Terça, 24 de Julho
( 8º DIA )
De manhãzinha, apenas acordou, Rui Patrício, descobrindo-se um intruso na intimidade do casal, esfregou bem os olhos para ver se não sonhava e levantou-se em pés de lã. Depois da toalete matinal, foi ter com a avozinha e comentou com ela os acontecimentos da véspera. Foi então que a dedicada velhota lhe revelou as circunstâncias da morte da Alice, o único amor do senhor Dr. Félix Fontoura. Rui ficou a saber que o padrinho arrastara consigo aquela mágoa inconformada durante dez anos de lágrimas e dores e que, publicamente, nunca deu parte de fraco. Depois surgira na sua vida monótona e triste, a doce e electrizante Dina e com ela tudo mudara. Feliz, o arquitecto consentiu casar-se pelo civil com ela, estudante ainda, no Verão de 1969.
Entretanto, pelas dez horas, quando lia um velho Novidades, o jornal da Igreja Católica, que o padrinho assinara até à morte da esposa, ouviu o telefone tilintar e respondeu meigo:
― Alô?!.
― Bom dia, meu amor!
― Oh, és tu Cris?
― Dormiste muito, Pat?
― E tu, Cris?
― Penso que vou cair tonta de sono.
― Mas porquê?!
― Não consegui parar de pensar em ti, de reviver aquela tarde maravilhosa de ontem e recordar as tuas palavras, os teus suspiros e esquecer esses olhos...
― Eu também, meu amor, eu também.
― Pensaste muito em mim? Imaginaste-me...
― Estás só, Cris?
― Sim, Pat. Os meus pais devem estar a chegar aí. Eles andam aflitos.
― Porque não vieste com eles? Queria tanto ver-te, Cris!
― Ver-me, Pat? Se me visses agora...
― Então?
― Tenho cá umas olheiras!
― Que andaste a fazer, tolinha?
― Oh, tu bem sabes!
― Faz muitos sonhos cor-de-rosa, meu amor.
― Pat...
― Sim, Cris...
― Tu és a cor dos meus sonhos.
― Os teus olhos são os olhos da minha paixão. Um milhão de beijos e até logo, Cris! ― suspirou o enamorado, roçando os lábios no auscultador.
― Adeus, fofinho! ― bradou calorosa, devolvendo-lhe aqueles beijos tão estridentes que, entrando-lhe pelos tímpanos, a arrepiaram toda.
Pousando o auscultador, Rui subiu a avisar os padrinhos da visita eminente dos ilustres amigos. E, pegando nos cinquenta escudos que a Dina lhe estendeu imediatamente, correu à pastelaria para comprar uns bolos para comerem ao café. Largando as mulheres a pôr a mesa, ele foi num pé e voltou noutro.
Quando o Dr. Sampaio e a esposa surgiram na curva tudo estava já a postos. A professora trazia um admirável ramo de orquídeas que ofereceu ao doente com um beijo reconfortante.
― Obrigado, Susana! Não precisáveis de vos incomodar, Edgar ― disse o arquitecto, cumprimentando-os emocionado.
― Isto não é nada, Félix! ― retorquiu o advogado, dando-lhe uma palmadinha no ombro.
Depois da saudação, os visitantes entraram na sala e tomaram um atencioso café com o casal atormentado. Enquanto eles conversavam, o adolescente refugiou-se no escritório a gatafunhar uns versos. Recordando minuciosamente os detalhes das cenas extasiantes na praia da Azambujinha, escreveu:
Sinto o teu corpo morrer de febre
e a libido esquentar devagar
Vejo a paixão morrer ao de leve
sobre o desejo que teima em ficar...
E, sorrindo para a encantadora Dina que guardava a escrivaninha, alinhou:
Sinto o teu coração efervescente
e as tuas retinas lacrimejar
Vejo o teu peito bater ofegante
como se a vida quisesse parar...
O ritmo embalou-lhe a pulsação poética e surgiu um terceiro verso premonitório que espalhava o seu ardor interior:
Sinto a tua boca tão sequiosa
e o teu espírito devanear
Vejo essa pose voluptuosa
e o ardor que mora no teu olhar...
Trauteando os versos, o poeta sentiu que aquele desejo desenfreado, no sonho, era tolhido pela sua doentia timidez. Prisioneiro da realidade, quis libertar-se do medo e gritou, gatafunhando irado:
Mas que maldita timidez
que não me deixa viver feliz
Se eu nascesse outra vez
pediria molhos de intrepidez
e amaria como a meretriz
sem ligar ao que o povo diz...
Radiante, Rui Patrício releu a poesia e, contando as sílabas métricas, dobrou a folha de papel, guardando-a religiosamente no bolso. A felicidade dava aos seus olhos um novo encanto. Abeirando-se do quadro da madrinha, inclinou o vidro para espelhar as retinas na blusa negra da jornalista. A paixão infiltrou-se na negridão da foto daquela Dina de papel insensível que o fizera beijar e desejar nua e crua aquela criatura como se só fosse sua, atormentado pela súbita reprimenda que a imagem inocente da princesinha do solar lhe suscitou no seu coração libertino. E se a sua sina fosse desejá-las ambas, beijar a Cris e aprender a fazer amor com a Dina? Mas como era difícil e confusa aquela ilógica paixão que lhe encadeava e baralhava a razão!
Naquela terça-feira da sua ressurreição, para tirar as mórbidas e tenebrosas ideias cancerígenas da cabeça, o arquitecto pediu à jornalista que o acompanhasse até Sintra, a terra dos Saloios que em tempos idos alimentaram as caravelas d'El Rei, uma vez que os amigos passariam o dia em Lisboa.
Perspicaz, Rui Patrício recusou fazer-lhes companhia, preferindo passar o dia diante do telefone com a secreta esperança que Cristina lhe ligasse. E as horas foram batendo indiferentes à sua ânsia. Cansada e irritada pelos seus caprichos libertinos, a inspiração furtou-se à persistência poética, recusando servir de álibi a tão ambígua demagogia sentimental.
Resignado, ele desesperou de esperar em vão e adormeceu. Enquanto Cris não lhe contasse pormenorizadamente os sonhos matinais, ele não se alimentaria para mortificar o corpo. E o tempo esqueceu-se dele no sofá.
Às 22 horas, farto de dormir, ergueu-se assarapantado e a suar por todos os poros. Depois de beber um copo de água na cozinha, ainda tonto, o Casanova saiu para o terraço e espraiou a sonolência, respirando abundantemente a cálida maresia estival. Finalmente, como não encontrasse ninguém, subiu ao primeiro andar, mas o quarto do padrinho estava vazio. Aflito, bateu à porta da velhota, mas, ouvindo-a rezar o terço, foi postar-se novamente diante do telefone, implorando-lhe que tocasse. E o auscultador, daquela vez, escutou a suas súplicas tilintando inquieto.
― Alô! Estou!
― É o Rui Patrício?
― Sim, meu amor! ― exclamou irradiante, mal ouviu a voz da princesinha.
― A tua madrinha quer falar-te.
― Obrigado, Cristina, passa-ma...
― Por onde andaste toda a tarde, malandro?
― Por lado nenhum. Estive todo o dia à espera de um telefonema e...
― Não sei o que se passou. Tentámos falar contigo, mas não conseguimos.
― Vocês ainda demoram?
― Antes da meia-noite deveremos estar de volta. Vá, não te preocupes.
― Madrinha, faça o favor de me passar a Cristina.
― Ela preferiu ir ver os galãs da televisão, seu burrinho!
― Ah, sim?! Então, diga-lhe que eu fui ver as pernas da Marylin Monroe! ― desabafou irado, cortando intempestivamente a ligação.
Estatelando-se no sofá, Rui Patrício pensou em tudo, em nada, berrou afonicamente como um condenado sem voz, desatando aos murros à parede. E, pegando na foto da Dina, olhou-a, soltando um grito tresloucado. Depois roçou-a voluptuosamente ao longo do fecho dos jeans. Ainda ligou a televisão, mas, como nada o atraísse, foi trancar-se no quarto. Deitado sobre a colcha fina, agarrou-se ao travesseiro e, para afastar os maus pensamentos, começou a trautear alguns refrães dos slows que mais o haviam arrepiado. O pêndulo do corredor fartou-se de repicar a meia-noite sem que o casal desse sinais de vida. Inquieto, desceu à cozinha, bebeu um copo de água e, consultando o relógio, correu a postar-se diante dos portões. Aquela noite de Verão convidava os apanhados da velocidade a desafiar o destino e antecipar a hora do adeus definitivo ao planeta azul.
A vozearia infernal dos bólides, que regressavam dos pubs do Estoril, irritou-o de tal maneira que acabara por se resignar a ir-se embora de vez. Retirava-se macambúzio, quando o Mercedes surgiu sorrateiro nas suas costas. Uf, já não era sem tempo!
― Muito bem! ― desabafou furioso, ostentando o relógio de pulso.
― Hum! ― balbuciou a Dina, correndo a beijá-lo no rosto e nos lábios, enquanto o arquitecto metia o carro na garagem.
― Você é maluca! - sussurrou ele atrapalhado, olhando de soslaio.
― Nós pensávamos que o Rui já estava a dormir.
― A dormir eu?! Sua...
― Não seja mau para mim, menino! ― zombou ela, esticando-lhe a língua.
― Aleluia! Se estivéssemos em Trás-os-Montes, lá na santa terrinha, iria dar uma corrida ao sino! Férias são férias, não é, padrinho? ― ironizou airoso.
― Você disse férias? ― indagou o arquitecto exausto, arregalando os olhos.
― Sim. Então ir ao Estoril, a Cascais e a Sintra com esta estrangeirada toda e petiscar num restaurante chique à luz da vela, ah, não me diga que...
― Hoje comi cá um arroz de marisco no Mar do Inferno!
― Ué, os namoradinhos estiveram nas portas do Inferno?! ― zombou o jovem.
― Eh, vá perguntar à Dina se gostou ― sugeriu o arquitecto segredeiro.
― Está bem, fique descansado.
― Você fecha as portas, Rui Patrício?
― Sim, vá que eu cá tranco tudo.
Sorrindo, o adolescente fechou as portas e quedou-se pelo rés-do-chão, aguardando que eles se deitassem tranquilamente. Ocioso no escritório, aproveitou para passar a limpo a poesia que fizera durante a tarde. Orgulhoso, escreveu-a com a mais bela caligrafia. E o tempo sumiu-se lentamente sem que a insónia o abandonasse. Obcecado pelos slides eróticos que lhe resvalavam pela retina, ele desatou a gatafunhar atabalhoadamente as rimas que a lascívia mental lhe ditou torrencialmente.
As quatro horas da manhã infiltraram-se sorrateiramente pela luminosidade do candeeiro da escrivaninha, a única confidente da avassaladora paixão que o seu coração engendrara ingenuamente. Impregnado a memorizar os melhores versos, nem se apercebeu da intromissão da deusa da vivenda no seu mundo poético. A luz difusa só abrangia as páginas e a mão direita com que modelava e dava vida aos pensamentos libertinos. Tudo o resto obedecia à lei da silenciosa escuridão. Encostando-se no cadeirão de couro, que estoicamente sustinha todo o seu peso, começou a balbuciar a Prece Proibida que acabava de escrever numa folha branca. O sexo virtual fê-lo excitar-se e contorcer-se.
A meio da poesia não resistiu e, apalpando o membro viril, iniciou o delicioso vaivém que o prepúcio insistentemente lhe reclamava. Sentindo o prazer atingir o clímax, pousou a folha e, correndo o fecho das calças, saiu cautelosamente do escritório, esquecendo a luz acesa. Estupefacta e muda, Dina, que tal fada invisível presenciara a cena indecorosa, precipitou-se curiosa, pegou na página e leu-a num golpe de lince. Depois, temendo o regresso do poeta, escondeu-se atrás do armário. Aliviado da tumescência sufocante, ele retornou ao escritório e, acendendo a luz do tecto, foi buscar a poesia, desligando o candeeiro em seguida. Ao virar-se teve a impressão de alguém lhe passara a retina fugaz como uma estrela filante, mas, medroso, não quis confirmar e, desligando a luz, foi deitar-se.
No quarto, abeirou-se da janela e, espreitando pelas persianas, deu com os olhos no clarão do sol nascente. Esfregando os olhos, dobrou o papel, despiu as calças e enfiou-se entre os lençóis.
continua em: Quarta, 25 de Julho ( 9ºDIA )
Caprichos do Amor / Lmp, luxemburgo - 1996 / Lud MacMartinson
Nenhum comentário:
Postar um comentário