No sábado, a senhora Noémia ergueu-se cedinho para arrumar a vivenda, evitando, porém, fazer barulho para não acordar os dorminhocos, mas às onze horas começou a inquietar-se com a preguiça dos patrões. Indecisa, não sabia se devia preparar o almoço ou não. De espanador em punho, limpando meticulosamente o pó aos móveis do escritório, depois ter escancarado as janelas para deixar sair aquele cheiro do maldito cachimbo que tanto a enervava, começava a entrar em pânico, quando o Rui Patrício, enojado com o odor do tabaco, surgiu finalmente no corredor. A maresia entrou de roldão na sala.
― Bom dia, senhora Noémia! ― saudou o dorminhoco, beijando a velhota.
― Bom dia, Ruizinho. Viu este fedor? ― disse contrariada.
― O meu padrinho não liga aos nossos conselhos, mais ainda bate a bota.
― Coitado, com a D. Alice, ele não fumava!
― O quê?!
― É como lhe digo. O senhor doutor só começou a fumar depois da morte da mulher e do filho. Coitado, ele andava muito cismático, não saía de casa e, para matar o desgosto, começou a fumar uns cigarritos, fracotes, os kentuks, mas depois virou para os cachimbos. Sozinho, amuado, parecia um morto.
― Devia ser terrível.
― Se foi, Ruizinho!
― Senhora Noémia, deixe lá essa fumarada e...
― O menino ainda quer tomar o seu cafezinho?
― Nem sei. Há laranjas?
― Temos laranjas, melão, pêssegos, maçãs, pêras...
― Olhe, eu comia duas fatias de melão, se fosse possível.
― Assente-se que eu vou preparar-lhe um pratinho como deve ser ― disse a velhota carinhosa, abrindo o frigorífico.
O adolescente foi buscar uma fatia de pão, bebeu um copo de água e pôs-se a ver como ela lhe compunha o pratinho. Vendo duas fatias de presunto, sorriu, mas não quis dizer nada sem primeiro provar. E, como gostou, deu os parabéns à avozinha antes de sair para o jardim.
Entretanto, o pêndulo batera o meio-dia. O arquitecto desceu um quarto de hora depois para avisar a velhota que eles e o Rui iriam almoçar fora e só voltariam muito provavelmente à noitinha, mas não jantariam e assim, depois de arrumar a casa, poderia ir passar o dia com a família a S. Domingos de Rana. Do banzo do terraço, o Dr. Félix chamou o afilhado e pediu-lhe que se despachasse pois a madrinha estava a maquilhar-se para saírem. Cobrindo ligeiramente o tronco nu, obedeceu e subiu para tomar um duche, encontrando a tentadora Dina diante do espelho a pintar os lábios. Destapando o peito ofegante, retirou-se para ir buscar uma roupa nova sem a saudar. Nos seus olhos pairava um sorriso malicioso. Ela, vendo-o apressado, retirou-se e foi acabar de se maquilhar para o quarto.
Dez minutos depois, o Mercedes embalava rumo à capital. A Rádio Renascença passava os 10 Mais, programa musical de grande audiência, sobretudo entre a juventude, mais dada a romantismos. O Love Hurts dos ingleses Nazareth liderava o ranking discográfico.
Perto de Linda-a-Velha, o carro tomou a direcção da Ponte Salazar, a jóia da engenharia lusitana, que ligava Alcântara a Almada, donde o Cristo-Rei abençoava a cidade que vira partir as caravelas e os homens que haviam demonstrado que os países também não se medem pelo número de canhões ou de quilómetros quadrados, mas sim pelo contributo que dão à causa do progresso e do bem-estar da Humanidade.
Esquecido e mudo lá no canto esquerdo do banco traseiro, Rui pensava na hora em que deveria ir bater a pala aos generais, dizendo-se que, se Deus quisesse, nessa data, aquela maldita guerra ultramarina que, desde 1961, enlutara tantas famílias, já teria acabado, mesmo se, no fundo do seu orgulho ferido, a voz assassinada dos seus pais, ecoando pelos montes do Nambuangongo, ainda lhe reclamava justiça. Angola, a grande paixão das suas vidas, os enfeitiçara e amara de tal modo que até a alma lhes exigira em tributo. Um dia haveria de trazer de volta a Trás-os-Montes as cinzas deles.
Na costa da Caparica, estacionaram o carro à sombra de uma tília frondosa e foram comer umas lulas grelhadas num restaurante típico com vista para o mar. Uma garrafa de vinho verde refrescou-lhes a garganta e a alma. No fim, enquanto o arquitecto bebia uma Macieira e fumava a cachimbada, o nefelibata desceu até à praia para espevitar a concupiscência. Ainda admirava as coxas e os peitos das mulheraças, quando se apercebeu que os padrinhos lhe acenavam da varanda do restaurante.
De retorno, passaram pelo Monumental e foram ver o Trinitá, um filme de cow-boys com Terence Hill e Bud Spencer. No fim da película, uma cena de pancadaria geral fê-los rir durante quase dez minutos. No patamar, à saída, ainda limpavam os olhos. Até casa, o homenzinho não parou de elogiar o artista dos olhos azuis e duas lourinhas mórmones, adeptas da bigamia, que haviam feito tilt no coração do Trinitá.
Em casa, Dina preparou-lhes caprichosamente uma refeição vegetariana, que antecedeu uma bem digesta salada de frutas e um cafezinho degustado na romântica penumbra do sol poente. Definitivamente sarada, a colérica intercação da antevéspera caíra nas masmorras do subconsciente. Na vigésima segunda hora, quando, por causa da escuridão, Dina se levantou para acender a luzinha do terraço, Rui Patrício deu-lhes as boas-noites, beijou-os e retirou-se, evitando a tentadora saia curta da madrinha.
No quarto, o pensamento voltou a atraiçoá-lo: subira para fazer amor virtual com a virgem, mas era a imagem rebelde do vulcânico gineceu da adúltera, quem mais o seduzia e excitava. Da escuridão da sua cela, colado contra a vidraça, ele especou as retinas concupiscentes no terraço e, obcecado pelos trejeitos provocantes da pecadora, que se entregava ao marido reticente, começou a masturbar-se, traindo a doce Cristina.
Aliviado da hipertensa seiva seminal, deitou-se de bruços e, apoiando-se no travesseiro, pegou na esferográfica. As imagens eróticas que acabava de presenciar e devorar voluptuosamente inundaram-lhe o cérebro, inspirando-lhe a seguinte aliteração sensual:
Na sintomática sinuosidade
dos seus seios em sequestro
sibilei este sibilino silogismo em sigilo
sensual tatuagem
de um talismã asceta
a singrar na sinistra sinfonia sexual
do gineceu sussurrante
quando na doce e suave senda vagina em síncope
esvaziei a hipertensa seiva seminal
lupanar virgem da apologia poeta
a vaguear pelo tédio áscio deste coração
imoralmente pateta...
Depois, soltando um suspiro, ele abriu a porta, deixando-a entreaberta, e largou a poesia sobre a mesinha de cabeceira, esperando que a musa a visse, lha lesse e a mostrasse ao marido. Dito e feito! Às vinte e três horas, os padrinhos subiram e, vendo-o a dormir agarrado ao travesseiro, espreitaram. Enquanto a esposa tratava da higiene íntima, o arquitecto foi correr completamente as persianas para que de manhã o Sol não batesse nos olhos do afilhado e, atraído pela mensagem poética, saiu para a claridade, lendo-a. Um sorriso veio transfigurar o seu rosto taciturno.
Orgulhoso, assentou-se pensativo na borda do leito conjugal. A esposa, graciosa e sexy, abeirou-se dele e, deixando cair o manto de seda, que lhe tapava a nudez resplandecente, ofereceu-se-lhe calorosamente, mas ele, enfunado pela mensagem poética, nem lhe prestou atenção. Tal Eva rejeitada, Dina pegou-lhe na folha e, à medida que lia os versos, começou a corar e a passar a mão pela plumagem vaginal. Vendo-a excitar-se, o marido ergueu-se e começou a beijá-la no pescoço e nos ombros. Depois, colando-se-lhe por detrás, agarrou-a e, tacteando-lhe os seios e os contornos flamejantes, solevou-a, deitando-a na cama.
Enquanto ele se despia impudicamente, a mulher mordia os lábios e afagava a fenda genital de olhos fechados. A nudez suspirante da esposa excitou-o de tal maneira que o arquitecto não resistiu e se lançou furiosamente sobre ela e abriu-lhe as coxas, iniciando um coito efemeramente audaz. Em menos de dois minutos, tudo se esvanecera. Frustradíssima, Dina olhou o marido exausto e, levantando-se, foi masturbar-se no bidé.
No leito conjugal, cabisbaixo e envergonhado, o arquitecto não sabia o que fazer; de retorno, ela evitou-lhe os olhos e enfiou-se entre os lençóis de barriga; depois, pegando na poesia, leu-a novamente, provocando a virilidade esmorecida, mas o marido, traumatizado por um coito tão fugaz, cobriu-se e virou-lhe as costas; excitada, ela contorcia-se na cama e estimulava o clitóris com os dedos da mão direita, enquanto os dentes lhe mordiam os da esquerda e foi sozinha que ela saciou, pela milionésima vez, os ardores libidinosos, acabando por adormecer toda nua de bruços e de costas para o marido.
Insaciável, ainda se levantou alta noite e espreitou para o quarto do afilhado, mas ele dormia como uma pedra, agarrado ao travesseiro. Recordando a enlouquecedora e inefável cena de amor do Guincho, a mais delirante desde que se casara, só lhe apetecia perder a cabeça e ir enfiar-se novamente debaixo dos vigorosos rins do adónis. Ah o Rui, como o desejava!
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
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