas não faz mal, padrinho. Só espero que o senhor não mude os seus hábitos e as suas amizades por causa de mim. Se calhar a D. Susana tem razão quando diz que somos novos demais, para nos deixarmos enredar nas teias da paixão ― disse resignado, controlando a bílis colérica.
― Desculpe, mas eu continuo a não perceber nada - disse o arquitecto estupefacto, mirando a esposa cabisbaixa.
― A madrinha que lhe explique. Ela deve saber tudo, não? ― retorquiu zangado, apostrofando a cúmplice.
― Você pode explicar-me esta absurdidade, Dina? ― insistiu o arquitecto.
― Bem, no fim-de-semana em Tróia, a Susana, que por sinal gosta muito do Rui, falou-me da filha, da sua idade, dos perigos que esta atracção mútua lhes pode trazer para o futuro, enfim, você compreenderá que eles estão numa idade muito crítica, Félix.
― Só isso? A Susana não lhe disse mais nada, não se justificou...
― Não, não se explicou, mas presumo que ela deve ter sentido a paixão...
― Muito bem, deixe isso comigo ― concluiu ele magoado, olhando para o afilhado com uma insondável ternura paternal.
― O padrinho faça de conta que não sabe de nada. As contas do meu rosário serei eu fazê-las, percebe? ― disse o afilhado, fitando-o de homem para homem.
― Se é esse o seu desejo, meu filho.
― Sim, padrinho, é este o meu desejo ― afirmou corajosamente, rejeitando a intromissão do arquitecto no conflito sentimental.
Auscultando-lhe o coração, o Dr. Félix Fontoura apercebeu-se, porém, da imensa tristeza que o adolescente trazia na alma e, para evitar tal confronto aflitivo, decidiu ir ver televisão, deixando-o entregue ao carinho da esposa.

Um silêncio sufocante invadiu a sala. Cabisbaixo, Rui fingia-se duro e insensível à compaixão da madrinha, aceitando resignadamente aquele primeiro grande desgosto do seu coração como mais um capricho do destino.
Depois de enganar o estômago à pressa, ele retirou-se para o terraço e assentou-se no cadeirão de vime, envolto na escuridão da noite, nos sussurros do mar e nos gemidos pipilantes das gaivotas. Longe do compassivo olhar alheio, apeteceu-lhe chorar e gritar, mas a raiva não o deixou explodir em alta voz e obrigou-o a confinar a revolta no peito, porque um homem não chora.
De olhos cerrados ainda tentou domar a fúria cerebral, mas em vão.

Carregando a solidão e o desespero como um adulto, ele deu as boas-noites aos padrinhos e foi trancar-se no seu quarto, para chorar como uma criança e acabar de escrever a carta que remeteria em tempo oportuno para o solar do Monte Estoril. Não, este ultraje não passaria impune!


Continua em Quarta, 8 de Agosto ( 23º DIA )

Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson

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