( 33º DIA )
Apenas acordaram, Rui e Dina, lavaram-se, vestiram os jeans e desceram a fazerem-se cócegas para a cozinha, a fim de aprontarem o pequeno almoço, ligando o gira-discos. Nilton César, um cantor brasileiro, fazia muito sucesso com Espere um pouco, um pouquinho mais, canção que batia todos os recordes de venda, em Portugal, e que Rui sabia de cor.
Enquanto Dina mexia nas panelas e no fogão, ele, agarrando-se-lhe por detrás, não resistindo ao seu olhar de víbora e ao charme sedutor, lhe cantava sensualmente ao ouvido, arrepiando-a toda. E como se não bastasse, o afável cupido trauteou uma outra, Rose Garden que os Fevers, grupo do longínquo país irmão, adaptou como Mar de Rosas. Dina, que, de vez em quando, também atinava com o lá, experimentou retribuir-lhe a amabilidade, cantando-lhe Quieres ser mi amante? do popular cantor espanhol, Paulito Ortega, mas, não conseguindo, perguntou-lhe, séria:
― Queres ser meu amante, Rui?
― Amante não, marido.
― Queres, então, dizer que me estás a pedir em casamento?
― Sim, queres casar comigo, Dina?
― Quero Rui e prometo ser fiel, amar-te e honrar-te até à eternidade.
― Eu, minha feiticeira, prometo ser-te fiel, fisicamente, mesmo quando a minha fantasia me atraiçoar, nunca deixarei de te amar ainda mais...
― Juras, Rui?
― Que Deus me mate, não só antes de eu te atraiçoar, mas também se tu quebrares este juramento, antes de mim, porque o fim será melhor, do que saber-te de outro, meu amor...
E, abraçando-se, beijaram-se perdidamente na boca, até perderem o fôlego.
Depois do café, Rui subiu ao seu antigo quarto, para ir buscar as poesias, que deixara na gaveta da mesinha-de-cabeceira, mas a porta estava fechada à chave. Forçando a mãozeira, como esta não abrisse, espreitou pelo buraco da fechadura e descobriu o padrinho a dormir. Cauteloso, recuou e foi avisar a Dina, pedindo-lhe que caprichasse no almoço, porque o pobre, vestido como estava, só podia ter viajado de noite e chegado pela manhã.
Entretanto, pelas treze horas, o Dr. Félix levantou-se e desceu, atraído pelo cheirinho de um arroz de tomate como ele adorava. Rui, ansioso, ouvindo passos, aguardou-o envergonhado, nem sabendo como o enfrentar.
― Bom dia, padrinho! Dormiu bem? ― perguntou acanhado, bejando-o filialmente.
― Bom dia, meu filho! E a Dina?
― Estou aqui, Félix! ― respondeu a jornalista, beijando-o também no rosto.
― O senhor falou com alguém da aldeia?
― Não, Rui Patrício. Por acaso, tive sorte. Entrei no cemitério, falei com a madrinha Alice, durante uma hora, assentado na laje de mármore, deixei o ramo num vaso de vidro, que comprei em Vila Real e fui para o Bom Jesus de Braga.
― Para Braga? Por onde?
― Olha, passei em S. Bento da Porta Aberta, visitei a barragem dos Pisões...
― Que viagem cansativa, padrinho!
― Eu preciso de mortificar o corpo, meu filho, e fazer penitência, pelo mal dos meus pecados.
― Oh, mas que pecados, padrinho? O senhor nunca fez mal a ninguém!
― Deus sabe que fiz...
― E em Braga, ficou lá muito tempo?
― Pernoitei lá, numa estalagem bem bonita, por acaso, de quinta para sexta.
― De quinta para sexta?! E na quarta, onde dormiu?
― Ah, na quarta, depois de onze horas de viagem, fui dormir a uma pensão de Vila Real, na rua Direita, a Excelsior ― esclareceu cabisbaixo, pousando o guardanapo, nos joelhos, e bebendo um copo de água.
― Quer dizer que o senhor, esta noite, não parou para dormir, pois não?
― Se quer que lhe seja franco, não. Eu julguei chegar, pelas onze horas ou meia-noite, mas, sozinho, deu-me a morrinha, como diz a senhora Noémia.
― Porque é que se foi embora, sem nos avisar, padrinho. Nós tínhamos ido consigo, sabe ― disse condoído, acariciando a mão do arquitecto.
― Pois é, Félix, o Rui tem razão. Mal, como esteve, podia dar-lhe...
― Eu bem pedi a Deus que me chamasse, diante da Alice, para dar menos trabalho, mas, para ser feliz com a Alice, no Paraíso, tenho que fazer penitência.
― Vá, não falemos mais disso, padrinho, coma, senão o arroz arrefece.
― Bom apetite, Félix!
― Obrigado, igualmente para vocês, meus filhos ― agradeceu sorridente, começando por provar o bife de vitela.
E durante a refeição não disseram mais nada, para não se emocionarem. Depois da sobremesa, no terraço, o arquitecto voltou a acender o cachimbo e fumou, fumou, nervosamente, até o tabaco se consumir e se desfazer em fumo, que, ora às rodelas, ora às bufadas, se dispersou pelo ar abafado. Pouco depois, o arquitecto, mais confiante e reconfortado pela atenção do afilhado, foi telefonar ao Dr. Edgar, que o convidou a ir distrair-se um pouco, ao Monte Estoril, saindo, imediatamente, após ter avisado o Rui e a Dina, que liam e ouviam música no canapé. Largando o romance, o adolescente desatou a correr e pediu ao padrinho para saudar os amigos e lhes dizer que a sua maneira de ser e de pensar não mudara nada e que, em breve receberiam uma carta dele, assim como a Cristina, a quem desejava as maiores felicidades. Quanto ao resto, o padrinho era livre de fazer o que melhor entendesse. Da janela, escondida por detrás das cortinas, Dina, pelo movimento dos lábios e força da expressão, percebera tudo e comoveu-se. Depois, apalpando as retinas, para que ele não desse conta, assentou-se, adoptando a mesma posição.
Chegando, ofegante, Rui contou-lhe logo o teor da conversa. Dina, não resistindo, confessou-lhe, então, que vira tudo e quase chorara, pondo em dúvida, não a sinceridade do seu amor, mas a compaixão, que ainda poderia sentir, pela Cristina. Foi então que, ele lhe contou a história dos avôs dela, dizendo que, se o destino quisesse, verdadeiramente, que eles, Cris e Pat, se reencontrassem um dia, de nada adiantaria querer forçá-lo, agora, pois, de uma coisa estava ele seguríssimo: é que seria ela, Dina, a mãe do seu primogénito e mais ninguém, porque o destino os marcara, com o mesmo ferro para sempre e, casados ou não, esta paixão não morreria, sem deixar rebentos...
E aquela franqueza e convicção inquebráveis, abalaram e precipitaram, definitivamente, por terra, em efusivas lágrimas, as nuvens duvidosas, que ainda pairavam no coração desta mulher, traumatizada, para quem a felicidade presente tudo fazia esquecer e perdoar. Beijando-se loucamente, não resistiram ao apelo estonteante da paixão e, esquecendo-se de tudo e de todos, uniram-se de corpo e alma, num transcendental concerto de amor, que se prolongou, furiosamente, pela sesta fora.
À noitinha, quando regressou, o Dr. Félix parecia um ser novo, renovado. A sua alma transpirava autoconfiança e alegria de viver, o que fez o afilhado dizer que para ter aquela paz, só poderia ter-se confessado ao Cardeal, já que o papa, Paulo VI, estava em Roma. O arquitecto sorriu e disse-lhes que não fora ao cardeal nem ao padre que ele se confessara, mas aos amigos e que a compreensão que eles lhe haviam testemunhado valia mais que todos os perdões da confissão, na igreja. Agora, que o Edgar e a Susana, os seus anjos da guarda que, vigilantes, nunca lhe haviam faltado, sobretudo nas más horas, conheciam tudo, compreendiam e respeitavam a sua decisão, já tinha, outra vez, vontade de viver, pois, confessou, naqueles dias, tentara suicidar-se de várias maneiras, mas a sua Alice, tal anjo protector, guiara-lhe o Mercedes até casa.
E a conversa na sala da televisão, sob o olhar complacente da Alice, para quem se voltara, tantas vezes, como que a pedir ajuda e protecção, prolongou-se pela noite fora, até que o pesadelo e as dúvidas deixaram de molestar e acusar as suas almas pecadoras, perdoando-lhes tudo, para que a felicidade, que todos desejavam, assentasse, definitivamente, arraiais nos seus corações. Quando se beijaram, antes de irem dormir, os anjos do Céus, regozijando-se e espelhando-se na pureza das almas deles, irromperam num concerto de aplausos, que o sorriso inocente transformou em aura perene.
Na mansarda, abraçados, em oração, Rui e Dina, depois de um beijo sagrado, que os colocou, face a face, a olharem-se bem um ao outro, olhos nos olhos, mãos nas mãos e pernas entrelaçadas, sorriram e choraram e acariciaram e rezaram e adormeceram a falar, pessoalmente, de tu a tu, com Deus.
E a felicidade, dormindo inocentemente no meio deles e ecoando infinitamente pelos seus corações puros e bem-aventurados, não os abandonaria jamais, cumprindo os desígnios do destino.
continua em: Epílogo
Caprichos do Amor
Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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